Política

Filiado número um do PT, Apolonio de Carvalho fala sobre a trajetória do partido e a urgência do resgate dos valores e práticas de seu projeto original

Quando o senhor veio para o Brasil em 1979, como foi seu contato com as lideranças do movimento sindical do ABC, que estavam pensando na criação de um novo partido?

Antes que a anistia permitisse a volta dos exilados e expulsos definitivamente do país sob a pressão do regime militar, na Europa acompanhávamos, com muito carinho, o que se passava no Brasil pelos meios possíveis. As correspondências das famílias e dos amigos eram controladas. Os jornais no exterior não mencionavam muito o Brasil, mas, de vez em quando, nós íamos à agência de viagens, onde havia sempre jornais brasileiros, e procurávamos acompanhar os acontecimentos. Houve um congresso de anistia em setembro de 1979, em Lisboa. Fui convidado porque estava ligado aos comitês de anistia da França e de lugares próximos. Conheci os parlamentares do MDB, que seriam os primeiros parlamentares do PT. Lá também tive contato com pessoas da esquerda brasileira que estavam esparsas, expulsas do país, em outros países da Europa. Conheci um pouco melhor a situação brasileira. Já nos empenhávamos em acompanhar algumas coisas novas que vinham dos movimentos operário, parlamentar e estudantil em resistência à ditadura. Então, quando chegamos do exílio forçado, pois éramos banidos sob a imposição de jamais voltarmos para o Brasil – era muito dura a ditadura militar –, já tínhamos idéia do movimento sindical, dos grandes sindicatos que procuravam criar forças novas para derrubar a ditadura. Naturalmente, ao chegarmos, nos beneficiamos do que eram os efeitos imediatos das grandes greves gerais do ABC paulista, que se tornava, quase de um momento para o outro, a capital social do Brasil. Busquei contato com os dirigentes dessas centrais sindicais, em particular com Lula.

Como foi esse contato?
Um dia depois de uma reunião, meu jovem companheiro, Sérgio Sister, um pintor muito querido que vive em São Paulo, me disse: “Eu estou ligado com o Lula em São Bernardo, se você quiser conhecê-lo...” Respondi que gostaria muito de conhecê-lo. Então ele ajeitou o encontro. Quando cheguei com o Sister à sede do sindicato e conheci o Lula aberto, simples, tranqüilo, já me senti envolto pela confiança irradiante desses dirigentes sindicais que não conheciam absolutamente nada das teorias políticas, das filosofias, mas estavam decididos a reunir forças sempre maiores para a derrota da ditadura militar. Pouco a pouco fui acompanhando as iniciativas que precederam a fundação do partido. Eram reuniões para debates do que seria o programa do novo partido, o que seria o novo do partido, porque havia uma pressão muito grande para que não se chamasse Partido dos Trabalhadores, mas Partido Popular. A Ação Popular, antiga das lutas e guerrilhas, era uma força muito preciosa e presente nessa pressão sobre o nome, uma vez que na realidade era muito mais amplo – naturalmente, ao nascer, o PT não era somente o partido dos trabalhadores. As greves de 1978 e 1979 abririam a imensa cavarana afluente desse canal nascente que eram as forças sociais e políticas interessadas na derrota da ditadura, e havia desde a CNBB até uma boa parte dos parlamentares do MDB, o movimento universitário, o mundo da cultura, do jornalismo, do funcionalismo. Muitas áreas se conjugaram para criar o partido que não era apenas dos trabalhadores; era, digamos, dos cidadãos que, depois de vinte anos de ditadura militar, sonhavam com liberdade, justiça social e correição.

Não passou por sua cabeça fazer uma frente dentro do MDB, como muitas pessoas que adotaram essa estratégia?
Claro, mas eu achava que era muito bom que tivéssemos essa visão abrangente. Eu me baseava na própria história do Brasil e da sociedade: nenhum partido político, nenhuma classe social chegou, até hoje, ao poder do Estado isoladamente. O problema das alianças políticas em torno de um programa comum representa o eixo das lutas por transformações sociais que marcam todos os séculos precedentes. Tinha muito respeito por essa capacidade nova, para mim que vinha do PC, que sempre foi muito duro, ligado à sua condição de dono das verdades definitivas, o sentimento e a arrogância típicos da Igreja.

O senhor foi à reunião de fevereiro de 1980 no Colégio Sion, quando foi fundado o PT?
Eu já freqüentava reuniões do partido em São Paulo. O PT é um pouco audacioso com seus dirigentes sindicais, ciosos da sua capacidade de assumir iniciativas um pouco à margem daquilo que seriam as concessões da ditadura. Conheci Jacob Bittar, o número dois do partido, nessa época. Fui a reuniões do Colégio Sion, o que me permitia admirar mais profundamente a imagem, envelhecida aparentemente, mas tão radiosa, jovem, tão cheia de vida da diretora que abrigava o empenho de formação de um novo partido popular dentro do seu colégio, tradicionalmente ligado às camadas sociais mais altas. Conheci figuras muito bonitas, como Mário Pedrosa, Sérgio Buarque de Holanda...

Eles freqüentavam essas reuniões também?
Talvez não tão assiduamente como eu, mas de vez em quando. Então passei a viver os problemas da formação do PT, tendo conhecimento só em parte das realidades brasileiras que se discutiam, mas muito identificado com os objetivos: o final da ditadura militar e o início de um modelo novo de democracia, fora dos modelos viciados que conhecemos na era republicana. Esses são os primórdios da ligação com o PT. No centro havia o Lula, por quem se tinha grande admiração, figura central na propaganda que se fazia em torno do partido que nascia.

O senhor foi um dos homenageados na fundação?
Homenageado não diretamente, era da velha-guarda. Essa situação muito privilegiada, com ou sem méritos especiais, em que os cabelos brancos sempre dão uma ajuda. Mário Pedrosa, Sérgio Buarque, eu e outros estávamos entre os primeiros na deferência. Era interessante o respeito dos líderes sindicais à cultura, à sabedoria. Isso mostrava também quanto o povo, por meio de suas forças organizadas, traz, como estímulo e sugestões de renovação da visão da sociedade e da natureza, um colorido novo, sem os velhos tabus das doutrinas anteriores, mas sob a influência das mais antigas utopias que queriam uma sociedade nova e diferente. Dentro desse quadro, sou incorporado ao PT, e René também estava comigo.

O senhor participava de reuniões no Rio?
Até esse momento não. Depois passei a participar do diretório regional do PT do Rio. Havia o deputado estadual José Eudes, da AP. Trabalhamos na criação e para o fortalecimento do partido no Rio. E, dentro dessa visão de que a presença dos cabelos brancos é necessária nos núcleos de direção, fui também convidado para ser membro da direção nacional. Recebi uma homenagem muito especial, que me deixou profundamente aturdido pelas suas dimensões: passei a ser membro da Comissão Executiva desse novo partido que nascia.

O senhor chegou também a ser vice-presidente?
Não só me deram a missão de membro da executiva como também passei a ser terceiro e segundo-vice. Claro que o primeiro era Jacob Bittar, isso era inalienável. Mas eu não me encantava, como nunca me encantei na vida com postos de direção. Nós nos demos – não é, René? – inteiramente ao trabalho de criação e formação do PT. Há algo a destacar, que é esquecido inclusive no interior do partido: seus núcleos de base, com a presença popular, o colorido das camadas sociais, níveis de consciência e cultura e atuação quase dominadora na fase inicial do projeto. O PT foi a mais bela forma e o mais belo modelo de democracia interna partidária que já tinha existido nesse meio milênio de existência de nosso país.

Primeiro, porque o PT estava se criando, não tinha ainda um projeto político definido, como ainda hoje tem certas falhas no seu projeto político. Segundo, porque vêm para o PT não somente as forças dos trabalhadores em seus vários ramos, mas as forças populares, a Igreja com as suas comunidades eclesiais, que já tinham certa margem de discussão de programas que olhavam para o futuro. Por exemplo, qual seria o tipo de regime político no futuro imediato e mediato? Quais seriam as relações com os partidos antigos ou partidos adjacentes? Dentro desse colorido de influências, de níveis de cultura e de debate interno, os núcleos populares foram de uma riqueza extraordinária!

Eu era ligado à direção nacional, sujeito aos seus apelos muito constantes. Nós vivíamos no Rio, mas constantemente eu era chamado a São Paulo, onde às vezes ficava uma semana discutindo...

Quais eram os grandes debates que a Comissão Executiva travava?
Começamos por criar um projeto político, muito amplo e sem definições mais precisas quanto às raízes e aos desdobramentos futuros, mas profundamente democrático e apoiado em suas forças populares. Naturalmente, com certas marcas e influências das faixas populares. Porque a criação do PT é marcada por uma forte presença de forças populares oriundas da CNBB e também das instituições mais apressadas na busca dos objetivos finais, o que nós chamávamos de maneira muito conciliadora de “as tendências internas”. E estas queriam o socialismo não amanhã de manhã, mas até o meio-dia! (risos). De maneira que os sindicalistas, um pouco apavorados com isso, mas senhores da sua força, se apoiavam também nas figuras que eram mais moderadas na visão das realidades. Nesse quadro passamos a trabalhar com um projeto político que tinha a visão longínqua do socialismo, mas ainda tímida – e aí entravam o imenso poderio e a imensa influência do mundo sindical predominante –, pois não se falava de socialismo. O PT, no seu manifesto inicial, a 10 de fevereiro de 1980, chama a sonhar uma sociedade sem explorados nem exploradores. Só em setembro ou outubro de 1981 é que o partido se anima a colocar dentro de sua visão e dos seus horizontes a palavra socialismo. Mais de um ano e meio depois, pela pressão presente e contínua das organizações mais impregnadas da pressa humana, e justa, mas ainda de olhos fechados quanto às possibilidades dessa realidade.

Em relação ainda às tendências há um artigo seu de 1990, em Teoria e Debate, defendendo o desligamento de algumas delas, que estavam na prática rompendo o pacto de convivência interna no partido. Essa democracia interna partidária, que seria traduzida na relação de diferentes grupos, visões, também trouxe algumas tensões e debates dos quais o senhor participou muito ativamente.
Nos anos 1978-1980, circulava um jornal de esquerda chamado Em Tempo, muito sob influência de organizações mais apressadas quanto às soluções finais. E, entre as entrevistas que fui convidado a dar para esse jornal, falei do problema das tendências com uma confiança um pouco exagerada no equilíbrio das sugestões das organizações mais apressadas. Eu achava muito interessante porque levava em conta que o PT não tinha raízes de visão profunda da realidade e de conhecimento das teorias políticas e sociais. Pensava que esses setores, ligados a faixas revolucionárias européias que discutiam muito os problemas de hoje e amanhã, ajudariam no debate interno, estimulariam a reflexão sobre doutrinas, problemas políticos, sociais e ideológicos, utopias etc. Inicialmente defini essa perspectiva, que a vida não iria endossar porque, em geral, essas instituições são bastante apressadas na visão de seus horizontes. São também profundamente voltadas para a tentativa de ganhar forças e impor sua visão de ritmo nas mudanças da sociedade no interior dos partidos, interessados diretamente nessas mudanças. Depois escrevi o artigo a que vocês se referem.

Uma das organizações apontadas pelo senhor, em 1990, que está indo além dos limites da democracia interna do PT é exatamente o PCBR, do qual o senhor tinha sido um dos fundadores...
Eu vi que as tendências não apenas disputavam ardorosamente os postos de mando e de influência na estrutura interna partidária como também passavam a disputar de maneira aberta os postos de comando no poder do Estado. Isso ficou evidente, e fui chamado a dar outra entrevista e lembrar o que me parecia justo, não aceitar a intransigência e a intolerância, uma das heranças do velho e querido – da época – PC. Achava que devíamos olhar para os problemas, preservar a identidade do PT e o caminho que ele tinha escolhido ao nascer, marcado pela confiança no povo, pela busca de liberdade e pela visão das realidades e das possibilidades reais das mudanças sucessivas correspondentes. Essas tendências se chocavam muito diretamente com o ritmo previsto de mudanças, o grande problema era o tempo. Senti que o choque era demasiado forte porque uma das tendências mais combativas na época deixou de existir com o nome próprio porque daria nascimento a dois outros partidos políticos que estão hoje na arena nacional. A Convergência Socialista era extremamente dura no julgamento dos elementos que tinham a liderança maior no PT e cujos ritmos e horizontes não coincidiam com os seus. Eu pedia que não houvesse a expulsão da Convergência, mas que a convidassem a transformar-se num partido. O PT, com sua influência já crescente, em 1987, devia ajudar tanto quanto possível a criação de novos partidos e as divergências seriam diluídas num quadro de alianças políticas, mas não quebrando a identidade de um partido nascente que precisava ter uma imagem mais precisa e mais unificada para dirigir seu povo e ganhar força. Inclusive eu convidava o PCBR a também ser afastado, mas este depois se fechou em maioria num partido sempre clandestino.

Quando o senhor foi para o exílio, sua militância estava vinculada ao PCBR, mas quando retorna está afastado de qualquer organização de esquerda mais definida.
Talvez melhor seria dizer “com boas relações com outras organizações de esquerda”, mas pedindo para que elas sentissem esse problema. Os meus objetivos principais eram as forças mais irreverentes, mais livres de limites no julgamento das lideranças do PT, a Convergência, a Causa Operária... Ambas se tornaram partidos políticos depois.

A partir de 1985 a ditadura está fora da arena política. O PT trazia em si a sua estrutura democrática partidária, com sua visão de democracia, com a visão de que chegaria a um modelo que não admitiria mais nem explorados nem exploradores e pelo socialismo. O PT sentia que o novo regime político, mesmo com todos os vícios da democracia que a era republicana apresenta, era respeitado...

Boa parte do PCBR que estava no exterior pensava em voltar para discutir com os companheiros da nossa organização. Inclusive o nosso filho René veio numa pequena delegação e parou no Chile, em escala para chegar ao Brasil, e discutir com os companheiros que queriam continuar a rebelião armada, quando havia uma situação política diferente e era necessário olhar para ela. Como a direção do PCBR, por maioria, não aceitava essas ponderações, continuamos a estimular essa situação de rebeldia diante do nível de consciência do povo e também um modelo de regime político que começava a se instaurar com todas as deficiências que marcaram sempre a democracia na era republicana. Deixamos o PCBR em 1979. Até então lutávamos pela anistia. Voltamos em outubro de 1979, a anistia havia sido em agosto. Muitos companheiros achavam que René e eu fazíamos a impulsão no caminho do suicídio, achavam que não haveria condescendência da ditadura em relação aos banidos etc. De maneira que o PT tem a alegria de lembrar que foi a pá de cal no regime militar com suas grandes greves do ABC.

Na verdade o senhor foi um caso bem especial, porque as lideranças tradicionais ligadas ao Partido Comunista, PCdoB, PCBR não foram para o PT.
O velho PC foi profundamente cioso de suas “qualidades excepcionais”, dono das verdades definitivas, único entre os partidos conhecedor da realidade, capaz de abrir caminho para outras instâncias e para outros regimes... De maneira que olhou com desprezo em direção ao PT. Desprezo pelas alianças, pela força dos demais partidos, a absoluta condição de portador do presente e do futuro. Olhava-se o PT como uma instituição pequeno burguesa, no sentido pejorativo, incapaz de abrir caminhos e, portanto, passageira.

Nas eleições de 1982 no Rio, diziam: “Vocês estão jogando votos fora, o PT não tem nenhuma chance de se consolidar como um partido”. Falava-se em “voto útil”, tínhamos de votar no PMDB, e o PT era visto como divisionista e uma aventura. Em 1982 o partido tinha de enfrentar as eleições. É verdade que era muito verde ainda nas realidades, tinha boa capacidade de busca do que devia ser justo, mas tinha um cabedal muito pequeno de cultura política e teórica. Lembro-me que o Lula me perguntou: “Vou ser o candidato ao governo de São Paulo, o que você acha, podemos ganhar?” Eu disse: “Acho difícil, mas não é mal tentar”. Era para mim uma confissão tirada sem dores, porque eu não tinha uma visão clara se seria bom ou ruim. Em 1985 ganhamos duas prefeituras, Diadema e Fortaleza. Em 1982 ganhamos os primeiros deputados federais, além dos quatro que o MDB, na sua decomposição, nos tinha dado de presente. Um partidozinho que já começava com oito deputados federais tinha certa importância. Também houve as eleições para as assembléias legislativas e câmaras municipais.

Essa imagem profundamente democrática, um partido integrado ao povo, assim o PT aparece e se torna um partido legal, em fevereiro de 1980. Nós saímos do quadro de movimento social já com o nome de partido que trazia consigo várias vozes convergentes e muito sonoras, a voz dos comícios nas portas das fábricas, a dos campi nas universidades, a das ruas nas grandes manifestações...

E a campanha das Diretas...
Como coroamento, em 1984, temos a campanha das Diretas. São várias vozes e faltava, a partir de 1983, 1985, uma outra voz, que seria efetivamente uma mudança de qualidade. Quando se fala em nós da História, são momentos de estancamento do surto de avanço. Quando se superam esses nós, temos o salto nodal. Seria efetivamente a voz das ruas, as eleições. E com as eleições nós temos um partido que está feliz porque deixa de ter as limitações clássicas do movimento social – que, ao lado do que tem de bonito, de abrangente, de profundamente social, é muito ligado às contingências, ao caráter isolado de suas faixas de ação: mulheres, negros, raças etc. Volta-se para o poder de Estado, para as relações novas da sociedade com o Estado. Esse é o grande salto nodal, que marca um avanço extraordinário, que ele faz ainda um pouco tateando. Esse salto terá profundas repercussões na imagem original do PT, um partido profundamente democrático apoiado nas bases; porque as câmaras municipais, os conselhos municipais, os governadores de estados, as assembléias legislativas e a Câmara Federal roubam dos núcleos o que havia de mais avançado, deixando os núcleos despovoados de suas lideranças. E o partido não tem forças nem consciência da necessidade de formar quadros novos, isto é, estabelecer as bases de uma formação política constante, estabelecer debates políticos para ajudar seus militantes.

O partido tem, sobretudo, a visão das relações entre a sociedade e o Estado. Só os partidos políticos podem unir forças sobre um projeto político comum: transformar a sociedade. O movimento social não pode de maneira nenhuma. Está subestimado na sua imensa credencial de força mobilizadora, abrangente etc. Não basta olhar para as mudanças da sociedade e agir por elas. Nós temos, a partir de 1982-1985, o esvaziamento dos grupos populares, que são a marca definida e excepcional do PT como partido político.

Nas primeiras campanhas eleitorais o senhor, com uma experiência política de décadas, participava?
Não, porque havia os problemas do partido e eu estava profundamente preocupado, nesse momento, com o esvaziamento da base popular do PT.

Mas já em 1982 existia isso?
Não. Em 1982 era apenas o rastilho inicial, mas, a partir de 1985, como há as secretarias de cada deputado federal, estadual, esvazia-se o que há de mais mobilizador, as faixas de lideranças dos movimentos populares, e depois um certo pendor para as eleições contamina também nossas lideranças. Eu nunca quis ser candidato. Posso ter esporadicamente participado das campanhas eleitorais, mas muito pouco. Jamais quis ser candidato, como jamais quis ter qualquer posto de mando no partido. Sempre me dei muito bem com o trabalho comum, de base, e com a pesquisa da realidade. Sempre participei das lutas internas, dos conflitos, dos debates, sempre com muita alegria, mas como um porta-voz de faixas da militância, nada mais que isso.

Há relatos de militantes do PT no Nordeste de que, nos primeiros anos, o senhor teve um papel na organização do partido em alguns estados do Nordeste, do Norte, por exemplo.
A um dado momento, eu estava ainda na Comissão Executiva Nacional e, um pouco enfermo, pedi ao partido para renunciar ao cargo porque não tinha condição física de cumprir meus trabalhos, mas consegui da direção e mais dois militantes muito aguerridos a possibilidade de visitar as direções do PT em todo o país. E assim pude verificar até que ponto decrescia a presença dos núcleos populares na estrutura partidária. Até que ponto decresciam os debates políticos, as conferências para discutir as questões gerais do país e do partido, coisas que marcam o PT desde os seus primeiros dias e lhe dão um caráter profundamente democrático. Visitei o Rio Grande do Sul, parte de São Paulo, Rio de Janeiro, o Nordeste, a Bahia, e verifiquei o vazio da base popular do partido, o esvaziamento contínuo da faixa ocupada até então pelos núcleos. Senti o quanto decrescia a imagem de democracia, de modelo de partido baseado na democracia interna, para a imagem do PT.

Viajei uns 16 dias. Eu participava também de certos debates porque já estava preocupado com o caráter pouco construtivo da luta interna partidária sob a influência de certas entidades. Convergência Socialista e Causa Operária faziam parte e havia outras que forçavam o desenvolvimento contínuo e em bases amplas e abrangentes de massas populares sob a exigência de passos muito rápidos à frente.

Essa característica de participação do PT na política institucional se aprofundou muito, a ponto de chegarmos à Presidência da República. Se por um lado é um momento histórico, por outro se agravaram esses problemas. Como o partido faz para manter sua identidade original e ao mesmo tempo avançar? Como o senhor vê o PT hoje?
Eu pediria a vocês que aceitassem uma pequena pergunta: e agora? Estamos na mais profunda crise que abalou as esquerdas nos últimos tempos e, em particular, afetou o PT. Apesar de toda a profundidade do PT, nós não soubemos abrir os olhos a tempo, para as raízes da crise e para seus efeitos. A crise é, ao mesmo tempo, um choque, uma surpresa, mas não é uma calamidade, não é nenhuma tragédia assustadora. Ao contrário, a vida se encarregou de mostrar que, menos de três semanas depois do seu desencadeamento, a 10 de fevereiro recente, era profundamente transitória e praticamente ruiu em sua base inicial. Os grandes vencedores neste fevereiro amargam uma derrota sombria. Isso significa que há uma realidade nova. O povo, com seu protesto, está começando a estabelecer marcos sucessivos de presença na recusa a essa ousada projeção do predomínio das mordomias, inclusive muito chocado com a parceria Judiciário e nova presidência da Câmara. Inclusive do que seria o respeito ao Parlamento, porque houve a tentativa de que as mesas das casas do Parlamento decidissem pela urgência do decreto de aumento de salários sem passar pelo plenário. Não é apenas um desdém, mas um insulto à democracia. Mas há, portanto, um mal-estar imenso no Parlamento com a voracidade de certas faixas desse próprio Parlamento; e nós tivemos um governo dividido, um PT dividido e, também, um Parlamento dividido. Alcançando um nível de uma posição unitária no Senado devido a uma visão marcada pelo espírito de ética, pelo respeito à democracia e ao Parlamento em si. Mas há uma demonstração clara de divisão no conjunto dos partidos políticos, no conjunto das casas do Parlamento, sobretudo na primeira casa e, em particular, no PT.

Eu acho que a divisão do PT é algo que marca sua trajetória desde o primeiro dia. Se vocês relerem os cadernos da Editora Fundação Perseu Abramo, inclusive o relato da sessão de fundação do PT, a 10 de fevereiro, do Perseu Abramo, verão como o choque das tendências apressadas modificava a visão original do PT e procurava se impor. De um lado a limitação das forças interessadas nas mudanças para os trabalhadores; de outro a pressa pela profundidade das mudanças. Mas, ao mesmo tempo, ao lado desse mal-estar, há também um bom contingente de cidadãos ciosos de democracia, de realidade, de respeito ao outro. O Parlamento tem forças, está mostrando agora, que não podem afetar a degenerescência da instituição e o abandono do sentimento e do pensamento do povo. Devemos enaltecer, sem cair na fantasia do otimismo barato – minha namorada insiste que sou um otimista barato –, a imagem dos poderes. E, ao lado disso, as forças vivas também ciosas do povo, que estão dentro de cada partido político, apesar de a degenerescência do troca-troca, de olhos fechados, abominável nos últimos tempos, ter jogado muitos ciscos sobre a imagem dos partidos políticos.

Diante dos partidos políticos, de uma faixa sensível do Parlamento, da presença abrangente de forças interessadas em sentir a pressão popular em vias de desenvolvimento, é preciso olhar sem receio de parecer demasiado otimista. Os níveis de consciência popular se revelam através de manifestações próprias, através do apoio e do estímulo às reações positivas dentro do Parlamento, inclusive dentro do PT.

É preciso voltar a ter confiança?
Não é só voltar a ter confiança, mas estimular a imagem original do PT, corrigir as ausências que determinaram sua situação secundária ultimamente, por meio dos debates políticos, da vida política interna, de conferências políticas que abram as consciências para avivar a alegria e o orgulho dos militantes do partido, que foi, ao nascer, o mais democrático de nossa história. Tem tudo para ser de novo o que foi, por meio de debate, da formação política, da abrangência e do respeito às alianças políticas, às instituições democráticas, a visão clara e apaixonada dos direitos humanos, das liberdades civis, da presença popular, no seu pensamento, nas suas propostas e na sua condução de prática coletiva.

Voltar a essa imagem sadia, promissora e rica do período original, dos primeiros anos, é um elemento extremamente considerável porque o PT é o partido mais forte das esquerdas, predominante do governo que eu chamaria de um governo plural. Vamos ter um governo de coalizão, mais amplo, mais seguro, e, nessas condições, poder olhar a confusão que começa a reinar nas parcerias, envolvendo pedaços dos poderes. Desculpem, me senti no palanque.

Alexandre Fortes é professor-doutor do Departamento de História da UFRJ e coordenador do Centro Sérgio Buarque de Holanda, da Fundação Perseu Abramo

Marieta de Moraes Ferreira é professora do Departamento de História da UFRJ e pesquisadora do CPDOC-FGV