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O episódio da homologação da terra indígena Raposa Serra do Sol levou o estado a um grau extremo de conflito e o PT local a um grande isolamento na sociedade

A primeira coisa que aprendi ao chegar a Boa Vista é que é Roráima (com o “a” aberto) e não Rorâima (com o “a” fechado), como geralmente se diz em outras regiões do país. Com cerca de 225 mil km2, o estado menos populoso da Federação, aproximadamente 400 mil habitantes, dos quais 65% (cerca de 250 mil) vivem na capital, tem apenas quinze municípios. Para se ter uma idéia, o Piauí, com área semelhante, tem 22.

Até 1943, toda a extensão de Roraima era o município de Rio Branco, pertencente ao Amazonas. Prevaleciam uma economia extrativista, um pouco de pecuária e a agricultura de subsistência, financiadas pelo capital comercial de Manaus. Durante a Segunda Guerra Mundial, por motivos de segurança nacional, Getúlio Vargas decidiu criar novos territórios: o do Guaporé (hoje Rondônia), o do Amapá e o de Rio Branco (hoje Roraima), constituído por dois municípios: Boa Vista e Caracaraí.

Getúlio Cruz, ex-governador nomeado por Sarney no período de 1985 a 1987, e diretor da Folha de Boa Vista, o mais importante periódico local, relata: “O Vargas bolou um esquema em que o governador de cada território era designado pelos coronéis de um estado. Aqui tocava o Maranhão e, por quase 20 anos, foi o Vitorino Freire quem comandou a política no território de Rio Branco, sem ter nenhum laço com essa área”. Daí se originou uma primeira corrente migratória maranhense formada por funcionários públicos. Isso explica em parte por que até hoje a maioria dos migrantes vem do Maranhão. Segundo Vicente de Paulo Joaquim, chefe da unidade estadual do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em Roraima, hoje há 60 mil maranhenses no estado. De fato, caminhando pelas ruas de Boa Vista, diferentemente de Manaus, Belém e outras capitais amazônicas, nota-se que não prevalecem no rosto das pessoas os traços indígenas. Vi muito poucos negros, vários descendentes de indígenas, mas sobretudo os traços típicos do sertanejo.

Nos anos 50, desenvolveu-se ali um sentimento nativista contra o domínio político de Vitorino Freire que arrancou uma promessa de que o governador passaria a ser indicado pelo deputado federal eleito pelo território. Assim se deu no período de Jânio Quadros e João Goulart, mas com o golpe militar se criou um esdrú­xulo sistema segundo o qual cada arma militar era responsável por um território. Assim, o Exército ficou com Rondônia, o Amapá com a Marinha e à Aeronáutica coube Roraima. Comenta Getúlio Cruz: “Mesmo na ditadura militar, um governo nomeado, alienígena, tinha de ter um mínimo de aliança com as forças políticas locais, com a elite composta de servidores públicos, pecuaristas, empresários ligados ao garimpo e comerciantes. Isso gerou um estado profundamente elitista. O governador do território tinha poder extraordinário, porque não havia assembléia legislativa. Na verdade, ele coordenava a ação do governo federal. Podia demitir, nomear, tinha um poder imenso de privilegiar ou perseguir, mas não tinha nenhum instrumento de introduzir políticas inovadoras. O estado depende ainda hoje de cerca de 80% de repasses da União”.

De acordo com o que foi instituído na Constituição de 1988, os territórios deviam se tornar estados, o que começou a se efetivar a partir de 1991.

O clientelismo à roraimense

Nas primeiras eleições para governador, em 1990, foi eleito Ottomar Pinto, do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), sucedido em 1994 por Neudo Campos, do então Partido Progressista Brasileiro (PPB), reeleito em 1998. Em 2002, o vice-governador de Campos, Flamarion Portela, é eleito com apoio do PT e cassado em novembro de 2004. Em decisão absurda, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) dá posse ao segundo colocado na eleição, Ottomar Pinto, que assume o governo no dia seguinte. Ottomar e Neudo, com o senador Romero Jucá, agora no Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e cuja esposa, Teresa, é a prefeita da capital, são os caciques da política roraimense. Os três, engenheiros. Em um estado sem indústrias, os governadores fazem obras públicas e têm nas empreiteiras suas principais financiadoras de campanha. Com exceção da afiliada local da Rede Globo, pertencente à Rede Amazônica, e da Folha de Boa Vista, todos os demais órgãos da mídia são vinculados a grupos políticos da região. Em Roraima, talvez até mais que em outros estados – se é que isso é possível –, quase todas as siglas partidárias são meras legendas de aluguel desses grupos políticos.

Em Boa Vista, não se encontra o nível de pobreza de outras capitais brasileiras. Não há favelas nem palafitas. No centro da cidade, poucos vendedores ambulantes e pedintes. A rede escolar atende a toda a população. Os bairros da periferia, em geral, são urbanizados. Como explica Vicente de Paulo Joaquim, do IBGE: “O migrante que veio para cá, normalmente, tem qualidade de vida muito melhor que a do parente que ficou no interior do Maranhão ou do Ceará. Esses migrantes vêm em busca de benefícios oficiais. Tanto é que a gente observa que o fluxo migratório se intensifica nos períodos pré-eleitorais”. Além, infelizmente, do que é comum no interior brasileiro – a farta distribuição de cestas básicas, material de construção etc. etc. –, em Roraima, nos anos anteriores às eleições, há um fenômeno particular, que é o pagamento do transporte para que as pessoas façam o longo percurso – de ônibus e barco – do interior do Nordeste ao estado. O migrante já chega como um eleitor aliciado.