Nacional

Cabe ao PT punir eventuais culpados, recuperar seu padrão ético de confiabilidade, reestruturar sua política interna, sobretudo, delineando seu projeto alternativo de Nação.

A fratura sofrida pelo PT no bojo do denuncismo desencadeado pelo deputado federal Roberto Jefferson deve ser encarada em um contexto mais amplo, além da turbulência conjuntural. Crise vem do verbo acrisolar, que significa purificar, depurar. O PT nasceu da crise – de identidade e perspectivas – da esquerda brasileira, marcada, em fins da década de 1970, pelos segmentos oriundos da militância estudantil e derrotados pela ditadura militar.

A derrota decorreu de uma série de fatores, ressaltando-se o exíguo apoio popular às ações, sobretudo armadas, de resistência ao regime militar. A “vanguarda do proletariado” carecia da presença de proletários. Estes, entretanto, não estavam inertes. Bem ao contrário: uma parcela de seu setor mais organizado, o sindical, mantinha resistência tática à ditadura, distanciando-se daqueles que se deixaram cooptar (os pelegos), graças às oposições sindicais, às lideranças sindicais de esquerda e à renovação dos quadros dirigentes em setores estratégicos, como metalúrgicos e petroleiros. O novo sindicalismo desencadeou um processo reivindicatório a partir das campanhas salariais, comprovando a vulnerabilidade do alicerce do regime: a política econômica. Os avanços da macroeconomia não se traduziram em benefícios para as camadas mais pobres da população.

A confluência

O PT foi criado na confluência do novo sindicalismo, cujo desempenho tático não chegava sequer a propor a derrubada do regime, e da esquerda portadora de uma visão estratégica, de um projeto alternativo de Nação (o Brasil socialista). O novo sindicalismo evitava vôos teóricos e centrava seu potencial de luta na conquista imediata das perdas salariais, corroídas pela inflação e pela falsificação dos índices econômicos, e da ampliação de seus direitos trabalhistas.

Na confluência do sindicalismo e da militância remanescente da esquerda, cada um entrou com a sua cota de experiências e conceitos. O novo sindicalismo atraiu os movimentos populares e, em especial, as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Estas venceram a tentação de se transformar em partido e confessionalizar a política. Encontraram no PT o espaço laico no qual seria possível tornar realidade, por intermédio da ação política, o conteúdo da fé libertadora alimentada no espaço pastoral.

A esquerda atraiu ao PT setores representativos da intelectualidade e do mundo das artes, imprimindo-lhe caráter estratégico. O PT não seria apenas a via privilegiada pela qual trabalhador deixaria de votar em patrão para eleger trabalhadores. Seria também o partido que haveria de manter acesa a tocha do futuro da Nação sem opressores e oprimidos, e tendo por horizonte o socialismo. A diferença é que, agora, a tocha seria conduzida não pelos subterrâneos da história, mas pela via institucional recapea­da pela reforma partidária ocorrida nos estertores da ditadura, reflexo do processo de redemocratização do país.

O PT surgiu com características inéditas na tradição da esquerda brasileira: repudiou o centralismo democrático, instaurando mecanismos internos de democracia radical; evitou a subordinação acrítica a seu fundador e líder (Lula) e a retórica acadêmica dos conceitos que pretendiam servir de molde à realidade. Acolheu a diversidade de tendências e, em plena ditadura (que expirou cinco anos após a fundação do partido), optou pela via institucional, acatando as regras do jogo democrático burguês.

Este era o terreno minado que o PT escolheu trilhar: ser alternativa “proletária” de poder na institucionalidade demarcada e comandada pelo poder burguês. O risco já havia sido apontado por Robert Michels em 1911, ao comprovar, em seu clássico Os Partidos Políticos, que partidos de esquerda atuantes na legalidade burguesa dificilmente resistem à cooptação, afrouxando paulatinamente seu vigor ideo­lógico e seu propósito de transformação da sociedade.

Na via institucional – a única possível naquela e na atual conjuntura –, não restou outra saída ao PT senão buscar o poder pela porta da disputa eleitoral. Esse é um jogo cujas regras e critérios estão definidos por aqueles que divergem das propostas do PT. Porém, o partido trazia um capital muito mais precioso e politicamente rentável que os parcos recursos financeiros de que dispunha em campanhas eleitorais: o apoio dos movimentos sociais. Com poucos recursos, comparado aos demais partidos, o PT elegeu, na década de 1980, parlamentares e prefeitos, expandindo-se nacionalmente graças aos movimentos sociais, que favoreceram a implementação dos núcleos de base, células vivas da capilaridade do partido.

Corrida aos votos

A queda do Muro de Berlim afetou toda a esquerda mundial, até mesmo o PT. E coincidiu com a derrota de Lula para Collor e seu projeto – também vitorioso – de adequação do Brasil ao paradigma neoliberal do Consenso de Washington. A poeira levantada pela queda do Muro ofuscou o horizonte utópico do PT. A perspectiva socialista obliterou-se. De certo modo, a busca do poder ficou restrita à mera disputa de cargos eleitorais, sem que houvesse o respaldo consistente de um projeto novo de nação. Aos poucos, a política de princípios cedeu espaço à política de resultados. À medida que esta ganhava corpo, os quadros do partido descolavam-se da base social, os núcleos de base desapareciam, a formação política minguava, as tendências paroquizavam os espaços conquistados, e o partido deixava de ser ferramenta de transformação da sociedade para tornar-se quase que somente a via de acesso ao poder de seus quadros. O pragmatismo produziu a troca da ideologia pelo marketing de campanha, e cada vez mais se debateu menos o projeto alternativo de nação.

Nas eleições, a despolitização da propaganda comprovava a teoria de Michels – o PT adequou-se de tal modo ao jogo burguês que se aliou a adversários históricos em uma política de alianças que, se de um lado possibilitou a eleição de Lula, de outro inviabilizou, na atual conjuntura, a implementação dos compromissos históricos do partido, como, por exemplo, a postura crítica ante o FMI, as auditorias da dívida externa e das privatizações, a taxação das grandes fortunas na reforma tributária e a prevalência das políticas sociais sobre a política econômica atrelada aos interesses do mercado.

Governabilidade

A eleição presidencial de Lula não foi propriamente uma vitória do PT, e sim de uma engenharia política que, cacifada por pelo menos 30% do eleitorado, construiu uma coligação partidária que aparentemente daria ensejo a um pacto social. Se bem funcionou no período eleitoral, a coligação não obteve, no Congresso, a representação necessária para assegurar maioria no apoio às propostas do Executivo. E este desconsiderou, como fator importante de governabilidade, seu maior capital político: os movimentos sociais. O frágil apoio parlamentar abriu caminho aos operadores da política de resultados, que lançaram mão de práticas que, trazidas à luz, macularam gravemente a natureza ética do partido.

Estourada a bomba do suposto mensalão – detonada por um líder coligado –, o Congresso e o PT, e com eles o país, mergulharam na crise. A primeira reação da direção petista foi, no mínimo, equivocada, ao negar as acusações, mesmo consciente de que recorrera a métodos escusos. Como se a explosão da bomba não tivesse desencadeado um processo de erosão política. A imagem ética do PT foi duramente abalada. E a cada dia os atores envolvidos na trama tropeçavam em mais e mais contradições. Tentou-se tapar o sol com a peneira, reprovando a instalação da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI).

Mais uma vez Lula revelou sua genialidade política. Diante da gravidade da crise, preferiu agir a respaldar explicações e desculpas. Demitiu o ministro-chefe da Casa Civil; fez o PT rever sua posição e apoiar a CPI; destituiu os dirigentes envolvidos na crise; deslocou ministros para as principais funções do partido; e instou-os a reaproximar o partido do movimento social.

Agora, cabe ao PT, uma vez aclarada as responsabilidades, punir eventuais culpados, recuperar seu padrão ético de confiabilidade, reestruturar sua política interna, contendo as filiações fisiológicas, restaurando a formação política e a instituição de núcleos de base, reavivando o entusiasmo da militância e, sobretudo, delineando seu projeto alternativo de nação. E Lula terá de desfazer o nó górdio: adequar a política econômica às políticas sociais e ao programa de reformas estruturais. Caso contrário, em 2006 a esperança corre o risco de não vencer a desconfiança e o desencanto. Lula até poderá ser reeleito, mas verá seu partido enfraquecido, com menor representatividade no Congresso. Nesse caso, não restará a ele alternativa senão abandonar seu projeto de mudanças, de redução da fome, da miséria e das desigualdades, para se tornar mero fiador de uma política econômica cuja estabilidade dificilmente resultará na diminuição significativa da instabilidade que ameaça a sofrida sobrevivência da maioria da nação.

Frei Betto é escritor e assessor de movimentos sociais, autor de Típicos Tipos –Coletânea de Perfis Literários (A Girafa), entre outros livros