Política

O PT precisa, desesperadamente, de uma estratégia de médio e longo prazo, semelhante à elaborada pelo 5º Encontro

Em setembro de 2005 o PT vai eleger suas novas direções e realizar o 13º Encontro Nacional. Se prevalecer a inércia, o debate será ritual e limitado a nossa tática e candidaturas para 2006. Ocorrendo isso, será um desastre. Pois nosso partido precisa, desesperadamente, de uma estratégia de médio e longo prazo, semelhante à produzida pelo 5º Encontro Nacional do PT, em 1987.

Naquela ocasião, produzimos uma síntese política que nos acompanhou por muito tempo: a defesa de um programa de reformas estruturais, democráticas e populares, articuladas com o socialismo; a constituição de um novo bloco histórico, hegemonizado pelos trabalhadores; uma estratégia de acúmulo de forças, combinando luta social, luta institucional, construção do partido e de um movimento socialista de massas; e um caminho para o poder que passava pela disputa e pelo exercício do governo federal.

A síntese política aprovada pelo 5º Encontro foi muito afetada pelas mudanças ocorridas no mundo e no Brasil, de 1987 até 2002, bem como pelas reações das diferentes maiorias que dirigiram o partido nesse período. Entretanto, parte importante foi mantida e integra as razões que nos levaram a vencer as eleições presidenciais.

Agora, porém, acabou. Chegamos lá, mas sem combustível teórico, programático e estratégico para prosseguir viagem. Precisamos urgentemente elaborar uma nova síntese política, que consiga nos orientar num mundo bastante diferente (e sob muitos aspectos pior) daquele de 1987.

Essa necessidade só não é percebida por três setores: os que estão satisfeitíssimos com os rumos atuais do partido e do governo, aqueles que consideram o PT como um trampolim para sua “carreira política” e também aqueles que reputam nossos descaminhos “traição”.

A elaboração de uma nova síntese política pressupõe um diagnóstico do atual período histórico que vá além do impressionismo tão comum em nossas análises. E que perceba que estamos vivendo, em âmbito internacional, um momento semelhante ao do final do século 19, quando o capitalismo entrou numa nova fase, para a qual Marx era fundamental, mas não suficiente. Naquele momento, dirigentes como Kautsky, Bernstein, Rosa Luxemburgo, Hilferding, Bukharin e Lenin dedicaram-se pessoalmente ao estudo da nova situação e propuseram sínteses explicativas (contraditórias entre si), que foram decisivas, para o bem e para o mal, nos acontecimentos posteriores.

Agregue-se a isso o fato de estarmos vivendo, no Brasil e na América Latina, situação semelhante à do início do século 20, em que o modelo então hegemônico – o liberalismo agroexportador, associado ao imperialismo, especialmente britânico – entrou em crise, seguindo-se um longo período de convulsão e tentativas de gestar um novo modelo.

No Brasil, aquele novo modelo incorporou os trabalhadores urbanos, mas de forma subalterna e preservando os interesses das antigas classes dominantes (excluindo, por isso mesmo, os trabalhadores rurais dos novos direitos sociais e políticos). Então, a esquerda dividiu-se entre os que ficaram à margem do processo e os que sucumbiram a ele, associando-se aberta ou veladamente às diferentes vertentes do projeto capitalista.

Um diagnóstico do atual período histórico precisa levar em conta, ainda, que vivemos sob uma hegemonia capitalista sem paralelo na história. Se é verdade que isso agrava as contradições do próprio capitalismo e demonstra a necessidade urgente de sua superação histórica, é verdade também que aumenta a barbárie e cria imensas dificuldades práticas à luta pelo socialismo.

Especialmente porque seguimos sofrendo as ondas de impacto da crise do socialismo. Fiquemos no anedótico, sem nomear os santos: as declarações e atitudes de muitos companheiros (no masculino) que estão à frente de importantes cargos federais demonstram como cresceu devastadoramente a influência ideológica do liberalismo, e as juras de amor pela “República”, pelo “crescimento” e pelo “desenvolvimento” revelam como são limitadas as visões de alguns que, é bom dizer, estão do melhor lado do governo.

Incluam-se na crítica os que apresentam governos como o de Kirchner e o de Chávez como “alternativas”. Merecem todo o nosso apoio, por certo; e em vários aspectos fundamentais estão à esquerda do governo que praticamos no Brasil. Mas não há que tomá-los como alternativa sistêmica. É preciso criá-la, e certamente sua criação passa pelo combate travado por governos, partidos e movimentos imperfeitos. Mas não podemos confundir os meios com os fins.

No pano de fundo das dificuldades vividas no atual momento histórico estão as mudanças sofridas pelas classes trabalhadoras, seja por impacto da evolução “normal” do capitalismo, seja por impacto das políticas neoliberais, de anos de crise econômica e da redução de fatores coesionadores como o próprio socialismo.

O refluxo dos movimentos sociais é um dado objetivo, de cuja reversão depende grande parte do sucesso de uma estratégia alternativa. É bom que se diga que a reversão exige combinar medidas econômicas práticas – como reforma agrária e urbana, geração de empregos, aumento dos salários diretos, ampliação das políticas sociais – com políticas culturais e de comunicação de massa, muito mais fáceis de realizar, agora que estamos no governo.

Diante de quadro tão complexo, é natural que haja quem considere possíveis apenas duas alternativas: a otimista e a pessimista. Na alternativa otimista, o PT se mantém no governo, mas enquanto administrador do status quo. Na pessimista, os beneficiários do status quo afastam o PT do governo, pondo fim ao que seria apenas mais um hiato bizarro de nossa história republicana.

Não devemos subestimar essas possibilidades. Elas seriam versões tupiniquins de experiências vividas pela social-democracia em outros países e constituiriam uma versão terceiro milênio da tradição continuísta da sociedade brasileira.

Entretanto, outras alternativas são possíveis, entre elas a de que o PT produza as energias sociais, políticas e intelectuais necessárias para enfrentar os desafios do atual período histórico.

Isso só acontecerá, por óbvio, se compreendermos que a “estratégia” atualmente hegemônica no partido é, na melhor das hipóteses, incompleta, ou, na pior das hipóteses, contrária aos nossos objetivos.

Vale esclarecer que coexistem, no partido e mesmo no governo, duas estratégias. Uma delas é majoritária, a outra é hegemônica. A estratégia majoritária corresponde à vontade, tanto das bases quanto de grande parte dos quadros, de que nossa atuação partidária e nossa ação de governo sejam coerentes com os objetivos nacionais, democráticos, populares e socialistas. Mas essa estratégia não consegue se traduzir, na maior parte das vezes, em ações práticas. Ou, quando o faz, é de forma imperfeita, parcial, porque está manietada pela estratégia hegemônica.

Já a estratégia hegemônica é aquela implementada, principalmente, por aqueles que um crítico radicalmente irônico denominou de “ministros burgueses”: Meirelles, Rodrigues, Furlan e... Palocci. Estratégia que conta, é bom dizer, com o apoio do ministro José Dirceu, embora este – como é da sua tradição – aparente sempre estar alguns graus à esquerda de sua posição real.

A estratégia hegemônica não é neoliberal, embora faça grandes concessões à doutrina neoliberal e aos interesses da especulação financeira. É mais adequado denominá-la “desenvolvimentismo conservador”: quer a retomada do crescimento, almeja desenvolver o país, pretende ocupar um lugar destacado no desacerto das nações, mas quer fazer tudo isso sem rupturas, nos marcos do modelo herdado (para alguns, nos marcos do modelo herdado de FHC, ou seja, de hegemonia do capital financeiro; para outros, nos marcos do modelo nacional-desenvolvimentista herdado da ditadura militar, ou seja, de hegemonia do grande capital monopolista, do latifúndio e do imperialismo). Há até quem, como o ministro Dirceu, queira superar tais modelos, mas através da “competição pacífica” com eles. Ruptura, nem pensar!

Nos dois primeiros anos de governo essa estratégia mostrou do que é capaz: numa conjuntura internacional favorável, segurou o crescimento nacional em índices inferiores ao que seria possível e necessário; através do superávit primário e da taxa de juros (campeã do mundo), ampliou a transferência de recursos públicos e privados em direção ao capital financeiro; estimulou a dependência do país frente a superávits comerciais basea­dos principalmente no agronegócio, ou seja, num mercado insuficiente, fortemente instável e socialmente regressivo; não distribuiu riqueza, porque não comporta reformas estruturais; suportou, com muita má vontade, uma distribuição marginal de renda e um certo crescimento nos empregos, ambos insuficientes para repor aquilo que foi perdido nos últimos anos – motivos pelos quais não conseguiu reverter a brutal crise social em que estamos metidos já há muito tempo.

Prefiro não falar do que essa estratégia será capaz, num cenário (cada vez mais provável) internacional adverso, que evidenciará ademais o quanto nossa dependência externa continua alta e perigosa.

Por tudo isso e por corroer nossa base social e política, o “desenvolvimentismo conservador” é uma estratégia venenosa. Pode nos matar no curto prazo, através de uma derrota eleitoral em 2006. Como pode produzir uma derrota política, em que vencemos as próximas eleições presidenciais, mas sem condições de levar adiante as transformações almejadas pelo PT, nos últimos 25 anos. Num e noutro caso, trata-se de uma estratégia incapaz de enfrentar os desafios do atual período histórico.

Frente à hegemonia do “desenvolvimentismo conservador”, há diferentes reações na esquerda socialista brasileira: muitos caem no desencanto e acusam o governo de ser “neoliberal”; parte se agarra à ilusão de que a alternativa estratégica estaria nos “movimentos sociais”; outros tentam construir uma alternativa eleitoral, repetindo nossos erros, sem possuir nossas virtudes; diversos investem na construção de “partidos revolucionários”, à espera do grande momento que enxergam em cada esquina perigosa da história; vários permanecem no PT, mas ressuscitando a tese de que ele seria um “partido tático” (leia-se: uma legenda eleitoral, posição muito forte também em alguns moderados de nosso partido).

A ampla maioria do PT não reagiu dessa maneira, tampouco defende acriticamente o governo. A maioria de nosso partido – que, felizmente, é bem melhor que a maioria de nossa direção – percebe os riscos que corremos, combate as críticas esquerdistas, tem consciência dos movimentos ameaçadores que estão sendo feitos pela direita tucano-pefelista, quer que nosso governo dê certo e espera por mudanças.

Mas essa maioria ainda não foi capaz de criar uma síntese política correspondente à sua vontade. Só o conseguirá se estiver disposta a derrotar a estratégia que hoje é hegemônica no partido e no governo.

Aquela síntese (ou nova estratégia) tem de partir do diagnóstico do período histórico, a que nos referimos. Deve recuperar o socialismo como objetivo real (e não retórico ou ritual) do partido. Deve reafirmar o PT como instrumento de disputa de hegemonia e luta pelo poder, algo que inclui disputar eleições e gerenciar mandatos executivos e parlamentares, mas não se reduz a isso. Deve preservar a autonomia do partido frente ao governo, até porque, num governo de centro-esquerda, alguém tem de ser de esquerda, e esse alguém é o partido, não um determinado ministro. Deve ressuscitar a noção de que somos um governo de mudanças, não arautos do ajuste fiscal e do equilíbrio monetário. Deve apontar os caminhos para a constituição de outro tipo de governabilidade, estruturada pela aliança entre nossa força institucional, os partidos de esquerda e os movimentos sociais, e não uma governabilidade de tipo parlamentarista, refém da maioria conservadora do Congresso. E deve, principalmente, retomar e atualizar o programa democrático e popular.

Visando o pós-neoliberalismo, isso significa atualizar e precisar as famosas medidas antilatifundiárias, anticapitalistas e antimonopolistas. Trata-se de enfatizar, por exemplo, a defesa do espaço econômico nacional, a ampliação do investimento estatal, o estímulo às pequenas e médias propriedades, a universalização das políticas sociais. Sobre isso, trata-se de perceber que a criação de uma área pública não dominada pelos interesses capitalistas é uma das materializações concretas do programa socialista, no período histórico em que estamos vivendo. Além de possuir um potencial insubstituível, tanto para estimular o crescimento quanto para viabilizar o tipo de desenvolvimento que pretendemos.

Evidentemente, nada disso será possível sem quebrar a hegemonia do capital financeiro, e a crença, correlata, de que o país conseguirá crescer e se desenvolver, distribuindo renda, riqueza e poder, graças aos investimentos privados. Sem investimento público e estatal, não haverá crescimento e desenvolvimento de nenhum tipo, muito menos aquele voltado às maiorias.

O partido fará esse debate? Mudará de direção? Mudará a direção? Não temos como saber. Mas nós faremos a nossa parte. Esperamos que a maioria faça a sua.

Valter Pomar é terceiro-vice-presidente nacional do PT