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A eleição da Mesa da Câmara dos Deputados parece ter renovado o interesse pela reforma política

O recente episódio da eleição da Mesa da Câmara dos Deputados tem suscitado, entre vários outros efeitos, um renovado interesse pela questão da reforma política. Esse é o nome pelo qual se designam várias propostas de mudança na Constituição e nas leis brasileiras que estão em debate com o objetivo de aperfeiçoar as instituições políticas.

O quadro de aparente desarranjo entre direções e bases parlamentares, revelado pela eleição de fevereiro (ou antes, pelo processo que culminou naquela votação), teve desdobramentos importantes no funcionamento do Congresso, desde que o deputado Severino Cavalcanti foi escolhido para a presidência da Câmara. Houve, ultimamente, outras votações para o comando de órgãos legislativos que redundaram em derrotas de candidatos governistas. Foi o que aconteceu na Câmara Municipal de São Paulo e mais tarde na Assembléia Legislativa paulista. O caso da Câmara Federal, porém, assumiu feição mais espetacular. E não só pelo papel estratégico desse órgão no nosso sistema político. Sobretudo pelo fato inédito de que não estão representados na Mesa eleita em fevereiro nem o PT, principal partido da coalizão governista, nem o PSDB, principal partido da oposição. Além disso, não figura na Mesa nenhum deputado dos principais Estados da Federação, outro fato inédito em quase dois séculos de existência do Parlamento brasileiro.

Portanto, não se esgotando em momentânea rebelião do “baixo clero”, o episódio comporta reflexões de maior alcance. Uma delas diz respeito à governabilidade do Parlamento, ou da Câmara mais especificamente. Com a eleição da Mesa e a conduta insólita de Severino Cavalcanti, a direção dos trabalhos parlamentares tem escapado às praxes consagradas, praxes estas que justamente tornam a instituição administrável. A questão da governabilidade, nesse caso, não se refere apenas à perda de hegemonia da aliança governista durante a eleição. Pois, já que essa aliança se desagregou, as bancadas oposicionistas também não atuaram de forma organizada para ganhar o comando da Câmara. Se isso tivesse acontecido, não haveria a rigor nenhum problema de governabilidade. O governo passaria a ter óbvias dificuldades, seria levado a negociar exaustivamente as matérias de seu interesse, mas tudo dentro de marcos previsíveis. Mas a desarticulação foi geral, produzindo um ambiente de incerteza que, para muitos, constitui uma prova da necessidade de introduzir certas reformas no sistema político, sobretudo no tocante à legislação sobre os partidos.

Avaliações negativas sobre os partidos no Brasil constituem uma espécie de senso comum. E não é de hoje: as críticas são recorrentes desde os tempos da monarquia. Em escala internacional, seu caráter problemático é enfatizado por diversas análises comparativas entre países. Scott Mainwaring, por exemplo, afirma que “diante do nível de desenvolvimento econômico do país, o Brasil pode ser um caso único de subdesenvolvimento partidário no mundo”1.

No entanto, quanto à governabilidade parlamentar, o efeito do “subdesenvolvimento partidário” não é tão claro. Estudos sobre o atual regime vêem o comportamento dos partidos sob perspectiva mais favorável. Argelina Figueiredo e Fernando Limongi, em suas análises do Congresso brasileiro, destacam a consistência e previsibilidade do desempenho parlamentar dos partidos, bem como o poder de agenda do Executivo na dinâmica de funcionamento do Legislativo. Mecanismos eficazes, como o grande poder regimental dos líderes, concorrem para incrementar a disciplina partidária2.

Será de grande interesse acompanhar, no futuro próximo, em que medida as evidências colhidas por Figueiredo e Limongi continuam a se fazer presentes, prevalecendo sobre os fatores de incerteza que emanam da nova realidade da Câmara. Pode bem acontecer uma acomodação dos interesses que restaure o ritmo dos trabalhos dentro dos padrões que se vinham consolidando. Nesse caso, a preocupação com reformas para resolver o impasse legislativo tende a esfriar.

Seja como for, a agenda da reforma política não atende apenas à questão da governabilidade. O objetivo de aperfeiçoar a democracia é igualmente fundamental. Mas esses dois valores não são facilmente conciliáveis. Fábio Wanderley Reis ressaltou esse ponto ao mostrar, no debate brasileiro contemporâneo, a tensão entre a finalidade de aprofundar a representatividade democrática e a finalidade de ampliar a eficiência e a estabilidade das instituições. O importante, a seu ver, é garantir o equilíbrio entre as duas perspectivas levando em conta as condições concretas do país. O problema político-administrativo não se reduz à eficiência ou à boa “governança”, como se fosse matéria meramente técnica. Nem a defesa do aprofundamento da democracia pode ignorar o critério da eficiência, sob pena de comprometer a própria democracia3.

É interessante observar que os ciclos brasileiros de reformas políticas penderam alternadamente para um ou outro lado da questão. Tomemos os últimos quatro ciclos. A conjuntura de reconstrução das instituições após a ditadura do Estado Novo foi pautada pela ênfase na democracia. Vinte anos depois o pêndulo estava claramente do lado oposto. Na esteira dos conflitos que desembocaram na insurreição de 1964, tratava-se naquela época de disciplinar o processo político em busca da governabilidade. O Código Eleitoral e a Lei Orgânica dos Partidos, ambos votados em 1965, expressavam essa orientação, que culminou na Constituição de 1967.

Outro ciclo se iniciou em 1979, com a abertura controlada do regime ditatorial, acelerando-se em 1985 até chegar à Constituição de 1988. A democratização ampla era a meta, ainda que temperada por preocupações com a estabilidade e a eficiência do sistema. Estas últimas se revelavam, por exemplo, na cláusula que previa o reexame da Constituição após cinco anos de sua promulgação.

O plebiscito de 1993 completou o ciclo. A esmagadora maioria em prol do presidencialismo significou uma reiteração da ênfase na democracia, simbolizada nesse caso pela escolha direta dos governantes. Por sua vez, a opção do parlamentarismo, sem desconsiderar seu potencial de representação popular, era apresentada como mais adequada para garantir a estabilidade e absorver tensões, ainda que subtraindo ao eleitorado a oportunidade de escolher diretamente os governos.

A partir desse momento, o pêndulo novamente se moveu na direção oposta. A revisão constitucional de 1993 não chegou a acontecer, mas a partir dali foi construída toda uma agenda de reformas que visa primordialmente dotar nossas instituições políticas de maior consistência e eficácia, o que significa em boa medida apertar controles que o ciclo anterior de democratização deixou deliberadamente frouxos.

À luz dessas considerações, vejamos o que está em jogo na atual agenda da reforma política.

O Brasil possui um arcabouço político peculiar, que combina os seguintes elementos: regime republicano; organização territorial federativa; presidencialismo; pluripartidarismo; e votação proporcional em lista aberta para os órgãos legislativos, com exceção do Senado Federal. Trata-se de combinação talvez única no mundo, embora já esteja razoavelmente cristalizada em nossa cultura política.

Os três primeiros elementos não estão em causa. O regime republicano e o presidencialismo foram fortalecidos pela amplíssima maioria que alcançaram no plebiscito de 1993, ao passo que o “pacto federativo” (aliás, uma fórmula instável por natureza) tem ensejado uma série de discussões, mas que caem na órbita da reforma tributária em curso.

Resta então examinar os dois outros elementos do nosso arcabouço institucional: o multipartidarismo e o sistema de votação proporcional. É exatamente sobre eles que se travam as principais discussões do atual ciclo de propostas reformistas.

No que se refere aos partidos, a questão mais debatida é sua quantidade. Há partidos em excesso no Brasil? Já no regime de 1946 havia essa discussão, embora o número de partidos registrados nem chegasse à metade dos que existem hoje. E, tal como atualmente, o número de partidos efetivos – aqueles que realmente contam na cena política – era relativamente pequeno. A crítica à proliferação de partidos deriva da preocupação com a instabilidade que esse processo supostamente acarreta para a dinâmica do regime. Ademais, enfatizasse o propósito meramente eleitoreiro que inspira a multiplicação de siglas, resultando em partidos “de aluguel” ou na captura de agremiações por facções e indivíduos oportunistas.

O incômodo com a existência de muitos partidos talvez reflita uma imagem idealizada da democracia partidária como jogo de poucos competidores, portanto mais previsível. Ora, em todos os países de democracia consolidada a liberdade de competição propicia a apresentação de partidos efêmeros e candidaturas folclóricas sem com isso pôr em xeque a estabilidade do sistema. O debate político e o voto dos eleitores é que decidem, e geralmente decidem por poucos partidos efetivos.

Seja como for, a legislação brasileira é mais rígida do que se alega. É liberal quanto ao funcionamento dos partidos, mas não quanto a suas chances de obter representação. O quociente eleitoral tem servido de barreira à fragmentação partidária nos órgãos representativos. Além disso, o Congresso aprovou em 1995 uma cláusula de exclusão propriamente dita, para vigorar a partir da próxima legislatura. Segundo essa regra, só terão direito à representação parlamentar os partidos que alcançarem o patamar de 5% dos votos para a Câmara dos Deputados, votos esses que devem provir de pelo menos um terço dos Estados com o piso de 2% em cada um. Se for realmente aplicada, produzirá uma transformação profunda no sistema partidário, mas não na arena parlamentar, onde os partidos fadados à exclusão já são bastante periféricos4.

A permissividade se revela, na verdade, em outro item: o da fidelidade partidária. Invertendo os constrangimentos impostos pela ditadura, a remoção do “entulho autoritário” na década de 1980 conferiu aos políticos um grau inédito de liberdade em face dos partidos. Prova disso é a migração sazonal de quadros, ou o “troca-troca de legendas”, durante o exercício dos mandatos, sobretudo no início e no fim das legislaturas. Esse fenômeno era relativamente raro no regime de 1946, embora nada o impedisse, mas tornou-se corriqueiro nos últimos tempos5. A rigor, a mudança de partido significa renúncia ao mandato obtido nas urnas. É como se começasse subitamente outro mandato, sem nenhuma delegação formal. É surpreendente a naturalidade com que essa questão tem sido encarada no país, pois ela é talvez o principal fator de descrédito dos partidos entre os brasileiros.

Um último ponto a respeito do sistema partidário: a questão do financiamento dos partidos e das campanhas. É assunto cujo tratamento avançou no atual regime, com a instituição do Fundo Partidário em 1995. Este veio se somar a outra forma de apoio oficial aos partidos, que é o acesso gratuito à TV e ao rádio (pelo qual o governo concede compensações fiscais às emissoras). Sobre o financiamento das campanhas houve também progressos. A proposta de financiamento público das campanhas está sob exame do Congresso há vários anos. O projeto de lei nº 671/99, elaborado pelo deputado Aloysio Nunes Ferreira, apresenta uma regulamentação bastante completa da matéria. O financiamento público das campanhas eleitorais é uma idéia importante para democratizar a competição eleitoral e corrigir abusos provenientes da influência do poder econômico. No entanto, não é de fácil aplicação e precisa ganhar legitimidade popular para funcionar bem. Em época de ajuste fiscal, com cortes de gastos do Estado, diante das críticas endereçadas aos políticos por conta de seus vencimentos e das despesas dos órgãos legislativos, como fazer para tornar essa medida aceitável pela opinião pública?

Quanto ao sistema eleitoral, o Brasil utiliza desde 1945 o sistema proporcional, na modalidade de lista partidária aberta, que faculta ao eleitor a escolha de seu candidato entre os nomes que estão na lista. Em muitos outros países adota-se a lista partidária fechada, análoga ao que chamamos aqui de “voto na legenda”.

No Brasil o tema da reforma política ganhou densidade com a crítica dos adeptos do sistema distrital misto (inspirado na legislação alemã) à representação proporcional, tida como obstáculo ao adequado funcionamento do sistema de partidos. O sistema misto, de fato, já havia sido ventilado por ocasião do Código Eleitoral de 1965 e retornou como alternativa nos preparativos da Constituinte de 1987-1988. Várias propostas têm sido apresentadas, cujo ponto comum seria a combinação do princípio majoritário, pelo voto no distrito, com o princípio proporcional, pelo voto em lista partidária fechada. Por esse caminho, supõe-se que os partidos seriam fortalecidos, a proliferação de siglas seria contida e haveria maior aproximação dos representantes com os eleitores de seu distrito.

Enquanto o sistema misto é defendido por razões de eficácia e consistência do quadro político-partidário, a defesa da representação proporcional se baseia, antes de tudo, em seu forte sentido democrático. Por isso, outra vertente de discussão diz respeito à preservação do modelo proporcional, com mudanças destinadas a aperfeiçoá-lo.

Uma opção preliminar se refere à modalidade de lista partidária a ser adotada. Há um projeto de lei (nº 2.887, de 2000), apresentado pelo deputado João Paulo Cunha, que propõe a adoção do voto em listas ordenadas de candidatos nas eleições proporcionais. A superioridade do modelo de listas ordenadas ou fechadas reside em sua capacidade de fortalecer os partidos. A lista de candidatos é previamente ordenada pelo partido, o que confere maior consistência à bancada eleita, além de espelhar para o eleitor a imagem fiel do partido através da hierarquia dos candidatos, o que aumenta sua confiabilidade pública, sua accountability, digamos. Mas a experiência da lista fechada reduz obviamente a margem de escolha do eleitor e pode gerar problemas, como a concentração de poder nas cúpulas partidárias e a competição interna pelas posições na lista.

A modalidade de lista aberta, por seu turno, fomenta o individualismo dos candidatos em detrimento do partido, não oferece uma imagem tão clara do partido para o eleitor e gera maior incerteza sobre a composição da futura bancada. Mas nisso reside, sob a ótica do aperfeiçoamento democrático, sua contribuição: ela amplia a margem de intervenção do eleitor no processo de escolha e abre a possibilidade de que nomes menos valorizados pelos dirigentes dos partidos sejam eleitos, o que pode ser um fator de renovação.

A alternativa lista fechada ou lista aberta é complexa, dadas as vantagens e desvantagens de cada uma. Há soluções intermediárias que podem ser estudadas.

Mesmo se adotar uma fórmula minimalista de reforma política, que conserve o mecanismo da lista aberta, o Congresso parece pronto para fazer duas mudanças: suprimir a exigência de verticalização das alianças partidárias e coibir a prática das coligações para pleitos proporcionais. Esta última seria uma alteração bem relevante. Em contexto pluripartidário, coligações são naturais para pleitos majoritários, mas não para as disputas proporcionais. Nesse caso, a finalidade da representação proporcional é completamente violada. Se tal finalidade é alcançar elevada proporcionalidade entre os votos dos eleitores e a representação eleita, não se compreende uma prática como a coligação, pela distorção que acarreta na composição das bancadas. Nem sequer existe, no Brasil, algum critério de distribuição proporcional das cadeiras entre os partidos que fazem parte da chapa. Além disso, a coligação geralmente se esgota na eleição, o que mostra seu artificialismo. Há exceções, mas são raras.

Com tudo isso, quem sabe chegaremos pelo menos a equacionar os impasses em que se enredou o Congresso nos últimos tempos?

Otávio Dulci é sociólogo e cientista político, professor da UFMG