Política

Duas opções estão colocadas para o governo Lula: fortalece as alternativas ao modelo neoliberal, ou seremos sustentadores ingênuos desse modelo

 

Nosso momento histórico é único: ou o Brasil muda com Lula, ou se joga fora essa grande chance, construída por ele e pelo PT. A perspectiva mais provável é a da mudança, dada a tendência de se renovar o enlace histórico da liderança carismática de Lula com o impulso irrefreável acumulado nestes últimos 25 anos nas classes populares e nas bases partidárias do PT – partido que nasceu das lutas populares e se forjou na luta política graças, antes de tudo, à têmpera de sua militância, que ainda promete.

É fundamental dar prosseguimento a “uma utopia Brasil-diferente que já está em curso, gestada no seio das classes populares, dos sindicatos, das centrais, dos movimentos, das comunidades, das igrejas, em segmentos das elites econômicas, intelectuais e artísticas, em alguns partidos que compõem o governo Lula. Tais atores criaram expressivo poder social de resistência e de libertação que está se canalizando em poder político, sem se esvaziar como poder social. E já realizaram tanta acumulação que, articulados, podem comparecer como novo sujeito histórico, capazes de reconstruir o Estado e conferir, após 2006, outro sentido ao poder."1

Como dar continuidade, no Processo de Eleições Diretas (PED) 2005 e nas eleições de 2006, ao processo vitorioso, resgatando, ao mesmo tempo, utopias que ficaram a meio caminho? Priorizo algumas delas:

Primeira utopia – estabelecer categoricamente como eixo central e como objetivo principal de nossa ação política, administrativa e de propaganda a sustentabilidade da sociedade brasileira, impulsionando a ecopolítica, arcando, sem vacilações, com as conseqüências de mudanças no processo produtivo – na economia – e na correlação das forças aliadas no poder – na política.

Segunda utopia – recuperar a imagem de partido político ético, transparente, coe­rente, nacional e democrático que o PT inaugurou na política brasileira. Temos de manter a tradição – um braço no Parlamento e outro no movimento real da sociedade. Recuperar a imagem de um partido de caráter nacional, com uma democracia que contemple a todos os filiados, que opere sem sufocar as minorias regionais ou de tendência. Além de serem valores em si, ética, transparência, coerência, democracia e nacionalismo representam o capital político responsável pela imagem positiva do PT que conquistou milhões de votos desde as eleições de 1982. Tal imagem só será mantida se conseguirmos estabelecer a diferença entre o governo do PT e o partido PT – impossível denegar à base partidária, neste momento, o debate franco sobre essa distinção.

Terceira utopia – descentralizar a for­ça de ação que o governo republicano, em uma estratégica linha de dominação, sempre concentrou na União. Favorecer, incentivar e ampliar as iniciativas de prefeituras e câmaras e dos movimentos sociais no plano da luta real. Vivemos um momento favorável ao avanço das grandes massas no Brasil, apesar das pressões do neocapitalismo global, ou talvez até mesmo provocado por elas.

É importante reiterar que apontamos algo diferente, vislumbrando a essência de um novo tipo de revolução, por etapas, operando na sociedade, nos movimentos, na cultura, no partido e no Estado. Por dentro do processo histórico real e republicano e unificando o combate aos males sociais e ambientais, sem dissociar Terra e Humanidade. Propomos uma ação que convença e transforme a partir da força sedutora da palavra, do argumento e do exemplo.

Certos analistas interpretam e julgam subjetivamente, de fora, anatematizando o PT e Lula. Criticam muitas vezes abstraindo-se das circunstâncias em que Lula e o PT operam. A nós, solidários militantes que queremos a mudança urgente do Brasil, amplia a importância de contribuirmos com propostas políticas eficazes para o PT e para o governo que construímos, dando continuidade a um projeto já desenhado e iniciado em nossa prática histórica. Agora são mais necessários do que nunca a dedicação e o heroísmo que moram no coração da militância – único sujeito histórico capaz de revitalizar governo e partido.

Desde o segundo turno das eleições de 2002 que celebramos um filho das classes populares na função mais alta da República. A eleição foi uma grande vitória de Lula, do PT, dos partidos aliados, dos pobres, do povo brasileiro. Outra grande vitória foram os resultados positivos acumulados em dois anos, a despeito do contexto desfavorável herdado dos governos anteriores.

Além do equilíbrio das finanças públicas, retomou-se o crescimento econômico, assim como foram empreendidas políticas sociais que começam a surtir efeito no sentido do crescimento e do emprego.

Outro ponto destacável do governo Lula é sua política externa, que busca com eficácia maior integração continental. Lula é reconhecido pelos chefes de Estado como o líder que mais contribui para essa integração. Assessorada por um Itamaraty profissional e competente, a diplomacia do presidente Lula cresce em respeitabilidade e obtém resultados expressivos no intercâmbio econômico-comercial. O país se fortalece com a intensificação das relações bilaterais em todos os continentes.

A integração política e a articulação econômica, entrelaçadas, integram uma mesma estratégia de Revolução por etapas, destinada a redimir historicamente os povos da América Latina e a contribuir para uma Nova Ordem Mundial.

A proposição de uma revolução democrática radicalmente humana, passando por um processo eleitoral que nós teimamos em revolucionar há 25 anos e defendendo como eixo central a sustentabilidade da sociedade brasileira, só é possível porque, antes de ocuparmos o Planalto, duas tarefas políticas históricas foram cumpridas pelos mesmos atores, liderados por Lula, hoje vocacionados a impulsionar a ecopolítica: o fortalecimento da classe trabalhadora brasileira nos embates da luta de classes no campo e na cidade; e a popularização e democratização da política através do PT e de outros partidos, o que possibilitou ao povo um crescimento da consciência social.

Os grandes gestos libertadores estão sendo experimentados por etapas, que se sucedem entrelaçadas, uma fortalecendo a outra: revolução no mundo do trabalho; revolução no mundo da política; revolução no mundo da ecopolítica, a ser impulsionada a partir do PED 2005 e das eleições 2006 – com conseqüências inevitáveis na economia, na política e, esperamos, no segundo mandato de Lula na Presidência.

É por demais conhecida a presença de Luiz Inácio Lula da Silva como líder das duas primeiras etapas. Diante dele estão a oportunidade e o desafio de liderar a terceira.

A ecopolítica ganha espaço à medida que a humanidade consegue articular política e ecologia. A política isolada corre o risco de ser mera busca obsessiva do poder pelo poder. A ecologia aporta novos valores universais e informações científicas para a política, e esta, dada a conotação de poder, de seu pragmatismo, possibilita o alcance de resultados, superando o estágio do ingênuo contemplativo ou da visão strictu senso do ecologismo dissociado das questões sociais. Ecologia e política se hipervalorizam.

A ecopolítica facilita a descoberta e a compreensão da sustentabilidade na medida em que se orienta por uma lógica contrária àquela do desenvolvimento capitalista: na ecopolítica, sustentabilidade ambiental e sustentabilidade social caminham necessariamente de mãos dadas. Não se confunde com desenvolvimento sustentável nem se restringe a ele, posto que a ecopolítica trata mesmo dos mecanismos e espaços de poder para concretizar uma nova sociedade, sustentável em todas as suas instâncias. Também porque o desenvolvimento sustentável poderia no máximo se caracterizar como um meio, um eixo, para o alcance da sustentabilidade da sociedade, sendo sempre mais restrito que esta última.

Sustentabilidade se conjuga com desenvolvimento, mas nem todo desenvolvimento imposto hoje pode ser considerado sustentável, como o capitalista global, gerando, ao mesmo tempo, exclusão e pobreza, miséria social e degradação da natureza. Incentivando o consumismo, o modelo capitalista produtivista governa e administra como se os recursos naturais fossem inesgotáveis, inexistissem gerações futuras. Supõe que a natureza do planeta possa satisfazer a totalidade das populações condicionadas pela mídia a buscar bem-estar na riqueza e no consumo excessivos, implicando um processo de opressão e de exclusão permanentes.

Este é o grande apelo que está colocado para as esquerdas do mundo de hoje: combater de forma integrada os males sociais e ambientais viabilizando a sustentabilidade da sociedade. Todas as políticas deveriam ser traçadas a partir dessa centralidade.

A dificuldade que experimentamos em avançar dessa maneira é que nos habituamos com as lutas sociais, sindicais e políticas da forma tradicional. Nestas, quando travadas, o resultado é sempre de um lado vencidos e de outro vencedores. Ao contrário, na conclusão da luta pelo ambiente em que vivemos, não haverá vencidos e vencedores – ou seremos todos vencidos, ou seremos todos vencedores –, ricos ou pobres, negros ou brancos, santos e pecadores, do Norte ou do Sul, incluídos ou excluídos, homens ou mulheres.

O enigma que se coloca para a humanidade é o caráter revolucionário de que se reveste hoje a ecopolítica. Ao mesmo tempo emerge a demanda de uma nova concepção de revolução, no sentido genuí­no dessa palavra, e não mais ligada irremediavelmente à violência. A verdadeira revolução hoje integra Terra e Humanidade, não se detém no social. É muito mais ampla, complexa e profunda. Nos abre novos desafios e perspectivas presentes na sabedoria de Leonardo Boff e Frei Beto, que nos ensinam que essa é uma revolução baseada numa fraternidade que ultrapassa nosso tempo, exigindo “cuidado” com as gerações futuras, demonstrando uma irmandade atemporal que transborda do ser humano para todos os seres.

O trabalho organizativo na base da pirâmide social tem a tarefa urgente de expandir a consciência na integração Terra e Humanidade – mística que inundou o coração de São Francisco de Assis, personalidade simbólica do milênio2,/sup>.

Referência em nosso país é o que se pratica no Acre. Ali se agia pensando que desmatar era desenvolver, o que está sendo corrigido por experiências como a florestania, política executada sob a batuta do jovem governador Jorge Viana (PT), coordenando ações que integram cadeias produtivas social e ambientalmente sustentáveis e com elevação do valor agregado dos produtos, além de promover a distribuição da renda. Nessa orientação, exemplo de luta é o do saudoso Chico Mendes e o da companheira Marina, hoje à frente do Ministério de Meio Ambiente, que goza sempre de nosso total apoio. Não pode ser um equívoco histórico defender a vida em sua essência. Por mais que a modernidade indique novas direções.

Os modelos praticados no Acre podem ser aplicados a outros Estados, criando alternativas de desenvolvimento, reduzindo os efeitos negativos da pecuária extensiva, da extração predatória de madeira e das monoculturas em larga escala, especialmente as transgênicas. Cabe lembrar a importância de mudarmos também a política de comercialização da madeira, do gado e da soja, poupar o Cerrado, a Mata Atlântica e sua rica biodiversidade, bem como a Amazônia e sua riqueza florestal. É importante lembrar o potencial de mercado que o Brasil possui no campo da biotecnologia, dada a imensa riqueza de sua biodiversidade, e o significado disso no mínimo para a indústria farmacêutica, cosmética e outras é superior ao valor econômico que a pimenta, o gado e a soja juntos hoje representam.

A agricultura familiar merece, pelo menos, o mesmo cuidado e atenção que o agrobusiness. Ela é responsável pela maior parte da produção agropecuária em nosso país, favorece a estruturação de arranjos produtivos locais e regionais e implica geração de um número significativamente mais elevado de postos de trabalho por hectare. Se por um lado é inegável o significado do governo Lula para as classes populares, não se pode desconhecer que os primeiros passos dados não estão isentos de dificuldades, polêmicas e dissensões, em especial de aspectos negativos na macroeconomia, com reflexos diretos sobre o modelo de desenvolvimento estimulado pelo Estado.

Na ausência de políticas condizentes com a visão de mundo do PT para juros, superávit primário e câmbio, somos convidados hoje a criar condições para que isso aconteça e superar a atual política monetária. Questionadas têm sido, também, a evolução das políticas sociais e a implantação da reforma agrária, a promoção da inclusão social e a distribuição da riqueza gerada.

Passados dois anos de governo, torna-se fundamental ampliar e fortalecer progressivamente as políticas sociais e ambientais. Esse processo requer, entre outros aspectos, a progressiva mudança da atual política macroeconômica.

Convergir e compatibilizar esses dois processos é fundamental para garantir a sustentabilidade das políticas sociais e ambientais e evitar mudanças intempestivas na economia, com conseqüências imprevisíveis para os planos político e social. A amplitude, a relevância e a gravidade das demandas sociais e ambientais, a dimensão da capacidade produtiva e a complexidade econômica em nosso país imprimem a essa compatibilização um elevado grau de dificuldade.

Por sua relevância e complexidade, constitui uma ação a ser intensificada neste governo, mas devemos trabalhar para que encontre em um segundo mandato de Lula melhores condições para se consolidar. Importante ressaltar que sua solução requer, necessariamente, o estabelecimento de um diálogo plural e construtivo, o que amplia sua relevância também como tema central dos debates não só no interior do governo como também no PT.

Uma vez que chegamos ao governo, temos de saber conduzir equilibradamente, sem o Estado, o(s) partido(s) e a sociedade, cada um exercendo seu papel. É bem verdade que historicamente, na prática tanto da direita como da esquerda, existiu e existe uma tendência de superposição do Estado, engolindo o partido e sufocando as forças sociais. Mas existe também a tendência de idolatrar a ação dos movimentos sociais, freqüentemente sem conhecê-los e sem vivenciá-los, tentando até dirigi-los e manipulá-los na base do voluntarismo.
Duas opções estão colocadas para o governo Lula nas eleições de 2006 e no segundo mandato: ou ele se anuncia e põe na prática política sua vocação de enfrentar e/ou fortalecer progressivamente as alternativas existentes ao modelo neoliberal e à lógica das elites, abrindo novos horizontes para a História; ou seremos, com toda a potencialidade do Brasil, no mínimo, sustentadores ingênuos do projeto neoliberal, gerador dos pobres de hoje e de amanhã, bem como destruidores do planeta.

A perspectiva é de, na melhor das hipóteses, prevalecer a primeira opção, e assim promovermos avanços progressivos. O primeiro mandato vem se deparando com obstáculos diversos e imprevistos para fazer avançar propostas de grande valor para o país, para o povo brasileiro, defendidas historicamente pelo PT. Creio ser de grande importância trazer para o debate com nossa militância o caráter progressivo e a dimensão temporal necessária ao avanço das políticas públicas, que venhamos a estabelecer como prioritárias para o partido, a partir do PED, em setembro deste ano.

Impossível não abrir o debate sobre as duas opções acima citadas nas discussões do PED 2005 e verificar com qual delas a maioria partidária se posicionará a partir da base.

Não é hora de vacilações ou desânimos que nos levem a abandonar a luta. Ao contrário: é hora de intensificarmos nosso trabalho, somarmos forças e esperanças e fazermos com que as eleições diretas que ocorrerão em nosso partido reflitam nosso mais profundo desejo de restabelecer a transparência, a ética, a coerência, a democracia e o caráter nacional como os verdadeiros pilares de nossa militância e de nosso partido.

Tilden Santiago é embaixador do Brasil em Cuba. Foi deputado federal (PT-MG) por três mandatos e secretário estadual de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável em Minas