Política

Entrevista com José Genoíno

Um partido que se viabilizou quando a esquerda mundial e a brasileira atravessavam uma de suas maiores crises. Cumpriu um papel estratégico porque evitou o pacto das elites.

O que você poria como essencial numa certidão de nascimento do PT?
Reafirmaria o caráter estratégico do PT como partido de esquerda que se identifica com os valores do socialismo democrático e seu compromisso radical com a luta por igualdade social e cidadania. Esse é o nosso DNA, inegociável. Um partido que cresceu e se viabilizou quando a esquerda mundial e a brasileira atravessavam uma de suas maiores crises. Concordo com Marco Aurélio Garcia quando diz que o PT é pós-comunista e pós-social-democrata. É um partido de esquerda moderno, contemporâneo. Compreende a democracia como regras e procedimentos, mas também como meio para melhorar a vida das pessoas. Tem de manter sua unidade na diversidade ideológica, filosófica e com a pluralidade de concepção dentro dele.

Como definir o momento da fundação, em que várias gerações militantes de esquerda responderam à convocação do movimento operário para fundar o PT?
Foi um ponto de encontro de várias gerações, experiências e formulações, unificadas sob a liderança de Lula – uma façanha política. O PT teve um momento em que sua principal missão era se viabilizar. Num segundo momento, apresentou uma proposta para a sociedade, a Constituinte, as eleições de 1988 e a campanha de Lula de 1989. Depois, foi marcado pela resistência à ofensiva do modelo neoliberal. E, finalmente, deu um grande salto com o primeiro e o segundo congressos, tendo em vista um projeto de país, que culminou com a eleição de Lula em 2002. Estamos agora num novo período, o de uma experiência de governo, de elaborações que devem ser resgatadas, mas também um período histórico em que temos de fazer atualizações, renovações, recuperar valores e princípios. Precisamos fazer uma revisão de certas práticas, principalmente dos últimos períodos, e revigorar o partido, mantendo aquele ponto de encontro que foi o 10 de fevereiro, no Colégio Sion.

O que representou a emergência do PT no contexto da esquerda dos anos 70 e na resistência contra a ditadura?
O PT foi um ator à esquerda, popular, radical, num processo de redemocratização do país. Cumpriu um papel estratégico porque evitou que o pacto das elites, que na longa história do Brasil sempre se dá por cima, o isolasse ou o colocasse à margem do processo político. O PT nem foi cooptado nem se isolou. O fato de o partido ter puxado a campanha das Diretas, não ter ido ao Colégio Eleitoral, ter identidade com os movimentos populares do campo e da cidade e a promover a unificação de um setor de esquerda da intelectualidade fez com que resolvesse um problema histórico da esquerda no Brasil: não ser o enfeite do bolo das elites nem estar no isolamento. Sem o PT, a esquerda e os movimentos populares, a esquerda intelectual e a esquerda que sobreviveu da resistência armada teriam sido pulverizados.

O PT freqüentemente se apresenta como a superação dos perfis dos partidos da esquerda que o precederam. O que caracteriza essa superação?
Primeiro, o PT foi uma superação da esquerda tradicional porque combinou a luta social e a luta institucional. A primeira eleição de que participou foi em 1982, ganhando a prefeitura de Diadema e a de Santa Quitéria. Essa interferência no Estado não tirou do partido sua identidade com os movimentos sociais. Hoje com nossa experiência de governo isso se coloca como um desafio. Para o PT, a governabilidade não pode ser apenas política, ela tem de ser social. É preciso negociar com os movimentos, não aceitar sua criminalização, entender que, mesmo quando têm divergências com o governo petista e com o partido, são atores legítimos. E separar diferenças táticas das estratégicas.

Em segundo lugar, nossa experiência no Parlamento não foi um processo de domesticação do partido. Nossas bancadas foram ponta de lança da expressão pública do partido, exemplo de organização, unidade de ação e relação com os movimentos sociais e com as bandeiras partidárias. No Executivo, imprimimos uma marca fundamental ao introduzir algo até então inédito: a participação popular por meio do Orçamento Participativo, a agenda da transparência e do controle público dos gastos. A marca do PT nas prefeituras foi sempre de seriedade com o controle das contas públicas, governar com a opção clara de melhorar a qualidade de vida das pessoas excluídas. Construímos experiências administrativas que se tornaram referências nacional e internacionalmente.

Em seu processo de elaboração o PT evoluiu em relação ao modelo tradicional da esquerda porque as definições partidárias nunca foram a partir de uma resolução única, de um grande encontro ou congresso. Foi um processo que, durante certo tempo, chamamos de consensos progressivos elaborados na experiência petista.

O PT nunca submeteu os movimentos sociais à sua visão. Já no Executivo, parece que esta questão não está bem resolvida. O Executivo puxa para sua dinâmica e leva quadros mais experimentados para ocupar as funções de governo, o que debilita a ação partidária. Como equacionar esse problema?
Esse é um problema de natureza prática e teórica. Em primeiro lugar, os administradores do PT são dirigidos pelo partido. O PT constituiu uma cultura partidária organizada, de unidade de ação e disciplina. A população não separa do PT seus administradores. O partido foi esvaziado pelas experiências administrativas com seus quadros, não equilibramos a tarefa de direção à frente dos executivos com a esfera própria de elaboração do partido, compreendendo que o partido vai além dos mandatos e do período de governo. Segundo, tem uma esfera que vai além do âmbito de governo, independentemente de ter ou não aliança. E, terceiro, o partido dirige. Então, é uma autonomia dialética porque o partido tem de dirigir o governo porque os que estão no governo são petistas, não se licenciam para ser do governo. Nem nós estamos entrando num governo que não é nosso. Há acertos e erros, e esse é um dos pontos a se refletir muito nessa grande experiência que é o governo Lula.

Como o partido encara hoje o desafio da formação de quadros?
Tivemos experiência de formação de quadros na história do PT. Algumas foram bem-sucedidas e outras não se viabilizaram. Hoje há uma lacuna. Temos uma grande distância entre a geração formada desde a fundação do PT e as novas gerações. O partido está em 5 mil municípios, tem 411 prefeitos e o governo federal. A capacitação política tem de ser uma tarefa da próxima direção – do ponto de vista dos desafios novos de administrar o Estado, dos novos dilemas nacionais e internacionais de gestão pública, a compreensão do que é disputa de hegemonia e do que é fazer aliança.

A prática foi nos ensinando algumas coisas, agora precisamos teorizar. Não podemos simplesmente improvisar nem cair num pragmatismo, que nos leva para a derrota ou para a desfiguração do partido.

Que papel deve desempenhar um partido de esquerda como o PT numa complexa frente de sustentação de um governo de centro-esquerda?
O governo é de centro-esquerda, mas é dirigido pelo PT. Os principais ministros e o próprio presidente da República são petistas. Se ele é dirigido pelo PT, o partido tem de ser um ponto de equilíbrio, de cobrança, de proposta e de sugestão. Um governo com essa natureza também deve ter parceria com os chamados partidos aliados históricos do PT, para ter um eixo de disputa política com valores, propostas e relações históricas construídas. Precisamos equilibrar as alianças ao centro no plano nacional porque elas são conflituosas nos planos regionais. Temos contenciosos de disputa não apenas eleitoral, mas históricos.

Se não cuidarmos da elaboração, da formação, do debate teórico no PT, esse partido de massa traz para dentro a realidade política, cultural da sociedade brasileira. Nós não somos uma força hegemônica na sociedade nem à frente do Estado. É extremamente delicado porque temos de ter a governabilidade como força principal e, ao mesmo tempo, uma relação de propostas, sugestões, cobranças, em que o PT possa proporcionar avanços. Muitas vezes é o fio da navalha.

Gostaria que identificasse as diferenças entre o PT e a direita contemporânea, hoje, aglutinada em torno do PSDB.
Nós temos uma nova direita, cujo ponto central é o modelo neoliberal, com a visão do Estado mínimo, de desregulamentar a economia, inserção subalterna ao modelo de globalização, hegemonizado pelo capital financeiro. Essa direita faz disputa também no plano dos valores contra o PT. Ela discute, por exemplo, a natureza e a finalidade dos gastos do governo, pois priorizamos certos gastos. Para a esquerda, a democracia dos procedimentos e das regras está fundida com a luta pela melhoria da qualidade de vida das pessoas, por direito, por mudanças estruturais – e a nova direita separa. E, ao fazer essa separação, vê a política como engenharia de competência, de resultados, tentando desqualificar uma proposta de esquerda que une a democracia com as mudanças substantivas.

Essa nova direita, representada pelo PSDB, nasceu de dentro do poder para ser hegemônica no período de oito anos do governo FHC. O PT assume o governo vindo de fora. Nesse ponto, há uma disputa de rumos. Assumimos o Estado, mas queremos reformar o Estado, não podemos nos acomodar ao status quo, defendemos as regras, mas temos de mudá-las. Defendemos os contratos e o Estado democrático de direito, mas queremos mudar democraticamente essas regras. É uma visão processualista de como um partido de esquerda faz a disputa sem perder suas identidades principais. Isso não é fácil, porque há uma polarização ideológica, cultural, valorativa nesse enfrentamento. Essa disputa se reflete nos meios de comunicação, em segmentos da opinião pública.

O PT precisa se preparar mais para essa disputa. Há uma direita sofisticada e uma direita truculenta. A eleição de 2004 teve um debate mais sofisticado, como vimos na cidade de São Paulo, e baixaria em Nova Iguaçu, em Cuiabá, em Campos e em algumas cidades do Nordeste. Ainda existe um déficit de democratização e modernização das instituições do país.

Definiu-se, ao longo dos anos 90, um modo petista de governar. O que significa essa experiência do ponto de vista da construção democrática e republicana no Brasil? Como isso se expressa na esfera federal?
O modo petista de governar, além de ter alterado a qualidade de vida das pessoas, juntou a democracia com a República. A democracia das regras e a mudança das regras no processo democrático, a democracia substantiva com o padrão republicano de gestão pública, do ponto de vista da coisa pública, da transparência, das regras e dos atos. No Brasil, nós não temos uma república no sentido conceitual da palavra. Temos experiências republicanas.

O modo petista, no âmbito local, avançou porque priorizou os investimentos sociais, mudou a qualidade de vida das pessoas, criou participação popular nos orçamentos e exerceu o poder democraticamente. O PT tem de ser um partido socialista, democrático, republicano e construir regras no avanço do modo petista de governar.

O Estado brasileiro reproduz uma formação econômico-social com a qual não concordamos. Primeiro, temos um Estado que funciona como capitanias estanques verticalizadas; segundo, temos uma alta burocracia do Estado com grande autonomia, a ponto de se dizer que os eleitos passam e ela fica – não é a burocracia no sentido weberiano, mas no sentido dos privilégios –; terceiro, há uma apropriação da esfera pública pela esfera privada, seja pelo caminho mais perverso, que é a corrupção, seja pelo mais sofisticado, que foi o modelo de privatização do governo Fernando Henrique.

Precisamos promover um debate sobre uma reforma republicana do Estado, uma reforma político-administrativa. Por exemplo, temos de fazer uma reforma no Parlamento que resgate a autonomia, a transparência. É preciso criar instâncias no Estado, de controle social público, que no plano nacional são muito débeis. As experiências de conselhos municipais avançam, no âmbito estadual já são mais tênues, no âmbito federal não temos ainda um formato.

Octávio Paz, um severo crítico das utopias da esquerda, ainda nos anos 60 dizia que “a utopia é filha da crítica”. Você acha que a esquerda brasileira sistematizou uma crítica da fase atual do desenvolvimento do capitalismo no Brasil capaz de abrir espaço para formular novas utopias?
Estamos devendo essa crítica. A compreensão dos limites, das potencialidades, da formação política, econômica, social e cultural do Brasil constitui essa crítica que daria condições para construirmos a utopia do presente com a visão de futuro. Temos de sistematizar essa crítica porque somos um país com características singulares de dimensão. A partir dessa crítica, o grande desafio para nós é construir as bases de um projeto de país. Por exemplo, una crescimento com qualidade de vida, renda e emprego, democracia com desenvolvimento, soberania com democracia e desenvolvimento... Essas coisas foram tratadas sempre separadamente no Brasil. Na transição teve democratização, mas não teve crescimento nem justiça social. Com os militares teve crescimento, mas não teve democracia nem igualdade social.

Hoje, devemos agregar mais um elemento que precisa ser enfrentado, o caráter regional e federativo do Brasil, pois tem impacto no sistema tributário e fiscal nacional. E com as novas exigências da hegemonia de direita no mundo, as novas exigências das políticas neoliberais, da globalização, que tem sempre os dois lados. Primeiro, apostamos que é possível um projeto de desenvolvimento nacional no país, mas temos de destrinchá-lo. Segundo, qual é a qualidade desse desenvolvimento? Terceiro, nós vamos integrar o país regionalmente e socialmente nesse modelo de desenvolvimento? E como combinar esse modelo de desenvolvimento, que é o ponto estratégico, com meios – meios não podem virar fins? Equilíbrio fiscal em função de uma dívida monstruosa construída pelo governo anterior, taxa de juros muito elevada são meios que não podem virar fins.

A grande tarefa do PT agora no governo é elaborar as bases de um projeto de desenvolvimento nacional. Nós temos as referências do nacional-desenvolvimentismo, que teve suas limitações. Temos de negar o poder neoliberal de gestão da macroeconomia e superar as experiências meramente locais de poder ou a visão da plataforma de reivindicação dos movimentos sociais para a idéia de um projeto de país. Coloque um outro elemento nessa utopia construída a partir da crítica: ter uma visão processual de como construir no Brasil esse projeto. Se de um lado é verdade que as mudanças que ocorreram no Brasil foram processuais, em alguns momentos, e a esquerda não compreendeu isso e ficou isolada, de outro, o processo não pode virar fim, senão ficamos sem o sonho, sem a utopia.

Você mencionou o pacto federativo num novo projeto de desenvolvimento. Como operar essa relação entre os Estados federados e a União?
Há um ponto de estrangulamento, que se dá no sistema tributário e no financiamento do Estado. É preciso pensar um caminho institucional de tratar essa questão. Na Constituinte de 1988, nós equilibramos favorável aos Estados e municípios. Com os planos econômicos pós-Constituinte, houve uma centralização na União. Nosso governo tem feito um esforço para equilibrar, mas temos desequilíbrios. As soluções que estão aí são parciais e pontuais. Uma solução global deve fazer parte de um projeto nacional. Primeiro, o desenvolvimento tem uma dimensão regional muito forte. Segundo, não há desenvolvimento sem financiamento público, mesmo no caso de parcerias com o setor privado, há financiamento público na forma de indução, de articulação. Terceiro, precisamos de instituições públicas que promovam essa articulação e, se não potencializarmos o caráter regional desse desenvolvimento, ele terá um eixo Sul-Sudeste – e nós teremos uma diferenciação regional muito forte, refletindo na sociedade. Essa é uma questão estratégica, mexe com o modelo de representação dos Estados no Congresso Nacional, com o papel do Senado e reflete no sistema eleitoral.

Nesse início de século 21, o que é ser esquerda no Brasil? Qual é o papel do Partido dos Trabalhadores, para os próximos 25 anos?
Ser de esquerda é o compromisso militante com a luta por igualdade social. Independentemente de erros e acertos nos regimes dirigidos pela esquerda, essa foi uma marca e temos de universalizá-la. A democratização da sociedade tem de implicar mudança substantiva na vida das pessoas. Esse pressuposto deve ser o norteador e a base constitutiva desse projeto do PT, nos próximos 25 anos, e para essa militância, no governo, na oposição ou no movimento social. Temos de pensar o modelo econômico de desenvolvimento, o papel do Estado, as políticas públicas dentro desse pressuposto.

Não podemos jamais abrir mão do direito das pessoas a ter direitos e de buscar universalizar direitos, e sempre tensionar entre as possibilidades reais e os sonhos. Esse é um desafio que o PT tem de construir. Essa construção envolve uma repactuação de todas as correntes que têm vínculo com a história do partido.

À medida que crescemos e viramos governo, as personalidades podem ficar maior que o partido, e aí precisamos resgatar o papel dos organismos partidários e do coletivo sobre as personalidades.

E, por último, ao longo desses 25 anos, tivemos uma construção vitoriosa, que foi o crescimento dos movimentos sociais organizados. Esse avanço não pode ser desprezado pelo fato de o partido ser governo. Por isso, temos de conviver com o tensionamento, com a paciência, com a negociação, para que esse acúmulo histórico tenha prosseguimento. Existem razões de governo, razões de partido e razões do movimento social, e ao PT cabe sempre buscar o equilíbrio, dentro da visão pluralista, de tolerância política. Essa é a única maneira de equilibrar o PT, com suas características de um partido da crítica, da divergência, do debate público, com o princípio da unidade de ação.

Hamilton Pereira é presidente da Fundação Perseu Abramo