Nacional

Foram 21 anos de terror. Não é possível esquecer esse tempo, é preciso lembrá-lo para que, ao reconhecer tantos horrores, alimentemos a convicção de que ditadura nunca mais. A Nação tem de conhecer toda a verdade desse tempo.

As ditaduras imaginam, pela voz dos ditadores, que nunca serão punidas por seus crimes. Não custa lembrar o exemplo do general Ernesto Geisel, que, sem medo dos julgamentos da História, afirmava que “infelizmente” tinha de continuar a matar, tal e qual seus antecessores Garrastazu Médici, Costa e Silva e Castelo Branco. Pinochet certamente também imaginava que não enfrentaria problemas por conta do regime de terror que implantou no Chile. As ditaduras latino-americanas, com a Operação Condor, pensaram poder matar, tal e qual uma multinacional da direita terrorista, sem que nada lhes acontecesse.

Só que a roda gira. Algum dia vem o cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar. Nem sempre com toda a justiça. Às vezes, com muitos dos criminosos já mortos de causas naturais. Outras vezes – podemos pensar assim com relação a vários países da América Latina e particularmente se nos referirmos ao Brasil – processos políticos de transição “por cima” terminam por dificultar a punição dos criminosos. Apesar dessas observações – quem sabe cuidados histórico-conceituais de quem experimentou os rigores da ditadura e conseguiu sobreviver –, é inegável que desfrutamos de um saudável momento de acerto de contas em boa parte da América Latina.

Acerto de contas aqui não carrega o tom de bravata, nem de vingança, até porque impossível no quadro em que vivemos. O fruto amadurece, vem no tempo. Em anos bem recentes, as ditaduras latino-americanas têm sido julgadas pelos povos. Tem sido assim no Chile, na Argentina e no Brasil, para dar três exemplos. Julgadas de modo mais aberto porque faz muito tempo a população desses países já havia consolidado opinião sobre o que foram aqueles anos de terror. Agora, as coisas estão sendo ditas, providências tomadas.

Quem imaginaria um Pinochet levado às barras dos tribunais chilenos? Quem o imaginaria preso antes na Inglaterra? Quem pensaria a hipótese de militares argentinos serem presos e julgados, na Argentina ou fora dela? A história ensinou, à larga, que não há jeito de apagar os vestígios dos crimes políticos. Que, mais cedo ou mais tarde, eles vêm à tona. Que os povos, cada um a seu modo, acabam por exercer seu direito à memória. Esse é um momento singular, e nele vamos consolidando a noção de que a mais imperfeita vida democrática é melhor que qualquer ditadura.

Temos consciência da natureza da transição brasileira. Como em vários outros períodos essenciais de nossa história, para que a ditadura fosse ultrapassada houve uma negociação que acabou por anistiar os criminosos, os torturadores. Não cabe o lamento, por inútil. É provável que a correlação de forças daquele momento não possibilitasse outra saída. Mas acontece que a roda gira, o mundo não pára. E a Nação quer saber de tudo, reconhecer-se a si própria, mesmo que ao olhar no espelho reconheça muitos horrores, como os desse período ainda cheio de nuvens e sombras entre 1964 e 1985.

Foram 21 anos de terror. É importante dizer isso até para desmascarar qualquer tentativa de imputar natureza terrorista à esquerda brasileira. Esta nunca visou alvos civis, não praticou atos terroristas. A ditadura, sim. Prendeu milhares de pessoas ao longo de sua existência, patrocinou a tortura como método sistemático, assassinatos, desaparecimentos, sempre confiante na impunidade. Agentes civis e militares da ditadura praticaram torturas inimagináveis contra homens, mulheres, jovens, crianças, velhos. Não é possível esquecer esse tempo, nem é desejável. É preciso lembrá-lo para que, ao reconhecer tantos horrores, tanta crueldade, alimentemos cotidianamente a convicção de que ditadura nunca mais. A Nação tem de conhecer toda a verdade desse tempo.

Acontecimentos recentes reforçam a idéia de que é necessário apertar o passo. Se não o fizermos, uma parte de nossa história pode ser queimada, literalmente. Primeiro foram as fotos de um padre nu, divulgadas pela imprensa, que, no primeiro momento, acreditou tratar-se de Vladimir Herzog, gerando comoção. Nesse episódio, ouviram-se vozes saudosas da ditadura dentro do Exército, corretamente repelidas pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Mais recentemente, o incêndio criminoso de arquivos do período ditatorial, na Base Aérea de Salvador, objeto de denúncia no Fantástico, da Rede Globo, que provocou uma justa indignação de todos os setores democráticos e de esquerda do país. No Ceará, documentos do período ditatorial também foram destruídos.

Para não cometermos o pecado da ingenuidade, é preciso dizer, sem que se possa provar com exatidão, que muitos desses arquivos – além daqueles que se souberam queimados, como esses últimos – foram devidamente expurgados de seus aspectos mais criminosos ou mais reveladores. Essa “operação limpeza” foi realizada ao longo de anos e os acontecimentos recentes só reforçam nossa convicção da existência dela. Trata-se de preservar o que existe, que seguramente não é pouco, para atender a um clamor pela abertura e preservação dos arquivos da ditadura.

Há arquivos e arquivos. Há uma parcela deles, eventualmente abrigada nas superintendências regionais da Polícia Federal, que tinha uma natureza relativamente oficial. Parte desses arquivos servia de subsídio formal aos processos que corriam nas auditorias militares. Mesmo aí, no entanto, uma porção podia permanecer clandestina, ser resultado de anotações obtidas a partir das torturas. E pode, no todo ou em parte, aqui e acolá, ter sido destruída.

O problema central dos arquivos a ser desvendado está nos documentos não-oficiais, nos guardados pelos antigos centros de tortura – os DOI-Codi de vários estados, a Oban em São Paulo, o Cenimar da Marinha, o Cisa da Aeronáutica, o Ciex do Exército, toda a superestrutura criminosa da repressão e tortura que a ditadura criou com o objetivo de destruir fisicamente os que se dispunham a combatê-la politicamente. Havia um antes e um depois quando a ditadura prendia. O antes era sob a guarda dessa superestrutura violenta, criminosa, que formalmente não existia para as auditorias militares. O depois era quando o depoimento era oficializado, que chegaria então às auditorias, e se tornava público.

Conhecer esses arquivos, todos, é um direito sagrado dos familiares de pessoas mortas, desaparecidas, perseguidas, presas e torturadas. E, mais do que isso, um direito da Nação. Para as próprias Forças Armadas, neste momento democrático de nossa história, deveria interessar que toda a verdade viesse à tona. Não é bom que paire sobre elas a sombra do arbítrio. Melhor que tudo seja esclarecido. A verdade será a única maneira de calar as poucas vozes que ainda insistem em defender o golpe de 1964 e os anos de terror que se seguiram. E, no final do ano passado, o governo Lula decidiu abrir os arquivos.

De toda a herança maldita de FHC, a que mais chocou a todos os que lutamos contra o regime militar foi o Decreto 4.553, de 27 de dezembro de 2002 – assinado no apagar das luzes de seu governo, portanto –, que tornou praticamente inacessíveis os documentos referentes à ditadura militar, uma vez que aumentava e prorrogava os prazos indefinidamente. A Constituição Federal estabelece que os documentos oficiais sejam abertos em prazos regulamentados, exceto quando significar ameaça ao Estado ou à sociedade. A armadilha deixada por FHC somente foi desfeita com a edição da Medida Provisória 228 e do Decreto Presidencial 5.301, ambos assinados pelo presidente Lula no dia 9 de dezembro de 2004.

Por tais dispositivos legais, os prazos voltaram a ser estabelecidos pela Lei 8.159/91, regulamentada em 1997. Ou seja, documentos ultra-secretos têm no máximo trinta anos para divulgação; os classificados como secretos, no máximo vinte anos; os confidenciais, no máximo dez anos; e os reservados, no máximo cinco anos. Esses prazos poderão ser prorrogados uma vez, por igual período, pela autoridade responsável pela classificação ou autoridade hierarquicamente superior, competente para dispor sobre a matéria.

Nos mesmos dispositivos legais, o presidente Lula instituiu a Comissão de Averiguação e Análise de Informações Sigilosas, que reúne sete titulares do primeiro escalão da República1. A medida provisória criou a possibilidade da reclassificação dos documentos e a redução do tempo de sigilo. Com o advento da Comissão de Averiguação interministerial, portanto, será possível inclusive mudar a classificação de documentos, prorrogando ou reduzindo os prazos de abertura ao público.

O importante é que efetiva e legalmente a medida provisória permite a abertura imediata dos arquivos da ditadura militar, já que neles não há ameaça ao Estado ou à sociedade. A Comissão de Averiguação tem o poder inclusive de – caso provocada – flexibilizar a abertura dos tais arquivos. Pode ocorrer que um documento classificado para trinta anos seja aberto antes do prazo por solicitação de algum cidadão. A mesma comissão interministerial está apta a cumprir a decisão judicial que determinou a abertura dos arquivos da guerrilha do Araguaia, na medida em que está autorizada a promover todas as diligências necessárias.

O governo Lula foi além. Decidiu não somente abrir os arquivos da ditadura militar como também torná-los acessíveis à população. Para tanto, anunciou a criação, neste ano de 2005, de um Centro de Referência que dê condições de acesso a todos os documentos relativos à ditadura, em parceria com a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) e a Universidade de Brasília. O Centro de Referência, verdadeiro banco de dados sobre os anos de terror e de sombras, será fundamental para o exercício do direito à memória. Serão criados mecanismos que facilitem o acesso aos milhões de documentos já à disposição do público e àqueles que vierem a ser abertos agora.

O Centro de Referência poderá, também, acolher arquivos pessoais dos torturados e mesmo dos documentos que estão em poder das famílias, dos civis, policiais e militares que serviram à ditadura. A proposta inclui ainda os chamados “arquivos orais”, depoimentos de cidadãos e cidadãs submetidos à tortura, projeto que na prática vai criar um Arquivo Nacional dos Direitos Humanos. Há, portanto, uma política nacional de memória política e acesso aos arquivos da ditadura.

O governo sabe que não há caminhos fáceis quanto a tudo isso. Há pressa, urgência dos grupos Tortura Nunca Mais de todo o país, dos mais variados grupos de direitos humanos. Há a pressão, mais do que legítima, de todos os que perderam entes queridos e não sabem onde estão os corpos. O massacre da guerrilha do Araguaia cobra um esclarecimento profundo. Dezenas de guerrilheiros e guerrilheiras foram aprisionados vivos, executados e de seus corpos não se tem notícia. Como foi o registro de toda a Operação Araguaia? Já há mais do que indícios sobre o genocídio, mas é preciso mais do que isso. Essa tensão entre o ritmo do governo e o da sociedade é natural, e é muito positiva a pressão para que as coisas andem em ritmo mais acelerado, mesmo que as limitações de recursos sejam evidentes. A sociedade civil, por outro lado, sabe perfeitamente que a organização dos milhões de documentos levará anos, décadas provavelmente.

O importante é que o processo ganhou impulso. É chegada a hora. O ministro Nilmário Miranda, da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, vem adotando as providências para que os arquivos sejam de domínio público. Aos poucos, mas agora mais rapidamente, vamos sendo capazes de revelar a verdadeira face da ditadura. E de compreendermos, não custa repetir, o quanto a democracia é preciosa, indispensável. Ditadura, nunca mais!

Emiliano José é jornalista, ex-preso político, professor da Faculdade de Comunicação da UFBA, deputado estadual, autor de Lamarca, o Capitão da Guerrilha e Carlos Marighella, o Inimigo Número Um da Ditadura Militar, entre outros livros