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O sistema político-partidário brasileiro fundado sobre o financiamento privado entrou em colapso. Ao contrário do diagnóstico liberal, a corrupção é sistêmica e a superação da crise de legitimidade do sistema político depende de reformas que incluam o princípio do público na esfera partidária, eleitoral, parlamentar e na gestão do Estado

Crises políticas demandam explicações para ser entendidas: de onde surgiram, por que surgiram e como podem ser superadas? Em torno das respostas a essas perguntas, criam-se narrativas que serão tanto mais convincentes quanto mais elementos da realidade forem capazes de organizar em uma seqüência lógica e coerente. De acordo com seus valores, os grandes atores políticos constroem suas narrativas para disputar os caminhos de saída das crises. Essas narrativas constituem o mecanismo que permite aos diferentes partidos políticos estabelecer o nexo entre seus programas e os acontecimentos, fixando-os na conjuntura e tornando-os acessíveis ao senso comum.

Até a divulgação pelo jornal O Globo e pelo Jornal Nacional das denúncias de que o atual presidente do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), em sua campanha para a reeleição como governador de Minas Gerais em 1998, estava na origem dos esquemas de arrecadação montados por Marcos Valério, a grande narrativa liberal da crise reinava quase sem contestação pública.

De acordo com essa narrativa liberal, cujos artigos e pronunciamentos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso constituem sua expressão mais agressiva, o PT havia montado um inédito e monstruoso sistema de pilhagem do Estado brasileiro durante o governo Lula. Essa rede de corrupção “sistêmica”, disseminada e abrangente, tecida pelos tentáculos de um partido, se diferenciara do caso Collor, mais típico de uma corrupção pessoal e centrado na Presidência. O PT, tendo chegado à Presidência da República, teria evidenciado a sua verdadeira face antidemocrática, tendencialmente totalitária, incapaz de distinguir os interesses do partido dos interesses universais do Estado. Como afirmou o filósofo José Arthur Gianotti, esse inédito esquema de corrupção havia corrompido os três Poderes republicanos.

Em geral, em tons variados de edição, da analítica de superfície à adjetivação desqualificadora, essa narrativa orientou desde o início, quase sem brechas, a cobertura dos grandes veículos de comunicação. Fixados a origem e o diagnóstico da crise, havia uma crescente radicalização das oposições: da pressão sobre o PT às denúncias generalizadas de corrupção no governo, estavam se estabelecendo publicamente as premissas para um eventual pedido de impeachment, com os ataques da oposição cada vez mais dirigidos à própria figura do presidente.

Foi respondendo defensivamente a essa grande narrativa liberal que o governo Lula optou por diminuir qualitativamente a presença do PT em seu ministério. Caiu o ministro José Dirceu, e Luiz Gushiken, embora permaneça no governo, teve suas atribuições restringidas. Ambos eram do núcleo político central de decisão do governo Lula. O ministro Olívio Dutra, símbolo histórico do petismo, deixou o Ministério das Cidades, substituído por um técnico indicado pelo presidente da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti, e o ministro Humberto Costa deixou o estratégico Ministério da Saúde. O PT, posto no centro de responsabilidade da crise, substituiu em regime de emergência os cargos centrais de sua Comissão Executiva Nacional. Não teve praticamente resposta pública o escandaloso pedido do PSDB e do Partido da Frente Liberal (PFL) para interditar o Fundo Partidário do PT e até mesmo um requerimento para a cassação do registro do maior partido brasileiro.

O diagnóstico fechado e focado apenas no financiamento ilegal, na compra de votos no Congresso Nacional e nos indícios de corrupção, tendo como origem o PT e o governo Lula, compunha-se com a cobertura editorial engajada da mídia, desprezando ou tornando secundárias as notícias que envolviam partidos ou personalidades da oposição. E fechava-se com a defesa da severa punição seletiva aos petistas.

A corrupção é sistêmica

Para desmontar a grande narrativa liberal, a palavra fundamental a ser questio­nada é “sistêmica”. Fernando Henrique Cardoso a tem utilizado no sentido vulgar de “máfia”, quadrilha ou camarilha criminosa. Mas, para os especialistas da Ciência Política, o sentido de “sistêmico” é outro. O financiamento ilegal de campanhas eleitorais, os negócios de compra ou barganha via interesses materiais escusos de apoio parlamentar pelos Executivos e a corrupção na gestão do Estado são sistêmicos porque são típicos do funcionamento do sistema político brasileiro, como no episódio das privatizações e da votação da emenda constitucional que permitiu a reeleição do próprio Fernando Henrique. E são mais freqüentes exatamente ali na tradição dos acusadores do PT e do governo Lula, nos partidos liberais e conservadores, que vão da centro-direita à direita do espectro partidário.

A origem dessas práticas sub-republicanas do sistema político é histórica, reflete o modo como se formou o Estado brasileiro e como se desenvolveu modernamente o aparelho estatal. Os dois períodos fundamentais de expansão do Estado brasileiro moderno – o primeiro governo getulista e a época do regime militar – ocorreram sem democracia e com precária distinção entre os interesses privados e os interesses públicos.

A transição do regime militar para a democracia, negociada e sem rupturas, preservou no plano fundamental essas práticas sub-republicanas no regime partidário-eleitoral, no funcionamento parlamentar, na gestão do Estado. No período neoliberal dos governos FHC, assistiu-se à formação da maior e mais longa coalizão conservadora da história republicana do país. Com que meios soldou-se essa coalizão que ligava o “moderno” PSDB ao oligárquico PFL, o centrista Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e o trabalhismo de negócios do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), o Partido Progressista (PP), no auge da liderança de Maluf, e o Partido Liberal (PL)? Quantas malas, no sentido real ou figurado, teriam voado por esse país em todos estes anos? Com as privatizações “patrimonialistas”, como denunciou o mestre Raymundo Faoro, centenas de bilhões de reais de patrimônio do Estado trocaram de mãos. A intransparência do Estado republicano, sob a ideologia do Estado mínimo, alcançou o máximo da opacidade.

Mas as práticas sub-republicanas são sistêmicas, além de históricas, em uma dimensão dinâmica e estrutural, da permanente reprodução do sistema. O ensaio do cientista político David Samuels1, demonstra que as eleições no Brasil são tão ou mais caras que as eleições norte-americanas. Analisando os dados declarados ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) nas eleições de 1998, o cientista político identificou que as empresas financiam 96,9% dos gastos de candidatos a presidente, 85,3% das somas gastas pelos candidatos a governador, 81,7% das quantias despendidas pelos candidatos a senador e 61,8% dos custos dos candidatos a deputado federal.

Em 1998, o sistema financeiro forneceu 32,7% dos custos das campanhas para presidente e 19,7% dos gastos das campanhas para o Senado. Os motivos são óbvios: é o presidente quem define, em última instância, a política de juros, de câmbio, de tarifas praticadas. O Senado é quem supervisiona o Banco Central. Empreiteiras garantem 15,2% do financiamento das campanhas para presidente e 42,3% dos custos das campanhas para governos estaduais. São o governo federal e, principalmente, os governos estaduais os responsáveis pelas obras públicas da construção civil.

A legislação eleitoral brasileira não estabelece limite para a doação de empresas: elas podem financiar até 2% da sua receita bruta anual. Por exemplo: só uma empresa que tem receita bruta de R$ 2 bilhões pode doar até R$ 40 milhões! Mais grave ainda: não há controle das doações ilegais e sem registro, pois o TSE não tem estrutura para auditar as contas.

É por essa via que se reproduz o nexo entre os partidos, as campanhas eleitorais, as empresas e a má gestão pública dos recursos do Estado.

Da crise das narrativas à narrativa da crise

“É preciso dizer toda a verdade”, “só a verdade pára em pé”, dizem os petistas mais lúcidos. Mas qual é mesmo “a verdade verdadeira”? − perguntam-se aqueles que, além de lúcidos, julgam a esta altura também ser necessário exercer o saudável direito de desconfiar. Até agora não se estabilizou de fato uma narrativa que, a partir dos valores petistas, seja alternativa veraz ao diagnóstico liberal da crise. Na ausência dela, na retórica evasiva, balbuciante ou defensiva porque parcial, não há real eloqüência pública: estão interditados os canais de comunicação entre o PT e a consciência democrática brasileira.

O PT, por seus valores socialistas e democráticos, sempre foi favorável ao financiamento público das campanhas eleitorais. Mas, na prática, essa vital reforma política nunca foi ao centro de sua agenda. E certamente as resistências estruturais do próprio sistema político liberal e conservador à sua aprovação contaminaram nosso tecido partidário. Na prática, a opção do PT ao longo do tempo foi ir se adaptando às regras vigentes do jogo eleitoral.

Até 1998, como demonstram as pesquisas dos dados oficiais transmitidos ao TSE, as doações empresariais ao PT eram da ordem de, aproximadamente, 15% dos montantes doados pelas empresas aos candidatos liberais e conservadores. Mas esse padrão de financiamento parece ter mudado de modo muito expressivo nas eleições presidenciais de 2002, quando a candidatura Lula estabilizou a sua condição de favoritismo e foi, afinal, vitoriosa. O registro legal dos gastos da campanha Lula em 2002 foi cerca de 1.300% superior a 1998 – cerca de R$ 40 milhões contra cerca de R$ 3 milhões. Ao que tudo indica, esse novo padrão de financiamento empresarial das campanhas petistas se fez valer nas eleições municipais de 2004. Nas principais capitais do país, deixou de haver diferença expressiva de aparato de campanha eleitoral entre o PT e os demais partidos liberais e conservadores.

É provável, nesse contexto, que a associação Delúbio Soares-Marcos Valério, assumida publicamente pelo ex-tesoureiro nacional do PT, tenha sido exatamente a expressão dessa mudança de padrão de financiamento eleitoral do PT. A chegada do partido ao centro do Estado brasileiro, às posições-chave de decisões de gestão e de definição de orçamentos de grandes operadores econômicos estatais, propiciou uma extensão e uma profundidade inéditas das relações do PT com o meio empresarial, antes apenas experimentada pelos partidos liberais ou conservadores.

Esse novo padrão de financiamento empresarial, até mesmo em sua importante dimensão das auto-referidas “contribuições não-contabilizadas”, não teria chance de ser incorporado pela institucionalidade democrática do PT. Para ser viável e operacional, ela teria de ganhar necessariamente uma autonomia relativa mesmo diante das instâncias diretivas, ou seja, deslocou-se o centro de importantes decisões para fora das instâncias legítimas do partido. E hoje é evidente que todo esse sistema, ao mesclar em terreno tão instável e minado os vetores eleitorais de um partido como o PT e os interesses empresariais de segmentos que sempre operaram nas sombras do Estado brasileiro, era explosivamente vulnerável. Esse solo de raiz que nutre historicamente os partidos liberais e conservadores não podia ser terra firme para a aventura da expansão petista.

Sem entrar em uma discussão circular de causa e efeito, esse novo padrão de financiamento empresarial do PT só pode ser compatível com um programa de governo que reduza ao mínimo possível, inclusive, mas não só em relação ao sistema financeiro, os pontos de conflito com as grandes redes que entrelaçam os interesses privados e o Estado brasileiro. Por sua vez, esse programa de governo, ao tomar distância em dimensões centrais de suas opções, das reivindicações e expectativas da sociedade democrática brasileira e dos movimentos sociais, precisa se aproximar dos padrões mais institucionais e conservadores de governabilidade.

Expansão inaudita da dependência do financiamento empresarial de campanhas, redução do horizonte programático transformador do governo, retomada de métodos tradicionais de governar: ao contrário da narrativa liberal, foi porque se adaptou ao sistema político brasileiro, em suas dimensões tipicamente sub-republicanas ou mesmo anti-republicanas, que o PT vive hoje sua maior crise de identidade.

O programa de superação da crise

Esta narrativa da crise, além de veraz e persuasiva, pode restabelecer plenamente o diálogo entre o PT, o governo Lula e a sociedade democrática brasileira. De modo solidário e totalizante, indica três grandes diretrizes programáticas para a superação da crise política.

Em primeiro lugar, ela possibilita uma eloqüência pública fortemente antagonista à pretensão dos liberais e conservadores de focar as denúncias só no PT e estabelecer punições seletivas e instrumentais. Ao contrário, os erros atribuídos hoje ao PT e ao governo Lula foram e continuam sendo praticados em escala industrial pelos governos e partidos liberais e conservadores, comandados pelo PSDB e PFL. O compromisso do PT e do governo Lula com a sociedade democrática brasileira é a mais livre e completa apuração das denúncias, algo que o PSDB e o PFL sempre se opuseram a fazer. Se o governo FHC foi campeão no sepultamento de CPIs, hoje é o governo Alckmin, em São Paulo, que bate novos recordes de impedimento ao livre exercício de fiscalização da Assembléia Legislativa do Estado.

Mas o centro da solução da crise só podem ser as reformas políticas democráticas e republicanas, que alterem as raízes sistêmicas da crise: o poder corruptor do financiamento privado das campanhas, os métodos fisiológicos de formação de maiorias parlamentares, a intransparência e má gestão dos recursos públicos. A energia e o alimento dessas reformas não virão do sistema político conservador e liberal, que é exatamente a peça de resistência a elas. O grande parceiro dessas mudanças é o sentimento cidadão de indignação dos brasileiros, a cultura participativa, a sociedade democrática organizada. Assim como na época das Diretas-Já se fez uma campanha memorável para defender o direito de voto dos brasileiros, hoje é preciso uma campanha pública de porte semelhante, capaz de restaurar a dignidade desse direito de voto.

A segunda grande diretriz programática de superação da crise é a refundação das perspectivas transformadoras do governo Lula, que se vincula estreitamente ao reposicionamento de suas bases históricas para a grande disputa das eleições presidenciais de 2006. Já emparedado pelas opções conservadoras da gestão macroeconômica, em particular no que diz respeito ao modo como a dívida pública vem sendo gerida, o governo Lula sofreu, em meio à crise, expressiva perda de seu dinamismo político. A retomada de seus vínculos com a esperança do povo brasileiro depende de uma nova agenda que maximize seus compromissos com as expectativas democráticas e populares.

A terceira grande diretriz programática é o processo de refundação, superação ou reinvenção do PT. Em 1990, no momento de máxima pressão sobre a identidade socialista do partido, após a crise das sociedades do Leste Europeu, a grande resposta foi o documento Socialismo Petista. Esse documento sintetizou, em um plano mais profundo, os compromissos socialistas e democráticos dos petistas, lançando para a difícil década que se seguiu um grande marco de unidade e resistência ao neoliberalismo. A crise atual exige que o socialismo democrático do PT dialogue e elabore uma nova síntese com a cultura do republicanismo, estabelecendo um sentido histórico largo de seus compromissos transformadores do Estado imperfeitamente republicano dos brasileiros.

A esperança do povo brasileiro é generosa. Saberá acolher um partido que, por meio do diálogo público, se proponha a humilde e revolucionária ambição de transcender-se, renovando as perspectivas democráticas, socialistas e republicanas de seu caminho na história brasileira.

Juarez Guimarães é cientista político e professor na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
Hamilton Pereira é presidente da Fundação Perseu Abramo