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A cada dia, cem pessoas perdem a vida, vítimas de armas de fogo. A aprovação do Estatuto do Desarmamento pode ser considerada um marco na luta contra a criminalidade.

O sucesso das campanhas de recolhimento de armas de fogo deflagradas no país reforça a convicção em torno da eficácia do Estatuto do Desarmamento como instrumento de uma política positiva de combate à violência. A inclusão do tema controle de armas na agenda nacional traduz o compromisso do governo brasileiro de atender aos reclames de uma sociedade hoje assustada e intimidada.

A cada dia, cem pessoas perdem a vida, vítimas de armas de fogo. Em números absolutos, o Brasil é líder nesse vergonhoso ranking mundial. O problema vem crescendo e nos remete à situação análoga à de uma guerra civil. Entre 1980 e 2000, a taxa de mortalidade por homicídio aumentou em 130%. De acordo com a Secretaria Nacional de Direitos Humanos do Ministério da Justiça, a taxa de homicídios é de 49,7 por 100 mil habitantes. No início da década de 80, era de 11,7.

Ainda mais lamentável é constatar que nossos jovens estão morrendo de forma estúpida. São rapazes entre 17 e 24 anos, em sua maioria moradores das periferias das grandes cidades, os que mais matam e os que mais perdem a vida por armas de fogo. Entre 1991 e 2000, o número de vítimas de homicídios nessa faixa etária nas capitais cresceu 47,3%. É cada dia mais comum a convivência de crianças com as armas. Algumas estimativas apontam para a existência de centenas de pequenos “soldados” do tráfico, todos armados.

Ao propor o Estatuto do Desarmamento, o Congresso atendeu à vontade majoritária da população de dar fim à violência crescente, parte dela resultante do descontrole do uso de armas de fogo. A violência criminal, nos revelam as pesquisas de opinião, é uma das principais preocupações do brasileiro.

Seria ingênuo pensar que a lei sanará de forma milagrosa todas as mazelas resultantes da criminalidade. Não se ambiciona tal efeito. Para isso, seria necessário resgatar nossa imensa dívida social, garantindo emprego, saúde e educação, o direito integral à cidadania. O governo Luiz Inácio Lula da Silva tem se dedicado às políticas de crescimento e desenvolvimento que, estamos certos, irão propiciar uma vida melhor ao nosso povo, em especial, aos mais desfavorecidos.

O Estatuto é um primeiro passo na jornada por um país mais seguro para o cidadão, dada sua capacidade de resposta mais imediata à redução da violência cotidiana. A lei de controle da venda e uso de armas é um instrumento inovador já em poder das forças policiais para limitar o trânsito dessas armas e reduzir o número de crimes cometidos por marginais e aqueles gerados por discussões banais, entre vizinhos, nos bares ou no trânsito. Os crimes de momento. De ocasião. Em São Paulo, por exemplo, estima-se que 50% dos homicídios são cometidos por pessoas sem histórico criminal e por motivos fúteis.

Se é verdade que lei nenhuma, sozinha, pode combater a delinqüência sofisticada, de grandes grupos que se utilizam do tráfico de armamento de grosso calibre, também é verdade que o Estatuto salvará milhares de vidas, ceifadas não por metralhadoras e bazucas, mas por armas leves. As estatísticas mais uma vez vêm nos lembrar que mais pessoas têm sido mortas e feridas por armas de pequeno porte do que por armas pesadas. Elas respondem por 63% de todos os homicídios no país, conforme o relatório “Vidas Despedaçadas”, divulgado pela Anistia Internacional em 2003, em plena discussão calorosa do Estatuto do Desarmamento no Congresso Nacional.

A arma de pequeno porte é um risco potencial mesmo quando supostamente guardada em casa, sob a justificativa de proteção pessoal. A simples existência dela dentro de uma residência aumenta o risco de uma tragédia familiar. A mulher brasileira corre duas vezes mais risco de ser assassinada pelo marido ou companheiro do que por um desconhecido.

A respeito do chamado armamento leve, o secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, disse que o preço cobrado em vidas humanas pelas armas de pequeno porte ultrapassa o de todos os outros armamentos. Annan sustenta que elas poderiam ser descritas como “armas de destruição em massa” e lamenta a inexistência de um regime global de não-proliferação para limitar seu alastramento.

No Brasil, como em outros países, as armas de pequeno calibre também têm sido usadas de forma irregular e criminosa por integrantes das próprias forças policiais, que vitimam principalmente a discriminada população negra e pobre das grandes cidades. A lei regulamenta o uso de arma por policiais, reduzindo as possibilidades de sua utilização em atos “clandestinos”.

Mas o Estatuto também não se descuida do combate ao tráfico de armas pesadas. A ampliação do cadastro do Sistema Nacional de Armas aumentará a fiscalização sobre produção, venda e exportação, além de propiciar melhores condições para que a polícia e a Justiça possam identificar e prender os traficantes.

A confiança na nova legislação de controle do uso de armas de fogo não é subjetiva. Vemos com satisfação que o Estatuto começou a ser adotado com excelentes resultados. A Polícia Federal iniciou o trabalho de recebimento de armas entregues espontaneamente pela população, obtendo um saldo bastante positivo. Até o dia 8 de abril, a PF informa o recolhimento de 274.017 armas. Para facilitar a operação, abriu a possibilidade de recolhimento das armas em entidades civis, associações ou nas igrejas, sempre com o acompanhamento de autoridade policial.

Na vanguarda de campanhas de desarmamento, o Paraná anunciou no ano passado redução em torno de 30% no índice de ocorrências a mão armada em Curitiba. Outros Estados também não tardaram a aderir ao movimento nacional pelo desarmamento. Em São Paulo, dados da Secretaria de Segurança Pública indicam que o Estatuto começou a surtir os primeiros efeitos, tendo sido verificada uma redução em torno de 5% nos homicídios dolosos entre janeiro e setembro de 2004, na capital.

Em artigo sobre a análise das informações, comparou-se o volume previsto de apreensões de armas com o volume observado, tendo sido registrada queda do número de armas apreendidas pela polícia. Como não houve redução da atividade policial, presume-se que a entrada em vigor do Estatuto fez com que muitas armas fossem entregues voluntariamente, deixando de ser apreendidas. Além disso, menos pessoas teriam saído armadas na rua.

A indenização pela entrega da arma assegurada no Estatuto mostrou-se uma estratégia eficiente. Ao propor tal pagamento em dinheiro, uma espécie de recompensa pela atitude cidadã, a legislação estimulou a pessoa que tem uma arma em casa e não sabe direito o que fazer com ela a simplesmente repassá-la ao Estado, de forma legal, sem repressão e sob sigilo.

Mas a indenização também se reverte em um duro golpe contra o crime organizado, que muitas vezes se vale do roubo de armas de cidadãos comuns para abastecer seus integrantes. Mais de 30% das armas apreendidas pela polícia têm origem legal. Foram obtidas por marginais por meio de roubo, furto ou revenda indevida. De acordo com dados da Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro, 33% das armas confiscadas no Estado entre 1951 e 2003 foram legalmente registradas antes de cair nas mãos de criminosos.

Para garantir que depois de recebidas pelas autoridades essas armas eventualmente não voltem para as ruas, a lei prevê a destruição do produto de apreensão ou entrega espontânea. Isso está sendo feito. A medida traz credibilidade ao Estatuto. Dá ao cidadão a certeza de que realmente o armamento entregue sairá de circulação.

O governo federal estima que haja no país 20 milhões de armas, a maior parte ilegal. Em recente pesquisa feita pelo Instituto Viva Rio, o número aproximado de armas de pequeno porte em circulação é de 17,3 milhões, 51% em situação ilegal. Vamos, pois, retirá-las da rua. Para isso, reafirmo: é importante que a população seja informada da relevância da nova legislação. Mais que isso, é preciso esclarecer os cidadãos sobre mitos criados pelos opositores do desarmamento, que tentaram, sem sucesso, subestimar os efeitos de sua aplicação.

Cabe novamente citar a experiência do governo do Paraná. Por meio da campanha de desarmamento, o Estado derrubou de forma irrefutável a principal tese do lobby das armas, segundo a qual o Estatuto veio para “desarmar os cidadãos de bem”, deixando armados os marginais. Nada mais equivocado. Comprovou-se que, de cada dez pessoas flagradas com armas de fogo em situação ilegal, oito tinham antecedentes criminais, ou seja, não poderiam ser classificadas como “de bem”. São pessoas que certamente portavam arma com intenção criminosa.

É preciso ressaltar que o cidadão de bem não estará impedido de possuir um revólver. Tudo o que precisa é provar sua real necessidade e a aptidão para o manuseio. Não são requisitos incomuns ou despropositados. Ou não se faz necessária a realização de treinos e provas para a obtenção da carteira de motorista, para os que desejam guiar um carro?

Não obstante o enorme pesar por vidas perdidas, temos de nos lembrar que a guerra urbana também precisa ser avaliada sob seu desastroso perfil econômico. A violência consome cerca de 10% do nosso Produto Interno Bruto (PIB). Enquanto o custo médio de um doente atendido pelo Sistema Único de Saúde (SUS) é de R$ 380, o de uma vítima da violência gira em torno de R$ 580. É mais fácil, mais socialmente louvável e economicamente justificável prevenir o mal.

Parlamentares, governo e sociedade, estou certo, estão confiantes de que o Estatuto fortalece o esforço pela redução da demanda e do número de armas disponíveis no país. Foi uma luta árdua para chegar à legislação, mas nós, legisladores e representantes de entidades da sociedade civil, sentimos o prazer do dever cumprido. Foi preciso muita negociação política, muito jogo de cintura e resistência para driblar a persistência de forças contrárias ao desarmamento. Fomos mais fortes porque tivemos ao nosso lado a opinião pública.

A lei começou a ser costurada durante a convocação extraordinária do Congresso Nacional em 2003. Foi criada uma comissão mista para sistematizar os projetos sobre uso de armas em tramitação nas duas Casas. Eram mais de 70 e estavam engavetados. Na função de relator na comissão e em negociação estreita com os senadores, elaborei o primeiro texto consensual, depois da análise profunda das propostas existentes, inclusive das sugestões enviadas pelo Executivo. O projeto foi aprovado por unanimidade na comissão mista e na primeira votação no plenário do Senado. Comemorar, no entanto, ainda era temerário.

Ao ser remetido à Câmara, o Estatuto foi alvo de constantes ataques e acabou sendo totalmente desfigurado durante sua tramitação pela Comissão de Segurança Pública. Envidamos esforços para retomar o projeto original. Foi uma nova batalha, mas, cumpre-me citar, vitoriosa, graças ao apoio efetivo e constante de parlamentares favoráveis ao desarmamento, de organizações não-governamentais, da mídia – que captou o anseio da sociedade por um Brasil melhor – e da própria sociedade. No dia 22 de dezembro, o Estatuto foi sancionado pelo presidente Lula.

Havia – e ainda há – uma grande resistência de um significativo segmento favorável à indústria das armas. Foi um embate forte, porém, democraticamente, o bom senso prevaleceu. A aprovação do Estatuto pode ser considerada um marco na luta contra a criminalidade. É da nossa convicção de que sua aplicação é um instrumento contra a banalização da vida e o uso indiscriminado de armas de fogo.

A lei é um avanço para a democracia e põe o Brasil em uma posição privilegiada entre os países que claramente precisam encontrar saídas para a redução da violência. A Anistia Internacional alerta que todos os governos devem se responsabilizar e agir em conjunto para controlar a proliferação, a posse e o mau uso de armas.

Entre as ações propostas pela Anistia estão pôr em vigor a legislação existente ou criar nova legislação e fortalecer controles regionais de armas. O Brasil está começando a fazer sua parte, embora desejássemos uma integração mais ativa no debate mundial sobre controle de armas leves como política de direitos humanos. Nos orgulha ver o Estatuto do Desarmamento brasileiro ser recomendado pela ONU a outros países, como legislação paradigma.

Resta agora aprovar no Congresso o projeto que prevê a realização, em outubro, de um referendo para que a população brasileira decida se quer ou não a comercialização de armas de fogo para o cidadão comum. Proximamente, o projeto de referendo será analisado pela Comissão de Constituição e Justiça e, estou certo, será aprovado o melhor texto.

Com a atuação conjunta do governo federal e dos Estados, teremos na lei um exemplo de uma agenda social positiva, que poderá servir de referência mundial. A legislação brasileira tem despertado o interesse internacional. Vários países depauperados pela violência partem para iniciativas similares. A Tanzânia está adotando a indenização pela entrega de armas de fogo, com garantia de preservação da identidade e sem nenhum tipo de punição.

A Suécia iniciou o debate da redução do número de armas de fogo em circulação naquele país. O Brasil definitivamente se inseriu no esforço mundial pela cultura da paz, na esperança de que ela contagie as nações e que a humanidade reproduza a mensagem de “basta” às mortes por armas de fogo.

Luiz Eduardo Greenhalgh é deputado federal (PT-SP). Foi relator do Estatuto do Desarmamento na Câmara Federal