Política

Rosa Luxemburgo encarna, com extrema dramaticidade, as tensões dos revolucionários marxistas do fim do século 19, início do século 20

Rosa Luxemburgo foi uma mulher singular, muito à frente de seu tempo. Polonesa, judia, comunista, enfrentou tudo e todos. Tornou-se professora da escola de quadros do poderoso Partido Social Democrata Alemão (SPD), honraria reservada a poucos. Ombreou-se com os principais teóricos comunistas da época, bateu-se contra Kautsky, polemizou com Lenin, fundou o Partido Comunista Alemão (KPD). Soube amar o proletariado, apaixonar-se pela Revolução, encantar-se com a natureza, lamentar sua destruição incessante. E saboreou sua vida de mulher intensamente, amando por toda a existência o grande revolucionário Leo Jogiches, sem que isso a impedisse de ter outros amores.

É dela que Isabel Maria Loureiro trata em seu Rosa Luxemburg − Os Dilemas da Ação Revolucionária. A autora analisa as concepções de Rosa quanto à história e revolução, aborda as polêmicas em que ela se envolveu em relação ao socialismo, as angústias e batalhas políticas e teóricas referentes à integração do proletariado à dinâmica capitalista e a crise da social-democracia e, por fim, a sua intervenção final na revolução alemã, ocorrida entre o final de 1918, início de 1919, quando é assassinada. Para Michael Brie, autor do prefácio, o livro demonstra o pensamento político de Rosa, marcado por uma tensão não resolvida entre a defesa da ortodoxia marxista e uma visão aberta, inacabada, interrogativa da política, sempre em mudança.

Livro: Rosa Luxemburg - Os Dilemas da Ação Revolucionária, de Isabel Maria Loureiro. Editora Unesp, Editora Fundação Perseu Abramo e Fundação Roxa Luxemburgo, 2003, 346 páginas

O problema central do pensamento político de Rosa, no entendimento de Isabel, localiza-se na relação entre a consciência e o processo objetivo da história, questão clássica do marxismo que será, no entanto, inovada por Rosa. Em primeiro lugar, no que diz respeito à relação recíproca entre espontaneidade e consciência nas ações de massa. Em segundo, no que se refere às relações entre o processo evolutivo da história e a ação revolucionária (p. 62).

Não seria equivocado dizer que Rosa procura estender muito as possibilidades da ação humana. Não se afirmaria que se opõe a Marx, porém, sem dúvida, ela fortalece mais a posição de Lassale, partidário da “ação audaz”, da “decisão individual”, da ousadia que pode mudar o curso dos acontecimentos históricos.

As divergências com Lenin

Dessa visão, Rosa elaborou a idéia básica de que “a consciência de classe é muito mais produto da ação revolucionária que do trabalho do partido”, como explica Isabel. Essa concepção também informará sua divergência com Lenin a respeito do partido. Expôs isso em Questões de Organização da Social-Democracia Russa, obra em que discordava da existência de um partido-vanguarda fortemente centralizado e disciplinado, “introduzindo de fora a consciência nas massas passivas, obedientes e desorganizadas”.

Para Rosa, isso expressava uma visão autoritária da política, blanquista, à qual devia opor-se outra, fundada na organização e na ação autônoma e direta das massas. O proletariado não podia chegar a um alto grau de educação política, de consciência de classe e de organização a partir de folhetos ou panfletos. Essa educação devia ser adquirida “na escola política da vida, na luta e pela luta, no curso da revolução em marcha”.

A tática de luta da social-democracia “é o resultado de uma série ininterrupta de grandes atos criadores da luta de classes experimental, freqüentemente elementar” em que “o inconsciente precede o consciente, a lógica do processo histórico objetivo precede a lógica subjetiva de seus portadores” (p. 72). Guardava grande distância de Lenin quanto a aspectos fundamentais do processo revolucionário e, embora isso apareça até com riqueza de detalhes no livro, a autora, às vezes, parece pretender subestimar tais divergências.

As entre Rosa e Lenin eram amplas do ponto de vista teórico, como se vê no caso do caráter do partido, como também do ponto de vista político. Logo depois de os bolcheviques terem assumido o poder, ela dirá que o socialismo, por sua própria natureza, não podia ser outorgado ou introduzido por decreto.

O texto A Revolução Russa, em que ela critica duramente o autoritarismo bolchevique, só será publicado post-mortem por iniciativa de Paul Levi, militante, advogado dela e protagonista de um breve caso de amor com Rosa, e a publicação não agradou nada a Lenin. Para responder a Levi, ele, irritado, dá a impressão de defender Rosa, usa a fábula da galinha e da águia para exaltá-la, mas ressalta, sobretudo, o que considera os erros de Rosa. Lenin não gostava de ser contestado, como se vê.

Ele convenceu Clara Zetkin, amiga de Rosa, de que ela devia atacar Paul Levi e Rosa. A contragosto, Clara critica a amiga, afirmando que ela tinha uma concepção “um pouco esquemática e abstrata” da democracia (p.153) e que não entendera a natureza da ditadura proletária, “em que o terror era elemento indispensável” (p. 153). E insiste no fato de que ela havia “mudado de opinião” (p. 154) em vários pontos. Começava assim uma específica versão sobre Rosa, ao sabor dos interesses no poder da URSS.

Como explica Isabel, a visão de Rosa é que a ação livre das massas “é, por um lado, precondição da democracia socialista: o oposto da dominação de um único partido que, para ela, conduzirá inevitavelmente à burocratização e ao estiolamento da vida pública, inclusive nos sovietes; por outro, a única possibilidade de uma vida emancipada” (p. 121).

Admiradora da vontade enérgica do partido revolucionário, própria dos bolcheviques, ela era, ao mesmo tempo, crítica da idéia de que isso fosse suficiente para instaurar o socialismo. Só com liberdades públicas poderia o povo formar-se politicamente, na opinião de Rosa. Ela repudiava o terror bolchevique baseada na idéia da diferença entre a revolução burguesa e a proletária. Esta não combateria indivíduos, mas instituições. “Não é a tentativa desesperada de moldar o mundo à força de acordo com o seu ideal, mas a ação da grande massa dos milhões de homens do povo” (p. 145), o que tornaria supérfluos o terror e o assassinato.

Não creio seja muito consistente a tese de Isabel de que as divergências entre Rosa e Lenin eram apenas conjunturais (p. 156). Ela faz a ressalva somente na questão do partido, na qual a contradição entre os dois seria de fundo. Admitindo-se que o problema se localizasse unicamente aí – e não é o caso –, ainda assim as conseqüências de tal divergência seriam profundas porque implicariam, se acaso as críticas de Rosa fossem aceitas, uma mudança demasiado séria nos rumos da revolução, na tática e na estratégia.

Mas a crítica de Rosa ao bolchevismo vai muito além, e o texto A revolução russa é evidência disso. Crítica dura do autoritarismo, ela vaticina o fracasso da revolução se o caminho a ser seguido for aquele, e nisso foi profética. Ela defendia verdadeiramente a liberdade, combatia o blanquismo que acreditava estar presente nos bolcheviques. E a liberdade deveria ser entendida como tal, destinada a todos e principalmente a quem pensava diferente, e não como o faziam os bolcheviques, que a acreditavam reservada apenas aos parceiros, e olhe lá, já que com Stalin, com a concepção bolchevique levada ao extremo, nem isso mais ocorreu. Aí, então, o terror passou a reinar absoluto. Rosa apoiou a Revolução Russa, obviamente. Mas a criticou duramente e tentou influenciar mudanças, embora não tenha obtido sucesso.

O abalo da 1ª Guerra Mundial

A Primeira Guerra Mundial irá abalar profundamente Rosa, não só pelo fato de a social democracia alemã ter apoiado os créditos para a guerra – aqui era a vanguarda associando-se ao nacionalismo e à barbárie da guerra – como, e principalmente, pelo motivo de o proletariado ter aderido de modo entusiástico ao banho de sangue em que a Europa se verá mergulhada. O sujeito revolucionário transformava-se, momentaneamente, em seu oposto.

Ela não consegue esconder sua perplexidade “perante uma situação que a teoria não previra e para a qual não se encontrava armada” (p. 89). “Temo que a Internacional esteja morta e que o nacionalismo seja vitorioso... A guerra virá e a maioria dos socialistas a apoiará. Sei disso. Nunca na minha vida tive tantas dúvidas” (p. 164).

Ela chega a pensar em suicídio quando a bancada social democrata no Reichstag vota unanimemente a favor dos créditos de guerra (p. 169). Aqui, talvez, num momento em que todas as certezas desmancham-se no ar, não seria difícil concordar com Kautsky, que, em setembro de 1909, dissera que na Alemanha “as massas são treinadas para esperar sempre as ordens vindas de cima” (p. 174). O delírio nacionalista tomara conta das massas e a social democracia capitulara.

Interessante observar que a própria Rosa é tomada de surpresa diante da guerra. Havia, assim, um desarmamento teórico diante da realidade. Ela joga a maior parte da responsabilidade pelo “rumo funesto dos acontecimentos” (p. 179) na social democracia – no que é acompanhada por Lenin – como se esta tivesse peso para inverter forças vulcânicas tão poderosas, como as que impulsionavam a luta no interior do capitalismo. Esse movimento tectônico vai durar, de modo explosivo, até o fim da Segunda Guerra Mundial. Aqui, nessa interpretação de Rosa, valem mais os aspectos subjetivos – a capacidade de organização dos comunistas de então – do que os objetivos – a crise vivida pelo capitalismo em escala mundial.

Lamenta a falta de reação do povo alemão à guerra. “Um povo que, pelo seu comportamento, admite que durante a guerra o estado de sítio é necessário, admitiu com isso que a liberdade política é totalmente supérflua” (p.181).

Sua noção de previsão, fundada no materialismo histórico, esboroa-se. “Não há esquema prévio, válido de uma vez por todas, não há guia infalível para mostrar (ao proletariado) o caminho a percorrer”, dirá Rosa, à página 88. A revolução torna-se mais problemática. A guerra faz esmaecer o pathos otimista anterior, obriga o proletariado e seus dirigentes “a despedir-se das ingênuas alegrias da infância e a tomar consciência da via-crúcis rumo à maioridade”, na avaliação de Isabel (p. 90).

A partir de 1914, com a guerra, a barbárie é uma possibilidade real. “De maneira oblíqua, de má vontade mesmo, é forçada a reconhecer a ‘embriaguês chauvinista’ das massas e a possibilidade da derrota da revolução proletária – conseqüentemente a vitória da barbárie –, para sempre” (p. 89). Rosa passa os dois anos finais da guerra na prisão. E, longe do cenário da luta, procura manter uma fé quase cega na “dialética histórica”, infundir a si mesma uma espécie de otimismo inquebrantável, ou aparentemente inquebrantável. “A história sabe sempre melhor o que fazer, quando parece ter-se perdido num beco sem a menor esperança de saída”, dirá Rosa (p. 95).

A varinha mágica de Rosa

A história surge, nessas reflexões consoladoras, conforme explicará Isabel, “como uma espécie de deus ex-machina que, escrevendo direito por linhas tortas, garante a reconciliação dos opostos, segundo o desejo dos revolucionários” (p. 96). Há uma naturalização da história nas cartas da prisão. Os homens seriam apenas instrumentos de um “objetivo final” transcendente da história para o qual contribuem inconscientemente. “A marcha da história realiza-se certamente de acordo com leis próprias, infalíveis. Mas os homens são portadores dessas leis” (p. 97).

Era a “varinha mágica” de Rosa, tentando superar os impasses, as perplexidades postas pela realidade. No meio da escuridão, ela procura esperança. É só ouvir um belíssimo trecho da carta que ela escreve a Sonia Liebknecht, no final de 1917. “No escuro, sorrio à vida, como se eu conhecesse algum segredo mágico que pune todo o mal e as tristes mentiras, transformando-os em luz intensa e em felicidade. (...). A profunda escuridão noturna é bela e suave como veludo, basta somente saber olhar. No estalar da areia úmida sob os passos lentos e pesados da sentinela canta também uma bela, uma pequena canção da vida – basta apenas saber ouvir” (p. 116).

Na tradução de Isabel, “a vida, englobando a experiência, a ação, a luta – processo dialético incluindo erros e derrotas –, constitui a ‘varinha mágica’, permitindo às massas inconscientes, incultas, naturais, instintivas, classe em si, elevarem-se à consciência, à cultura, à razão, ou seja, tornarem-se classe para si, saírem da alienação” (p. 117). Para buscar o pano de fundo dessa visão, é necessário, e Isabel o faz, recuperar a base teórica luxemburguista fundada na teoria do colapso iminente do capitalismo, na idéia de que a possibilidade da acumulação capitalista estava no fim, conforme o livro A Acumulação do Capital, de Rosa, publicado em 1913. É a idéia do colapso inevitável e rápido do capitalismo que explica a “varinha mágica”, que dá a ela a certeza de que os homens são meros portadores de um grande objetivo final, de um processo inexorável em andamento, apesar dos percalços, dos imensos obstáculos que se colocavam à frente.

Rosa acreditava que o capitalismo seria um curto período da história humana, crença que foi assumida por muitos marxistas no século 20, para além das formulações de Marx, que nunca datou o fim do capitalismo. Essa concepção entre ingênua e mística da história foi naturalmente abalada pela guerra, como já se disse. Mas, para ser justo com Rosa e com a autora, é sempre bom lembrar que tudo isso era temperado pela insistência da revolucionária de que a história dependia sempre da ação das massas, a qual, diante do apoio dado à guerra pelo proletariado, estava momentaneamente comprometida.

Para Rosa, a história destina-se a cumprir “o grande objetivo” – embora com a guerra a barbárie passe a estar presente como possibilidade –, ainda que exista a consciência da importância da luta democrática sob o capitalismo. A luta por democracia naquela quadra histórica era essencial para o movimento operário e o socialismo, havendo uma relação recíproca entre movimento operário e democracia. “Na fase imperialista do capitalismo, quando a burguesia considera a democracia supérflua, só o movimento operário é seu apoio. Este, na luta por novos direitos, fortalece a democracia, o que por sua vez fortalece o movimento operário”, na interpretação de Isabel (p. 127). Com isso, lutar por reformas sem perder de vista a luta revolucionária pelo socialismo, Rosa tenta homogeneizar o caminho e o fim. “O fim não existe sem o movimento, assim como o movimento é vazio de sentido sem o fim”, como sublinha Isabel (p. 126).

Na leitura de Isabel, haveria em Rosa uma tendência latente para o dogmatismo, fundada em uma filosofia iluminista da história, “com sua crença no progresso contínuo da história, culminando numa reconciliação final” (p. 133). Será a fórmula socialismo ou barbárie, manifestada em 1915, que apresenta definitivamente a possibilidade da derrota como real. Dir-se-ia − e não é Isabel quem diz, é o autor destas linhas − que ela abandona o dogmatismo para situar-se no campo do catastrofismo. A continuidade do capitalismo não significa que o socialismo não constitua uma possibilidade. E não parece que ela situasse a fórmula em perspectiva histórica ampla, mas quase que imediata, especialmente diante do fenômeno da guerra.

O esquerdismo e o isolamento

Rosa vai caminhando para o isolamento, contorcendo-se para explicar o mundo a seu redor. O proletariado se rendera à guerra, ao nacionalismo tacanho, e com ele seu partido. Rosa e a Liga Spartakus prosseguem em seu trabalho de instigar as massas, esclarecê-las, sem sucesso, e em dezembro de 1918 fundam, com seus companheiros, o Partido Comunista Alemão (KPD). Pretendia-se, como dizia Karl Liebknecht, seu principal parceiro de luta e de idéias, em março de 1916, “fazer da época atual uma época revolucionária, transformar uma contra-revolução numa ação revolucionária” (p. 203). Tudo isso era um caminho sem volta, um fatal desligamento da realidade concreta, um percurso contrário a tudo aquilo que ela combatera durante toda a vida.

Rosa sempre defendera a ação das massas como motor da revolução, como essencial, sem a qual partido nenhum teria sucesso. Sempre combatera o blanquismo que ela vislumbrava nos bolcheviques. E nos anos da guerra, percebendo que era minoria, foi se agarrando à idéia da ação, mas esta, agora, ao invés de ser a ação das massas, era uma atividade nitidamente blanquista da Liga Spartakus, que ela não conseguia mais dirigir como gostaria. Na verdade, ela se rendia aos impulsos, à garra dos militantes, que se lançavam à luta pela luta, sem quaisquer análises mais profundas do cenário, da correlação de forças predominante.

A autora é fascinada por Rosa, e não é difícil deixar-se fascinar por uma personagem dessa estatura, e por isso talvez sempre queira encontrar atenuantes nessa fase final da vida dela. “Em nenhum momento Rosa se inclina para o vanguardismo, quer dizer, para uma idéia de partido substituindo a classe”. Creio inegável o acento teórico-prático vanguardista de Rosa na fase final de sua vida, afastada das massas e crédula na ação de uns poucos, capazes de agir, de lutar e de convencer os operários da correção de suas idéias.

Isabel, aliás, percebe que há um flanco aberto. Admite a necessidade de um exame muito mais detalhado da conjuntura entre os meses de novembro e dezembro de 1918, quando a revolução bate à porta, e em janeiro de 1919, no momento em que ocorre um movimento popular e democrático. “O dia-a-dia da política, mesmo revolucionária, é muito mais determinado por uma intrincadíssima rede conjuntural, por afetos e desafetos políticos, relações de força nacionais e internacionais, entre muitos outros fatores, que por uma teoria” (p. 213). Logo, ela poderia localizar em Rosa, com base no que destacamos, um acento doutrinarista, mais apegado à teoria em estado puro do que à análise da situação concreta. No entanto, prefere defendê-la pelo fato de ela ter preferido a “coerência radical dos princípios” (p. 214). “Não havia escolha possível entre cometer uma baixeza ou morrer de dor” (p. 214). A política – que implica sempre análise da correlação de forças – foi abandonada em favor dos princípios. Ela, para continuar política, exige necessariamente um exame acurado das forças do adversário e das próprias forças para definir a ação conseqüente e revolucionária. A ousadia não prescinde do uso adequado da teoria, e esta só tem eficácia se aplicada a cada caso concreto.

Rosa se sabia, como toda a extrema-esquerda, em minoria no movimento operário e nos conselhos de operários e soldados. O programa do movimento em seu conjunto não era o pregado por ela. A hegemonia era do Partido Social Democrata (SPD) e do Partido Social Democrata Independente (USDP), o que fazia com que os conselhos de operários e soldados se vissem como administradores do governo de coalizão desses dois partidos, diferentemente da visão de Rosa e dos seus spartakistas, que lutavam por uma política socialista e de destruição do Estado autoritário. Ou seja, Rosa e a extrema-esquerda eram a “voz no deserto que as massas se negam a seguir” (p. 198).

O 1º Congresso Nacional dos Conselhos de Operários e Soldados, reunido em Berlim de 16 a 21 de dezembro de 1918, era composto de quinhentos delegados, por volta de trezentos eram do SPD e do USDP, entre os quais se contavam dez spartakistas. O restante era de outras organizações ou não deu informações sobre sua filiação partidária. A ressaltar que Rosa e Karl Liebknecht não foram eleitos para o Congresso, “sob a alegação de não serem operários nem soldados” (p. 232) e que uma proposta da mesa de convidá-los a participar sem direito a voto “foi rejeitada sem discussão” (p. 232). O Congresso, com tal composição, significou uma vitória insofismável do SPD.

Rosa e Liebknecht buscam atalhos para explicar esse quadro. Os operários eleitos para os conselhos seriam apenas “imperfeitamente esclarecidos, têm apenas uma fraca consciência de classe, e conseqüentemente eles [os conselhos] não têm quase nenhum caráter revolucionário”, como diz Liebknecht. Aqui se manifesta o que Isabel chama o dilema de Rosa: o sujeito teoricamente revolucionário é iludido pelo SPD e USPD a serviço da burguesia, mas tudo isso é passageiro e o objetivo final continua a iluminar o presente, o futuro radioso há de se realizar para além do presente alienado.

O alerta de Kautsky
Diante da vitória da moderação no movimento, a tática spartakista, sob a direção de Rosa e Liebknecht, é a de continuar a agitação nas ruas, “na tentativa de ganhar as grandes massas para a causa do socialismo” (p. 237). Caberia lembrar as palavras de Kautsky, citadas por Isabel, a respeito dessa tática: “Os meios de combate da Liga Spartakus tornam-se cada vez mais primitivos: domínio dos desorganizados sobre os organizados. Desiludida pelos sindicatos, assim como pelo Parlamento, põe as suas esperanças nos conselhos de operários e soldados; também por estes enganada nas suas expectativas, nada mais lhe resta a não ser a rua” (p. 237).

Rosa sabe que a burguesia desencadea­ra uma campanha agressiva para isolá-los cada vez mais. Há um plano organizado para aterrorizar “os filisteus, confundir a opinião pública, intimidar e enganar os operários e soldados, criar uma atmosfera de pogrom, apunhalar politicamente o movimento spartakista antes que ele tenha tido a possibilidade de fazer conhecer sua política e seus objetivos às grandes massas” (p. 228).

Os spartakistas, no entanto, não recua­vam. E ocorriam, de fato, muitos episódios esquerdistas, próprios de aventureiros e do voluntarismo mais grosseiro. E Rosa, nos muitos artigos que escrevia, jamais criticava tais ações. Para Isabel, Rosa não dava muita importância aos aventureiros. “A revolução, no seu trabalho purificador, haveria de varrê-los para longe” Não varreu. E eles contribuíram decisivamente para a derrota da revolução alemã e mesmo para a morte de Rosa. A autora ressalta que o esquerdismo dos militantes spartakistas pode ter sido responsável pela derrota da revolução alemã, mas evita responsabilizar Rosa frontalmente por tal postura. Contudo, na obra essa responsabilidade torna-se evidente.

O curioso – e aqui se manifestam novamente as contradições de Rosa entre a formulação teórica e a sua aplicação prática – é que no Congresso de fundação do KPD ela defende que a luta pelo socialismo só pode ser levada a cabo pelas massas e volta a criticar qualquer idéia de assalto ao Palácio de Inverno, ao dizer que “pensava-se que bastava derrubar o antigo governo e substituí-lo por um governo socialista” (p. 238). Chama a atenção, ainda, em sua formulação, quase que uma estratégia ­gramsciana naquela conjuntura: “A conquista do poder não deve ser feita de uma vez, mas ser progressiva: nós nos introduziremos no Estado burguês até ocuparmos todas as posições, que defenderemos com unhas e dentes....” (p. 239).

Parece incrível a construção programática dos spartakistas – formulada por Rosa – quando confrontada com o que ocorrerá a seguir. “A Liga Spartakus nunca tomará o poder a não ser pela vontade clara e inequívoca da grande maioria da massa proletária em toda a Alemanha. Ela só tomará o poder se essa massa aprovar conscientemente os projetos, objetivos e métodos de luta da Liga Spartakus” (p. 239).

Pode ser que Rosa percebesse a contradição, dizia, desde o início do congresso de fundação do KPD, que encarava a atmosfera inflamada que a cercava com “um olho que ri, outro que chora” (p. 242). Ação e mais ação era o que os militantes spartakistas pretendiam, e Rosa não fez o combate cotidiano que deveria fazer, se quisesse ser coerente com o programa do partido recém-criado, contra essa visão voluntarista e esquerdista.

Rosa sempre expunha suas feridas íntimas. E o faz a respeito de seus dilemas políticos. Em uma carta a Hans Diefenbach − em que fala da natureza trágica daquele que prega à multidão, e ela o fazia com freqüência − anota “que cada palavra, no instante mesmo em que lhe sai da boca, imobiliza-se, deforma-se no espírito dos ouvintes até a caricatura grosseira; e o pregador vê-se preso a essa imagem caricatural de si mesmo e enfim assaltado pelos discípulos que gritam à sua volta: “Mostra-nos o milagre! Faz o que nos ensinaste. Onde está o teu milagre?” (p. 267).

Talvez o mais apropriado, para lembrar a relação tensa entre ela e os jovens, ousados, esquerdistas militantes spartakistas, esteja nas palavras de Luise Kautsky: “Rosa invocara espíritos que não podia dominar e que, seguindo suas próprias idéias, iam muito além do objetivo que havia fixado para ser provisoriamente atingido”.

No início de janeiro de 1919 a exoneração de um chefe de polícia ligado à ala esquerda do USPD, Emil Eichhorn, no dia 4, provoca uma impressionante manifestação de massa em Berlim, em torno de 200 mil pessoas. A direção revolucionária demorou demais para decidir que rumo dar àquela concentração de massa.

A partir daí, a direita se reagrupa, o movimento operário deixa claro que não está pronto para a luta armada, sobretudo porque dois campos falavam em nome do socialismo. A 9 de janeiro, depois de uma ofensiva sanguinária da direita – do governo e de grupos paramilitares –, a direção central do KPD reconhece ser a derrota da revolução inevitável. Paul Levi defende a retirada estratégica, assim como Leo Jogiches, mas essa posição moderada nunca será explicitada. Muito menos por Rosa, que, ao contrário, continuará a caminhar para o isolamento. Sabe-se que ela desaprovava as ações de janeiro entre quatro paredes, mas não o fazia em público (p. 265). Critica a retomada das negociações com o governo desde a noite de 9 de janeiro, sob pressão das massas, que querem a unidade do movimento. “Rosa encara esse desejo de unidade como pura manipulação, demagogia por parte dos dirigentes do USPD” (p. 259). Diz que o operariado de Berlim é a tropa de elite do proletariado revolucionário e, ao mesmo tempo, afirma que tal tropa é manipulada pelos dirigentes do USPD. Aqui, Isabel interpela Rosa: “Se mesmo uma tropa de elite é manipulável, convenhamos que a revolução não passa de utopia. Não seria mais correto reconhecer como legítimo o desejo de unidade do proletariado berlinense?” (p. 259).

O fracasso da “semana spartakista” teve, na visão de Rosa, uma dupla origem: “A impetuosidade da energia revolucionária diante da insuficiente maturidade da situação”, tortuoso raciocínio para criticar obliquamente não apenas o esquerdismo, mas ainda a “fraqueza da ação”, que pode significar uma volta ao esquerdismo, pois parece que bastaria mais e mais ação para então definir os acontecimentos a favor da revolução (p. 263).

Rosa é presa no dia 15 de janeiro de 1919. Depois de passar pelo Hotel Éden, no centro de Berlim, abrigo temporário do quartel-general da Divisão da Cavalaria e dos Fuzileiros, foi colocada num carro e cem metros adiante deram-lhe um tiro na cabeça. O corpo foi atirado no Canal de Landwehr. Mataram também Karl Liebknecht, para lembrar os dois mais destacados revolucionários. Para Isabel, a grandeza de Rosa Luxemburgo “consiste em ter posto no centro do palco algo que se encontra no coração de toda política revolucionária e democrática, procurando ir além do mero pragmatismo, na medida em que o seu exemplo foi, acima de tudo, a tentativa dramática de manter unidos o que é e o que pode ser”.

Emiliano José é jornalista, autor de Lamarca, o Capitão da Guerrilha; Carlos Marighella, o Inimigo Número Um da Ditadura Militar; As Asas Invisíveis do Padre Renzo. É professor da Faculdade de Comunicação da UFBA e deputado estadual (PT-BA)