Nacional

Para esse jornalismo, não basta que o PT eventualmente venha a perder poder, ou a tê-lo diminuído, ou até mesmo a perder o Planalto nas próximas eleições. Não, o mais significativo é obter uma vitória estratégica para desmoralizar as esquerdas

Estamos em meio a uma crise vertiginosa das esquerdas, que nos leva a um futuro desconhecido. No olho do furacão, mais uma vez, como na eleição presidencial de 1989, estão “as imprensas e os Petês”, plurais que explicarei mais adiante. Mas, para entendermos os papéis desses personagens em nosso palco de hoje, precisamos olhar no espelho retrovisor e ver seus desempenhos nas últimas décadas.

Nos últimos 25 anos (tempo da existência do PT), a imprensa − expressão que atualmente compreende a mídia audiovisual e virtual − passou por extraordinárias transformações técnicas, organizativas e ideológicas. Isso se deu até mesmo no Brasil, onde os velhos baronatos de inspiração feudal adaptaram-se aos tempos do capitalismo pós-moderno, sem abdicar de seu caráter de clã familiar no perfil e na fachada, como de resto quase todo o capitalismo brasileiro, que de sociedade anônima só tem o nome de fantasia. Uma pesquisa universitária mostrou que cerca de 20 mil clãs familiares detêm quase a totalidade de títulos da dívida pública brasileira, constituindo o hardcore que lucra desmedidamente com a política de juros vigente no país, cujo dinheiro é o mais caro do mundo1.

Mas de qualquer modo estamos longe dos tempos em que verdadeiros capitães da tinta impressa, ou da imagem televisiva, ou auditiva, imperavam na disputa pelos espaços da opinião pública.

É certo que nomes como Marinho, Mesquita, Sirotsky, Bittencourt, Frias etc. ainda dizem algo no mundo da imprensa, mas sem o brilho de antes. Suas empresas são administradas como corporations, por boards empresariais como qualquer automontadora, só que apenas montam pilhas, ou melhor, fluxos de informação. Nessas empresas, envoltas em maior ou menor grau nos processos de privatização do campo das telecomunicações a partir dos anos 90, o setor financeiro cresceu em detrimento da importância dos demais.

Ao mesmo tempo em que declinava a importância ideológica dos antigos barões da mídia, crescia a dos jornalistas “de grife”, isto é, aqueles colunistas, ou unicamente colaboradores constantes, que passaram a “dar o tom” das intervenções, seja sob a forma de artigos escritos, seja de intervenções no rádio e na televisão. De repente, todo colunista descobriu que levava no alforje, ou melhor, no notebook, se não um bastão de marechal, uma vocação de Davi Nasser, ou melhor (ou pior), de Carlos Lacerda2.

Esse foi um período em que a mídia desfrutou de poder extraordinário, sem paralelo anterior, inclusive e sobretudo no Brasil. Na imprensa, quatro jornais impressos, editados no eixo Rio−São Paulo, com alguns coadjuvantes regionais, mais uma cadeia de televisão liderada pela Rede Globo, também com algumas coadjuvantes, praticamente ditaram a pauta ideológica da Nação e da opinião pública. E isso sem concorrentes, com aqueles “jornalistas-grifes” à testa, que, em sua maioria, tornaram-se, por diferentes razões, porta-vozes do consenso conservador em torno das loas supostamente benéficas da “modernização globalizadora”, liderada pelo capital financeiro.

O capitalismo tornou-se fato “pós-moderno”, no sentido de que abdicou de qualquer ideal herdeiro da tradição da modernidade pensada a partir do século 18. Se os processos de modernização foram no mais das vezes excludentes, o capitalismo finissecular do segundo milênio da era cristã decididamente excluiu de si não só qualquer ideal democrático em sua administração como também qualquer idéia de “inclusão” por meio de um new deal dirigido às populações do Terceiro Mundo.

Esse caminho, decantado por aqueles jornalistas como o “fim das ideologias” e pelo pensamento conservador como “o fim da história”3, teve seu passo facilitado pela adesão mais ou menos acrítica de grande parte da intelectualidade acadêmica ou não, em países do Terceiro Mundo (inclusive no Brasil) e fora dele, à moda, ou vaga, da “pós-modernidade” e à suposta idéia do declínio das “grandes narrativas”. É certo que o declínio do mundo comunista e sua derrota na guerra fria, no final dos anos 80, jogaram os processos utópicos na unidade de terapia intensiva do pensamento.

De qualquer forma, a idéia disseminada de que “as grandes narrativas” chegavam a seu ocaso − e que isso era benéfico, pois abria espaço para o reino infindável das diferenças, da “negociação” entre elas, pondo fim ao totalitarismo das sínteses nacionais ou outras − só fez pavimentar a “auto-estrada” para a pregação de uma única “grande narrativa”, veiculada pela imprensa ou mídia: a de que tínhamos chegado ao paraíso do capitalismo como fim dos tempos. E a pregação dessa “grande narrativa” persuasória se dava por intermédio do coro midiático da imprensa.

O pensamento nas universidades se encastelou em progressivo abandono de tendências publicistas anteriores, vistas como coisa dos “velhões de 68”; o partidário, em escala mundial, tornou-se prisioneiro do “Consenso de Washington”, com nova conversão dos partidos socialdemocratas à tendência conservadora que punha a economia como precedente à política, e certo tipo de economia, aquele que se dispunha a “explicar o inexplicável”, ou seja, como era possível e desejável que, em um mundo com disponibilidades tecnológicas nunca antes navegadas, a desigualdade e a iniqüidade progredissem de modo também nunca antes navegado.

Assim, nos últimos vinte anos viu-se o poder da imprensa e de seus novos arautos crescer desmesuradamente, impondo-se quase sem ter contraponto de monta no campo em disputa da opinião pública. Entretanto, isso não se deu sem contradições nem novos impasses, e um desses impasses foi o PT chegar ao Palácio do Planalto.

A marcha desse pensamento único – pois nada mais parecido hoje com a pregação de um desses jornalistas do que a pregação do outro, ainda que com estilos diferentes – encontrou um óbice, primeiro, em sua própria grande mentora, a ideologia capitalista irradiada a partir dos Estados Unidos. Em um episódio dramático como a invasão do Iraque, a máquina do capitalismo norte-americano desmentiu e desmoralizou a própria imprensa que louvara a iniciativa.

Depois, a pregação persuasória da imprensa foi sendo desmentida pelos fatos: por onde a ideologia do império dos mercados inspirou políticas públicas, semearam-se o desastre e a desilusão, unicamente. O capitalismo financeiro globalizado produziu crise atrás de crise, levou a África inteira ao desespero, redistribuiu fartamente a miséria na América Latina, conduzindo o México, a Argentina e a comarca andina a um estado de sublevação permanente, produziu taxas de pobreza inéditas nos Estados Unidos, semeou guerras pela Europa dividida. No Brasil, a ideologia neoliberal, apresentada e defendida com fanfarras durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, patrocinou processos de privatização indecentes e literalmente quebrou o país.

Na América Latina, o pensamento “único” promovido por aquele jornalismo “pós-moderno” sofreu três contundentes derrotas. A mais dramática delas foi a impossibilidade de derrubar o governo de Hugo Chávez na Venezuela. Ficou famoso no meio jornalístico, em que as revistas semanais brasileiras saudavam entusiasticamente, com o governo de Bush, a sua queda enquanto o presidente venezuelano era reconduzido ao palácio presidencial por uma multidão delirante. A derrubada de Chávez, talvez por solidariedade com as empresas jornalísticas da Venezuela, era ponto de honra do pensamento conservador de nossa imprensa. Falhou.

A mais duradoura foi não ter percebido a importância do processo aberto pelos Fóruns Sociais Mundiais, inicialmente sediados em Porto Alegre. O primeiro Fórum Social Mundial realizou-se em janeiro de 2001. Nem quando aproximadamente um milhar de jornalistas do mundo inteiro desembarcou na capital gaúcha nossos meios “maiores” de comunicação privados acordaram para o significado do que estava acontecendo. Somente em 2005 deram alguma importância ao evento, quando 200 mil pessoas lotaram a hotelaria da cidade e dos arredores, mas assim mesmo alguns (poucos, é verdade) jornalistas continuaram declarando-se “contra” aquela “festa”.

A terceira derrota foi ter de se acostumar com o crescimento petista. Primeiro, em novas práticas administrativas em nível municipal e em alguns estados, e depois como alternativa em âmbito nacional e também internacional, na medida em que o novo governo petista deu à política externa brasileira considerável inflexão à esquerda. O jornalismo conservador, no entanto, deu significativa resposta ao crescimento petista, desconstruindo sistematicamente as administrações populares em locais estratégicos, como no Rio Grande do Sul e em São Paulo, no caso da administração de Marta Suplicy.

Entretanto, isso nos traz à contingência mencionar outro parceiro deste artigo, o PT. Durante este mesmo tempo, o partido passou por uma mudança muito expressiva: deixou de ser o “contraponto” da democracia brasileira, para tornar-se seu “protagonista”, ao conseguir eleger seu líder para a Presidência de metade da América do Sul, um terço da América Latina. Em um tempo em que praticamente todos os partidos socialistas ou socialdemocratas europeus navegaram à direita, o PT conseguiu manter-se nas balizas de esquerda, ainda que na prática as políticas de suas administrações municipais e estaduais também fossem, na verdade, de natureza social-democrata.

Para chegar à Presidência, o PT fez uma aliança conservadora com o Partido Liberal (PL). Para administrar a Presidência (mais do que o país), o PT aprofundou essa aliança conservadora, ampliando-a para outros partidos da mesma natureza. Manteve os pressupostos da política econômica neoliberal do governo anterior, alardeando o fato com pompa e circunstância, ainda que haja indícios de que também nesse campo houve inflexões significativas, até porque a conjuntura era outra, já que o ciclo das grandes privatizações tinha passado, pelo menos de momento. O governo petista fez também dois movimentos políticos que o distanciaram daquelas balizas de esquerda em que o partido se mantivera ao longo de sua história.

Em primeiro lugar, literalmente torrou sua histórica base de apoio no funcionalismo público, promovendo uma reforma da Previdência em que esse setor se tornou o bode expiatório de uma suposta “cassação de privilégios”. Em segundo lugar, promoveu um expurgo à esquerda, expulsando, por indisciplina, quatro parlamentares, entre eles uma senadora, por terem votado em defesa do que foram as bandeiras históricas do partido.

Nem assim o partido e seu governo tornaram-se palatáveis para aquele jornalismo pós-moderno. Houve razões de contingência para isso: apesar de suas guinadas à direita, o governo petista levou com ele sua história, colocando em pontos estratégicos figuras intragáveis para a direita nacional. Na imprensa, por exemplo, houve uma verdadeira campanha para “depor” o ministro Olívio Dutra, que pelo menos uma vez por mês, em noticiários, era “defenestrado” do ministério. Seu desempenho foi tachado de inepto, sem que Dutra tivesse direito à defesa. Outro que enfrentou dificuldades nesse campo foi o ministro Miguel Rossetto, e aí pela tradicional animosidade da imprensa conservadora com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), com quem lhe seja próximo ou receptivo ou com o tema da reforma agrária em geral.

Houve casos curiosos também. Por exemplo: ao tempo de Fernando Henrique, louvava-se desabridamente o “mercado” nesse jornalismo. Políticas sociais eram sistematicamente denunciadas como “assistencialistas”, “demagógicas” e “populistas”. Depois de o PT ter chegado ao governo federal, houve uma “conversão” súbita ou gradativa de alguns jornalistas, para os quais a questão social passou a ter enorme relevância e a política de “mercado” do governo petista passou a ser vista como “subser­viência” a organismos internacionais, coisa que antes, no governo anterior, era louvada como índice de modernidade. Antes de o PT assumir o governo, quase nenhum jornal da grande imprensa nem jornalista afinado com seu pensamento predominante falava na “taxa básica de juros” ou considerava que um “superávit primário” alto fosse mau. Agora, não se pára de falar que esses dois itens são negativos, sobretudo o primeiro, sendo verdade que um setor vasto da indústria nacional também passou a reclamar da alta taxa de juros no país.

Mas existem ainda motivos estratégicos. Para aquele jornalismo das “grifes conservadoras”, não se trata apenas de “combater o PT” ou o “governo petista”. Trata-se de combater a esquerda como um todo, de retomar a iniciativa ideológica perdida, que o legitima junto ao público leitor como porta-voz da descrença contínua em alternativas, em “pensar outramente”.

Para esse jornalismo, não basta que o PT eventualmente venha a perder poder, ou a tê-lo diminuído, ou até mesmo a perder o Planalto nas próximas eleições. Não, o mais significativo é obter uma vitória estratégica para desmoralizar as esquerdas, apresentando-as não apenas “iguais ao resto”, porém “inferiores”: ineptas para administrar não só a “coisa pública”, mas até mesmo seus bastidores casualmente sujos.

O nosso PT e o nosso governo, pois disso não abro mão (como me disse o professor Antonio Candido em conversa particular, nós não somos ratos para abandonar o navio quando ele está a perigo), cometeram dois erros muito graves, que devemos todos nos esforçar por corrigir. O primeiro foi ter passado a ver a cena política como uma tela bidimensional, deixando de ver o que está por detrás. O mundo, assim visto, teria como nossos inimigos principais apenas “o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) e o Partido da Frente Liberal (PFL)”, e não o que eles representam, e para vencê-los então quaisquer alianças seriam legítimas. O segundo erro foi não ter, logo de saída, denunciado, pelo menos na própria práxis, se faltasse força para fazê-lo publicamente, o corrupto sistema de funcionamento implementado na política federal. Nesse em que se faz distribuição de cargos e financiamentos abusivos de campanhas pelo sistema do caixa dois ou ainda outros financiamentos suspeitos, como ao tempo da emenda da reeleição no governo passado.

Ao não denunciar esses esquemas e ao continuar com a visão de que para neutralizar PSDB e PFL “tudo” era permitido, o PT e o governo abriram espaço para que gentes, em seu nome, agindo contra nossa tradição duramente construída, se acomodassem a eles, arrastando o nome do partido e a bandeira das esquerdas, que agora temos de resgatar. Esse movimento e essa circunstância produziram o regozijo atual naquele jornalismo conservador de sempre, em que atualmente, por vezes, paira o vozerio do linchamento.

Não há propriamente uma “conspiração” na ou através da mídia ou da imprensa, como aquelas que ocorreram em 1954, em 1964 e até mesmo, em certa medida, ainda na eleição de 1989. Hoje, nesse capitalismo “administrativo” que tomou conta das empresas de jornalismo, na competição desenfreada entre elas, também com o endividamento e a dependência que muitas delas têm em relação a verbas públicas de publicidade, não há clima para isso. O que há, isso sim, é uma permanente “campanha” por parte daquele jornalismo conservador e de grife, que não é dirigida apenas contra o PT e seu governo, mas contra as esquerdas de modo geral, ainda que muitos esquerdistas possam se iludir graças a um eventual espaço ganho para atacar agora a política do Planalto e seu partido.

Flávio Aguiar é professor de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo (USP) e editor da TV Carta Maior