Internacional

A originalidade sul-americana está em que os modelos de desenvolvimento constituem um terreno de escolha inteiramente novo.

A vitória presidencial de Lula e do PT no Brasil e o sucesso de Kirchner e de uma nova camada dirigente na Argentina (bem como na Venezuela e no Uruguai) estabeleceram governos e afirmaram políticas interessantes, não apenas no sentido dos processos internos de renovação social e vigorosa presença em nível global, mas sobretudo porque com eles mudam as figuras do exercício do poder na América Latina: trata-se de deslocamentos que provavelmente mudarão, e já agora estão mostrando (quaisquer sejam os resultados e as ambigüidades das experimentações) a imediata necessidade de uma transformação do governo democrático em geral. A autonomia dos movimentos sociais das classes subalternas não pode mais ser considerada um adversário a enfrentar, mas sim ser assumida como motor da atividade de governo. A autonomia da multidão coloca-se numa relação fecunda e produtiva com os dispositivos programáticos e as dinâmicas administrativas dos novos governos sul-americanos.

Na Europa e nos Estados Unidos, nos meios “antimundialização” e da intelectua­lidade de esquerda, essas mudanças decisivas que caracterizam a América Latina são apreendidas de maneira insuficiente. Dogmatismos e sectarismos da tradição socialista e comunista, resíduos teóricos terceiro-mundistas, bloqueiam um debate adequado e, portanto, o apoio a essa renovação estratégica da ação contra-Império.

Salto revolucionário

O espaço continental sul-americano é atravessado por uma crise profunda, articulada com vários momentos de ruptura e com diversos modelos de desenvolvimento. A originalidade da situação está no fato de que os momentos de ruptura e os modelos de desenvolvimento constituem, no caso dos primeiros, um dispositivo de tendência e, no que diz respeito aos segundos, um terreno de discussão e de escolha que se configuram em termos absolutamente originais. O modelo cubano, ou seja, a tentativa de fechar as diferenças do movimento e os projetos revolucionários dentro de um esquema ideológico parece entregue ao passado. Vejamos bem: isso vale também para a direita. Os projetos populistas-fascistas-autoritários, incorporados pelas instituições pró-ianques e neoliberais, constituem, na América Latina de hoje, uma exceção. Trinta anos depois da repressão chilena, a exceção não é mais Allende, mas Uribe, o fantoche norte-americano.

Para confirmar o elemento novo dessa tendência, basta olhar para o que aconteceu com as políticas neoliberais que se impuseram ao longo dos anos 1980 e 1990. As políticas neoliberais não foram capazes de ir além de uma função negativa, destruidora (mas nem tanto) dos velhos pactos corporativos e biopolíticos sul-americanos. A inteligência de algumas propostas era tão demasiadamente subordinada a uma idéia de equilíbrio econômico voltado para a construção coerente do Império central que acabou conseguindo ser tão inaceitável quanto as velhas hipóteses da ortodoxia revolucionária.

A novidade da vida política sul-americana é ser atravessada pela diferença, ser plural de aspirações e de experimentações radicalmente democráticas. O tema da construção da democracia foi completamente subtraído às ideologias passadas do socialismo ortodoxo e das mãos das embaixadas norte-americanas. Hic Rhodus, hic salta.

Aqui se coloca um primeiro problema: qual é o terreno de recomposição dessa diversidade? Qual é o ponto em torno do qual podem se unificar – mantendo seu caráter de experiências enraizadas nos territórios e, portanto, na diversidade – as forças da transformação? Agora, a dinâmica brasileira mostra que, no âmbito continental, o primeiro terreno sobre o qual a recomposição pode acontecer é o do pragmatismo do governo da interdependência global. Foi um grande mérito do governo Lula ter concentrado ao redor desse tema as forças para a reconstrução de uma política continental que permitisse a renovação das estruturas sociais e produtivas.

O movimento do qual falamos atravessou, de uma maneira ou de outra, a geografia inteira da América Latina, constituindo um espaço continental novo dentro do processo global de reorganização imperial do mundo. Um novo sujeito nasceu: todo o mundo o viu na crise argentina e a partir da eleição de Lula. Apesar disso, ninguém esperava que esse momento de crise fosse interpretado e controlado de modo completamente novo, original e constitutivo por parte dos governos do Cone Sul. Por meio da assunção da interdependência (dentro das práticas e dinâmicas de governo), foi proposto um salto revolucionário na relação entre Terceiro Mundo (nesse caso a América Latina) e o governo político-econômico da mundialização.

Vejamos os pontos sobre os quais as inovações econômica, social e política são pensadas e acionadas.

•Nos países da América Latina, como de resto em qualquer país do Terceiro Mundo, há uma situação que permite a um tipo de antimodernidade se afirmar em formas que a pós-modernidade pode acolher como prospectivas eficazes; pois bem, esse é o tema da libertação dos escravos e dos servos. Aqui temos uma outra tensão que podemos definir cosmopolítica: ela atravessa o mundo onde vivemos e indica a necessidade de libertar todos os que o biopoder esmaga em sua cadeia de comando.

•O bloqueio da democracia na América Latina sempre foi constituído em cima das hierarquias e das práticas ferozes do biopoder. Tratava-se de quebrá-las. Tratava-se de fazer da mestiçagem – indígena ou negra e posteriormente entre imigrantes de diversas origens – uma chave, não de sujeição, mas de liberdade.

•Precisamos parar de propor como modelo de recomposição da ordem política, ainda que na perspectiva da liberdade, o modelo europeu de democracia. Temos de parar de propor como novas formas de organização e transformação as velhas tipologias da representação, dos partidos e também da revolução. Na América Latina, é inútil procurar o Estado moderno: o Estado fraco (inserido dentro dos mecanismos coloniais) nunca chegou a ser uma realidade efetiva, sempre foi o instrumento de exploração das elites, enraizadas nas práticas do racismo e da exclusão. Agora, se não existe nenhum “palácio de inverno” a ser conquistado, há uma estrutura do biopoder (plantada no sangue e na vida de cada cidadão da América Latina) que precisa ser destruí­da. O “palácio de inverno” é a própria estrutura racial do biopoder.

•Por isso, a resistência só pode se dar no plano biopolítico. E a democracia só pode se constituir sobre uma prática política que atravesse a mestiçagem e, pois, as relações de poder e de riqueza/pobreza que se encontram no corpo e na cons­ciência dos sujeitos. Em outras palavras, a democracia só pode nascer, na América Latina, da libertação que a multidão, trabalhando contra o capital, determinará sobre ela mesma e por meio dela mesma.

Das lutas ao programa

Se o modelo europeu não pode ser pensado como o paradigma da democracia e da gestão de um poder democrático, poderá menos ainda funcionar como base da resistência. A situação se torna ainda mais grave à medida que compreendemos, justamente na base das velhas teorias socialistas, que essa obsolescência e esse esgotamento das formas organizacionais do capital (Estado) e do movimento de resistência (partido e hegemonia da classe operária) juntam-se à obsolescência da relação salarial enquanto relação fundamental da organização do trabalho e da exploração e àquela da dependência enquanto trâmite da relação imperialista entre Estados, capital central e sociedades do Terceiro Mundo.

Pensar a esquerda – uma nova esquerda –, pensar a democracia, só pode se efetivar a partir dessas constatações. Ou seja, do ponto de vista de classe, precisamos repensar a relação de exploração como algo que mexe diretamente com a multidão. Com certeza, a multidão se apresenta como força produtiva, seu conceito integra (e não exclui) o conceito de classe operária, mas, para construir uma nova esquerda, precisamos nos colocar para além da relação de capital nacional e, igualmente, para além da relação de dependência: trata-se de mobilizar-se na interdependência das relações sociais e políticas no nível global. Só quando insistimos nesses dois elementos (multidão e interdependência) é que uma nova esquerda, portadora e organizadora de poder constituinte, pode acontecer.

Isso nos coloca diante de um monte de problemas. Um dos mais importantes é o da luta para a independência do Cone Sul em face da dominação ianque. Os governos democráticos da América Latina tiveram, efetivamente, avanços nesse terreno. Mas o espaço latino-americano de construção de uma base política autônoma não consegue ultrapassar os impasses da construção institucional do Mercosul e abrir-se a uma teoria e a uma prática da autonomia dos movimentos. Isso porque essa linha de desenvolvimento foi desenhada a partir de cima. Como é possível se apropriar, desde baixo, desse terreno constituinte e dessas finalidades revolucionárias, procedendo não apenas no sentido da constituição de um mercado único sul-americano, mas definindo sua realidade no sentido de uma expansão dos direitos sobre a renda e o saber, de uma apropriação multitudinária dos modos de vida e de administração do desenvolvimento? Como é possível desempenhar essa tarefa em termos não apenas nacionais e tampouco continentais, mas construindo modelos que possam ser vivenciados e integrados nas práticas das multidões exploradas?

Aqui, abre-se toda uma nova série de problemas. Eles têm a ver com a necessidade de conceber a relação entre movimentos e governo como um processo contínuo de negociação e ruptura. Construir democracia significa, pois, aprofundar uma proposta de comunismo que se torne imediatamente efetiva.

Trata-se, portanto, de agir desde baixo, fazendo experimentações contínuas, sem nos tornarmos prisioneiros de fórmulas generosas mas não efetivas (como a da “democracia participativa”). As cidades, os municípios, constituem, certamente, terrenos de experimentação desse processo. Com efeito, é nesses níveis que a convergência das forças ao redor de valores comuns (transportes, dimensões ecológicas do viver, segurança, problemas urbanos etc.) não apenas se torna eficaz, mas experimenta novas formas de governança coletiva, ou seja, multitudinária.

Um segundo terreno essencial é o da organização do trabalho das metrópoles. Cinqüenta por cento do trabalho metropolitano é informal, a metrópole tornou-se o espaço de um trabalho discriminado que deveria ser reconhecido, que deveria ser remunerado como trabalho social. A renda de cidadania não é apenas, desse ponto de vista, uma medida da distribuição do valor acumulado socialmente. Ela é também a condição de renovação do saber viver em comum, a base de uma expressão democrática (por isso mesmo, produtiva).

Com isso chegamos ao nó fundamental, o da construção de um direito comum, que possa ir além do direito privado e do público (formas diversas da gestão do capital coletivo). Falar de direito comum significa abrir e recompor o espaço de ação das forças singulares da multidão em subjetividade política. O comum não é algo já dado, é algo que encontramos ao mesmo tempo que nos apropriamos dele e o reinventamos. As lutas no global, pela reapropriação dos espaços telemáticos, as lutas nos países subdesenvolvidos sobre as dimensões ecológico-coletivas do viver (água, terra, ar, poluição, epidemias etc.), não são que a continuação desse processo: é nesse terreno que os programas se constituem.

No Brasil de Lula, esse programa é, paradoxalmente, mais avançado e mais atrasado do que em outras regiões continentais do Império. Uma das grandes vantagens da passagem acelerada (por mais dramática que seja) do moderno ao pós-moderno implica a atuação imediatamente qualificada do programa do comum.

Esse é o caminho que precisamos trilhar. Não temos outros. Pior, todos os outros são reacionários (e, hoje em dia, o extremismo esquerdista na América Latina o é com certeza!). É preciso ter muita coragem para avançar nesse terreno. Nesse terreno, as velhas ideologias da reforma e da revolução são varridas e os dogmáticos sabem apenas denunciar ilusões e traições. Ao contrário, como dizia Lenin, a revolução avança aos poucos, atravessando momentos de destruição do passado e propostas de devir.

Antonio Negri e filósofo e vive entre Veneza e Paris, onde anima a rede Università Nomade
Giuseppe Cocco é cientista político, professor da ESS/UFRJ e participa da rede Università Nomade