Cultura

Quase Dois Irmãos e Cabra Cega podem iniciar uma discussão séria sobre a luta da esquerda armada

Quase Dois Irmãos e Cabra Cega. Bem mais do que, simplesmente, dois filmes. Talvez o começo de uma discussão séria sobre a esquerda armada, tema que foi bastante maltratado pelo nosso cinema.

Não que não se tenham feito filmes sobre o tema. Foram poucos, mas alguns foram realizados. E a imensa maioria discutiu o assunto pelo lado errado.

Senão, vejamos: Pra Frente Brasil, Lamarca, O Que é Isso, Companheiro? Claro que estou falando aqui dos filmes de enredo: há, em todo esse tempo, documentários memoráveis. Porém, estamos falando apenas da produção ficcional.

Há outros filmes que abordaram menos diretamente o tema, passando por ele às vezes de raspão. Não vou tratar deles porque, na verdade, relacionavam-se a outras coisas e somente esbarraram na questão da militância clandestina ou da repressão. E, mesmo assim, em sua grande maioria repetindo os pontos de vista daqueles que citei. Não vou também falar de Ação entre Amigos, de Beto Brant, um thriller sério e bem realizado, cujos problemas políticos são, a meu ver, de outra índole. Voltemos, pois, aos filmes citados.

Quase Dois Irmãos e Cabra Cega. Bem mais do que, simplesmente, dois filmes. Talvez o começo de uma discussão séria sobre a esquerda armada, tema que foi bastante maltratado pelo nosso cinema.

Não que não se tenham feito filmes sobre o tema. Foram poucos, mas alguns foram realizados. E a imensa maioria discutiu o assunto pelo lado errado.

Senão, vejamos: Pra Frente Brasil, Lamarca, O Que é Isso, Companheiro? Claro que estou falando aqui dos filmes de enredo: há, em todo esse tempo, documentários memoráveis. Porém, estamos falando apenas da produção ficcional.

Há outros filmes que abordaram menos diretamente o tema, passando por ele às vezes de raspão. Não vou tratar deles porque, na verdade, relacionavam-se a outras coisas e somente esbarraram na questão da militância clandestina ou da repressão. E, mesmo assim, em sua grande maioria repetindo os pontos de vista daqueles que citei. Não vou também falar de Ação entre Amigos, de Beto Brant, um thriller sério e bem realizado, cujos problemas políticos são, a meu ver, de outra índole. Voltemos, pois, aos filmes citados.

Pra Frente Brasil, dirigido por Roberto Farias, ainda num período difícil, foi um ato de coragem diante da ditadura que perdia força, mas ainda era capaz de matar. A questão central do filme – o inocente que é torturado pela repressão – apresenta alguns pontos contraditórios. Condena-se, é claro, a tortura, denuncia-se a existência de um esquema repressivo que a usa sistematicamente. Mas o deslocamento do foco – o inocente que é torturado – deixa sugerida a possibilidade de a tortura ser válida quando a vítima é “culpada”. E os militantes que aparecem no filme são caricaturais, prenunciando o tratamento que a eles viria a ser dado nos filmes posteriores.

Lamarca, dirigido por Sérgio Rezende, já traz a plena caracterização do militante clandestino que se tornaria marca registrada de seu tratamento pelo cinema (e pela televisão). Os militantes são amargos, obcecados, desprovidos de humor. Conta-se a história do capitão Lamarca deixando-se de fora o contexto social e político da época, o universo concreto e a atmosfera ideológica nos quais o personagem se move. Ao fazer isso, fica-se apenas com uma história de perseguição: da solidão do perseguido, do heroísmo sem causa que o motiva, da sua eterna e infinita angústia. E, de outro lado, da ferocidade dos perseguidores, da obstinação e da violência com que seguem sua presa. Transforma-se, pois, a história política e humana de um militante num thriller sombrio, no qual o mais importante é a perseguição em si mesma.

O que é isso, Companheiro?, dirigido por Bruno Barreto e baseado no livro de Fernando Gabeira, é o filme que cristaliza a visão distorcida da esquerda e da militância que se tornou a norma em nosso cinema. Os militantes são jovens estudantes, sinceros mas iludidos, infantis e irresponsáveis, ou dirigentes radicais, violentos e oportunistas, que mais parecem caricaturas de bandidos dos filmes americanos. O torturador é sensível e dedicado, na verdade o único personagem que apresenta certa complexidade capaz de torná-lo mais humano. E o embaixador americano é o herói. Seqüestrado, humilhado, mas mantendo a dignidade e o aplomb.

Essa visão do militante clandestino e, por conseqüência, da militância na luta armada é produto de um processo de desinformação cuidadosamente levado a cabo nos anos que se seguiram ao fim da ditadura. Como sabemos, a maioria das lideranças civis que faziam parte do esquema de poder da ditadura continua no poder depois da saída dos militares. Para essas lideranças não era mais possível tratar a militância clandestina nos mesmos termos da ditadura – chamando-os de “bandidos” e “terroristas”. Mas também não lhes era interessante (creio que, até mesmo, não lhes era possível) aceitar os militantes como o que de fato foram: combatentes de um projeto libertário, democrático e socialista. Então, e durante mais de uma década, o trabalho foi o de desqualificar os militantes clandestinos, apresentando-os como moleques irresponsáveis, bem-intencionados mas porras-loucas, ou como quadros terroristas treinados no exterior, com todas as características do que hoje é a caricatura do “terrorista internacional”. E nessa tarefa foram envolvidos todos os meios de comunicação: jornais, revistas, a televisão, até mesmo os livros didáticos e o sistema educacional. É claro que o cinema não foi poupado. A tal ponto que cineastas muito bem-intencionados chegaram a ter seus projetos contaminados por essa visão distorcida.

Aqui vale contar uma história que me envolve diretamente. Quando Toni Venturi estava começando a preparar o projeto do Cabra Cega, partindo da idéia do militante fechado num aparelho, procurou vários ex-militantes. Eu fui um deles. Quando Toni me expôs seu projeto, percebi que ele tinha se deixado contaminar pela visão estereotipada do militante. Tentei mostrar-lhe que as coisas não eram bem assim, e ele ficou tão interessado por essa outra visão que acabou propondo que fizéssemos um documentário. Nessa parceria criamos No Olho do Furacão, que é, exatamente, a tentativa de resgatar a imagem do militante clandestino da luta armada em seu cotidiano. O documentário serviu para Toni como base de pesquisa para a construção do personagem central de Cabra Cega.

Portanto, a gestação de Cabra Cega já parte de outro patamar, da preocupação de efetivamente resgatar personagens, sentimentos e projetos que foram verdadeiros durante os anos de chumbo. E o filme não trai essa proposta − e claro que não é perfeito: ainda resta no personagem central uma amargura, uma violência contida, uma raiva difícil de controlar não plenamente justificadas. Mas o conjunto e, talvez mais que o conjunto, algumas cenas antológicas (o militante no terraço vendo a cidade e querendo “botar seu bloco na rua”, a morte do dirigente, o final, com seu salto para o desconhecido, para a morte, para o futuro) fazem jus à saga dos militantes clandestinos de nossa luta armada.

O que traz Quase Dois Irmãos para perto de Cabra Cega, além da coincidência no lançamento, é o tratamento que Lúcia Murat, em seu filme, dá aos personagens que representam os militantes. Seres humanos, jovens, nem bandidos nem heróis, mas pessoas que foram atropeladas pelas questões de seu tempo e reagiram a elas de forma coerente e honesta. Lúcia não precisou de muita pesquisa em relação a isso: ela mesma é uma ex-militante e ex-presa política. Por isso, sabe como as coisas aconteceram e como as pessoas eram. Pela primeira vez em nosso cinema tivemos uma recriação fiel, realista e competente do que era a vida dos presos políticos na cadeia. O clima, as cores, os sentimentos, a violência, a saudade, a angústia, o desejo de liberdade. Está tudo lá. A diferença em relação a Cabra Cega é que ela tentou relacionar, por meio de seus personagens centrais, a trajetória dos militantes (e da militância política) com a trajetória do crime organizado nas favelas do Rio de Janeiro. O jovem marginal negro e favelado com o militante político branco e de classe média. A luta armada contra a ditadura e pelo socialismo com o crime que, progressivamente, toma conta dos morros cariocas. O ontem com o hoje.

E aqui está uma das questões-chave desse filme. Ele relata, creio que de forma muito próxima do que de fato aconteceu, a tentativa de aproximação dos presos políticos com os presos comuns, detidos no presídio da Ilha Grande, no Rio de Janeiro, cuja proposta era a de que todos fizessem parte do mesmo coletivo. A experiência teve resultados negativos. Além da deterioração das relações entre os presos, gerando violência e separação compulsória, a tentativa permitiu que os presos comuns aprendessem algumas formas de organização e de luta da militância política. O que gerou formas mais eficientes de organização do crime, plasmadas na Falange Vermelha e suas herdeiras nos morros cariocas. Essa tentativa e suas conseqüências reforçam a visão, exposta desde o século 19 nos clássicos marxistas, de que o lumpemproletariado não é, nem tem condições de ser, aliado dos revolucionários.

O filme manifesta certa perplexidade diante disso. Perplexidade que se estende até os dias atuais, quando os personagens centrais se reencontram: o militante virou deputado e continua sem grandes opções para diminuir a distância social; o criminoso comum, agora traficante e novamente preso, perdendo o controle sobre a organização criminosa que domina a favela.

Quase Dois Irmãos e Cabra Cega. Bem mais do que, simplesmente, dois filmes. A esperança de que, em face das mudanças sofridas nesses anos todos pela sociedade brasileira, seja possível resgatar a verdadeira história e os verdadeiros personagens que lutaram nas sombras contra a ditadura. Mesmo sabendo que grande parte da nossa elite civil − tendo apoiado a ditadura e virado a casaca, sem perder as garras, na assim chamada redemocratização − continua mandando no país, continua no poder, ainda que agora conviva com os personagens da nova cena política brasileira, com os que saíram dos cárceres, do exílio e da clandestinidade daqueles tempos.

Cabra Cega, 107 minutos, 2005, direção de Toni Venturi, fotografia de Adrian Cooper.

Quase dois irmãos, 102 minutos, 2005, direção de Lúcia Murat, fotografia de Jacob Sarmento Solitremick

Renato Tapajós é cineasta