Cultura

Entreatos busca registrar a história, enquanto Peões resgata a história

O desfecho da rota nômade da família dos Lula da Silva desmonta o destino trágico que marcou a maioria das famílias que ousaram sair do agreste miserável para o errante Sul Maravilha do Brasil. Essa história dá filme. Por sinal, já deu vários. Aqui vamos comentar apenas dois: Peões e Entreatos. Com certeza, não foi uma escolha que os diretores, ­Eduardo Coutinho e João Moreira Salles, respectivamente, fizeram por acaso.

Em 2002, encantados pelo fenômeno Luiz Inácio Lula da Silva, candidato pela quarta vez à Presidência da República e com chances reais de ganhar as eleições, Coutinho e Salles resolveram transformar Lula no tema de dois filmes documentários. O primeiro traz a marca do diretor. Com sutilezas e gentilezas, Coutinho faz do território de seu documentário um ambiente propício para que os personagens se sintam à vontade para exibir e expressar seus sentimentos. Seu olhar não explora o sensacionalismo­ – simplesmente registra uma situação e exibe por inteiro a história, sem esteticismos mirabolantes. A câmera permanece parada, quase nunca se mexe. Os personagens, atores de uma realidade, entram em cena despojados de qualquer recurso ficcional – um recurso para o diretor dizer que eles podem ser qualquer um. Essa opção parece seguir a premissa: todos nós temos algo a relatar. Como diz o personagem João Chapéu: “Desde que vim do meu Nordeste, a minha vida é uma novela”.

Ao pensar no filme de Coutinho, não consigo deixar de lembrar do italiano Rocco e Seus Irmãos, no qual o diretor Lucchino Visconti conta o sonho ambicioso da família Parondi em busca de uma vida melhor. Os irmãos Parondi reagem de modos diversos aos impactos da metrópole. Somente Ciro consegue “chegar lá”: ele se torna operário metalúrgico. É justamente na trajetória de vida desse personagem que a família Parondi alcança sua redenção. A relação com a história da família Silva – de Luiz Inácio Lula – é bem evidente.

O filme Peões também é uma oportunidade para conhecermos vários desses personagens que transitam no universo meio ficcional, meio documental de Rocco e Seus Irmãos. Nesse caso, estamos em contato com uma espécie de confraria dos desajustados que tiveram a chance de estar perto dos fatos que definiram a história recente do país. A personagem Socorro, por exemplo, a hoje dona-de-casa em Várzea Alegre, no Ceará, fala do tempo que migrou para São Paulo e chegou a integrar a diretoria do poderoso Sindicato dos Metalúrgicos: “Achava tão bonito quando alguém estava lutando pra conseguir alguma coisa. E naquele tempo lutar, brigar por seus direitos, era proibido, né? A gente via os poderosos mandar nos mais fracos e não fazia nada, e pensei: ‘Será que um dia ainda vou participar dessas lutas?’ E aí eu fui pra São Paulo e fiquei metalúrgica de 1985 a 1994”.

O próprio título do segundo filme documentário, Entreatos, já sinaliza significados mais eloqüentes: um intervalo. Nesse caso, um previsível gran finale de uma trajetória pessoal. Tanto o filme de Coutinho como o de Salles convergem para a mesma direção: enquanto Peões cai na estrada em busca de testemunhas reveladoras, Entreatos faz as honras da festa. Ao nela penetrar sem rodeios, o filme nos faz sentir próximos da humanidade daqueles personagens protagonistas, nos proporciona uma oportunidade única de flagrá-los em sua altivez e até mesmo na intimidade de suas fraquezas. São imagens para a vida inteira. A câmera é nervosa e, ao contrário da câmera de Peões, ela se mexe como num plano-seqüência, sem destino, mas sem perder o objetivo: os bastidores da campanha presidencial. O final todos já sabem desde o início: Lula é eleito presidente do Brasil, com quase 53 milhões de votos.

Entreatos busca registrar a história, enquanto Peões resgata a história. Mas em ambos é o mundo real que interessa, são os personagens engendrados no imaginário do país por sua origem humilde. Em Peões a história está confinada. Através do olhar do diretor se estabelece uma cumplicidade, libertando aqueles sentimentos que habitam na região das sombras, numa solidão solar. A narrativa de Entreatos segue exatamente o movimento inverso: é solar porque a ação da história está acontecendo aqui e agora. O diretor é apenas o interlocutor que comunica o triunfo do personagem protagonista. Ali não há lugar para exibir a solidão, pois todos estão motivados por uma única sinergia – a conquista e a celebração da vitória.

Ao assistir a esses dois filmes, minha sensação foi de euforia. Depois, uma espécie de estranhamento me desnorteou. Fiquei emocionado com os depoimentos reveladores daquelas pessoas. Não eram apenas anônimos tirados de algum álbum de retratos ou de arquivos de imagens. Elas eram testemunhas oculares de uma trajetória. Por intermédio delas se poderia ter uma visão do nosso passado recente, do impasse em que se encontrava a ditadura e do ressurgimento do movimento operário, quando uma nova liderança foi literalmente gerada nos fornos e nos tornos da indústria metalúrgica de São Paulo.

Ao sair da sessão, confesso que me lembrei daquelas imagens da multidão concentrada na Vila Euclides, daquela massa operária irmanada na atmosfera solidária. Ela era, naquele momento, a voz da insatisfação nacional sinalizando um final: a agonia “lenta e gradual” da ditadura. Os militares se encontravam encurralados na solidão do Cerrado, isolados pela insatisfação da classe média ameaçada pela inflação, pelas denúncias de corrupção e pela pressão por mudança exigida pela nova ordem mundial. Por outro lado, a classe operária da região do ABCD metalúrgico ainda não se sentia ameaçada pela globalização, pelo desemprego e pela economia neoliberal. Ao contrário, todos, como o próprio Lula metalúrgico, tinham certeza de que iriam se transformar em famílias de classe média. A perda dessa possibilidade é muito bem observada por Januário (Peões): “Um dia encontrei com o Lula e lhe disse: ‘Quero ver você fazer uma greve com esse povo’. Ele respondeu: ‘Que povo?’ Mostrei-lhe os computadores. Hoje, onde dez faziam, um só faz”.

Em 1979, Lula tinha pouco mais de 30 anos e liderava mais de 200 mil metalúrgicos capazes de fazer parar durante quinze dias a força motriz da produção brasileira, desmoralizando, na prática, a “lei antigreve”. Lula era um líder operário com uma trajetória inusitada para os modelos tradicionais da esquerda e do peleguismo sindical. Era um exemplo para seus liderados. Migrara do Nordeste num “pau-de-arara”, mas agora tinha emprego com carteira assinada, casa própria e automóvel. Ao revisitar personagens que participaram desses episódios, através do filme Peões, pode-se concluir que cada um singrou sua trajetória pessoal e, de alguma maneira, transcendeu a amizade do companheiro Lula.

Em vários momentos do filme fica claro que o paraíso da utopia foi perdido para sempre – e o único lugar onde esse paraíso perdido ainda resiste é a memória. O resto são fragmentos, estilhaços, fotogramas de lembranças retidos nas diversas formas da química da memória – recortes de jornal, páginas de revista, fatos vividos, contados, reinterpretados no dia-a-dia da história e na mais natural das simbioses – objetiva e subjetiva. Isso é o que se vê nos depoimentos de Socorro, Bezerra, Zé Pretinho, Joaquim, Avestil, Djalma Bom, João Chapéu, Nice, Antonio, Bita, Henok, Januário, Luiza, Conceição, Antonio, Elza, Zélia, Miguel, Geraldo, entre outros.

Hoje, o protagonista desses relatos reside, ironicamente, na cidade do futuro e da utopia: Brasília. E eu, ao assistir a esses dois filmes documentários, volta e meia me flagrava perguntando a mim mesmo: “E Lula, o que pensa? Será que ele consegue captar os sinais do passado na memória?” Ele, no entanto, é a própria história, assoberbado pelos confrontos das táticas e das estratégias políticas do país, pelos arranjos partidários, pelos anseios dos banqueiros, dos sem-terra, dos desempregados, dos povos indígenas, nos burburinhos que ecoam na Praça dos Três Poderes, no norte, sul, leste e oeste do Brasil. Lula operário, nas refregas das lutas sindicalistas, neófito da militância e das teorias, que tentava compensar a brutalidade da vida assumindo uma vida comum, como faziam todos os que pertenciam a seu meio social, que freqüentavam os botecos, tomavam cachaça, discutiam futebol, jogavam pelada, dançavam e namoravam. Ele nunca pertenceu aos tradicionais partidos políticos de esquerda. Ao contrário, criou adversários ao optar pela criação de um partido que expressasse o movimento surgido no ABCD metalúrgico paulista. Por pura intuição, pensava que a atividade política poderia ser exercida sem as peias de comando dos caciques políticos.

A atmosfera dos anos de agonia da ditadura foi pesada e sufocante. A imagem de tanques e veículos militares invadindo sindicatos ainda é recorrente. Mas apenas na memória das gerações que foram cúmplices desse tempo. Daí a necessidade de Eduardo Coutinho recorrer às imagens geradas no calor dos fatos: Linha de Montagem1, Greve2 e ABC da Greve3. Zélia, a servente do Sindicato dos Metalúrgicos, relata em seu depoimento o perigo que significava filmar aqueles fatos. Ela conta que um dia o pessoal do sindicato entrou esbaforido, pedindo que ela escondesse uma lata redonda. Os polícias estavam à procura dela. Zélia escondeu a lata numa sacola de compras, jogou uns sapatos velhos lá dentro e saiu com aquilo, espiando se não era seguida, vigiada. “Tinha de esconder. Era a única história que a gente tinha. O filme era Linha de Montagem.”

Assim como Zélia, os 21 personagens que de certa forma gravitaram em torno da estrela Lula, o Metalúrgico são mais do que uma simples foto pregada num caderno ou guardada num baú nostálgico. Luiz Inácio Lula da Silva ainda é o companheiro Lula, mesmo que alguns se refiram a ele como “o meu tudo”, “um segundo pai”, “o nosso hino nacional”. A maioria, a seu modo, se considera vitoriosa, ascendeu socialmente, conseguiu casa própria, aposentadoria, criou filhos, inclusive com diploma de curso superior. Alguns compraram um sítio e retornaram a sua terra de origem, reafirmando aquele velho desejo de que “um dia vou voltar”.

Os tempos da fábrica, do sindi­cato, das greves foram um tempo talvez breve para eles, ainda jovens. Mas longo e decisivo para a experiên­cia de uma vida. A mudança histórica da qual fizeram parte como indivíduos os autoriza a cobrar, para que novas perspectivas tenham significados de mudança. Como recentemente disse Chico Buarque: “De certa forma, Lula trouxe o acúmulo de esperanças de muito tempo para um tempo em que elas não podem mais se realizar”4.

Ao final, só podemos considerar que a realização simultânea desses dois documentários, sobre um mesmo personagem, é uma oportunidade para várias gerações de brasileiros: os que vivenciaram e os que estão vivenciando momentos que, de algum modo, têm origem nesses fatos carregados de sentimentos tão delicados. Na contramão disso tudo estão o desafio e as responsabilidades que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem de enfrentar no dia-a-dia do país: os fatos e as desilusões se acumularam desde que Peões e Entreatos foram feitos.

Em Entreatos Lula afirma: “Sou fruto da consciência política da classe trabalhadora”. Sem perder o fio da memória, Zé Pretinho, em Peões, reafirma essa certeza numa espécie de desafio, na melhor tradição dos poetas nas feiras do Nordeste: “ O partido do Lula é o Partido dos Trabalhadores. Se não gerar nada pra nós, aí o bicho pega”.

Há pouco mais de um século, quando foi inventada a linguagem do cinema, imagens de trabalhadores saindo de uma fábrica foram algumas das primeiras cenas filmadas5. Podemos afirmar que essa é a seqüência seminal da curiosa relação entre o cinema e os operários. Esse é também o desafio de Coutinho e de Salles em Peões e Entreatos: a distância do sonho à realidade, do documentário à ficção.

Aurélio Michiles é cineasta, dirigiu Que Viva Glauber! (1991), O Cineasta da Selva (1997), Gráfica Utópica (2003), Guaraná: Sagrado e Profano (2005). Atualmente trabalha nos projetos O Quintal da Minha Casa, documentário, e Conde Stradelli, filme de ficção.