Cultura

Uma resposta à resenha "À sombra do mestre"

Em edição anterior (Teoria e Debate nº 63), deparei com um texto do professor Nelson Schapochnik, a pretexto de resenha do livro Para uma Nova História: Textos de Sérgio Buarque de Holanda, organizado por mim e publicado pela Editora Fundação Perseu Abramo. Fiquei surpreso com a recepção do professor ao livro, pois é a primeira crítica, digamos, reticente neste quase um ano de lançamento. Surpreso ainda porque geralmente, em ocasiões e iniciativas raras como essa, costuma-se lançar luz ao projeto e vê-lo como uma contribuição não só ao entendimento da produção intelectual do autor, mas da própria memória social do país. Em qualquer outro lugar do mundo o anúncio de um projeto de pesquisa, organização e publicação de textos inéditos do mais importante historiador do país seria saudado com outros olhos. Mas, em país como o nosso, há quem não pense assim e, como o diabo que atormenta o cavaleiro da triste figura em Dom Quixote, “não dorme nunca e está sempre atrás da porta para se intrometer em tudo”.

Se nosso resenhista tivesse optado por lançar luz ao projeto, poderia ter falado tanto do primoroso trabalho da Editora Fundação Perseu Abramo como da excelência de sua linha editorial. Poderia também ter louvado a pesquisa de oito anos em arquivos de jornais e bibliotecas — com todas as dificuldades de financiamento encontradas —, que, antes de estar por trás da reunião desse material inédito, deu origem a uma dissertação de mestrado e a uma tese de doutorado. Se tivesse, portanto, lançado outro olhar sobre o projeto editorial, do qual o livro Para uma Nova História representa a pedra inicial, não teria cometido alguns mal-entendidos e, ao invés de obscurecer, teria iluminado a iniciativa.

Só para esclarecer esses mal-entendidos, quero salientar alguns pontos.

Primeiro, fico imaginando o esforço que o resenhista deve ter despendido, quando diz que o livro é “uma promessa que não cumpre os objetivos” e cujo “juízo não tem nada a ver com o conteúdo da obra”, para não entender que a editora tem um projeto de organização e lançamento dos textos inéditos de Sérgio Buarque de Holanda, que obviamente envolverá um trabalho criterioso de seleção de textos, remissão de citações, preparação de notas e todo o cuidado editorial que tem sido uma das marcas da Editora Fundação Perseu Abramo, contribuindo decisivamente para seu sucesso no cenário editorial brasileiro. Na página 17 da minha apresentação, esclareço que o livro é a pedra inicial de um projeto mais abrangente, ousado e instigante: a edição de praticamente todo o material publicado na imprensa por Sérgio Buarque de Holanda, exceto aquele já editado pelo professor Arnoni Prado, que já se encontra reunido e está sendo organizado e dividido em edições a ser lançadas nos próximos anos. Se em Para uma Nova História não foi assim é porque não era esse o espírito do livro, publicado como um volume para marcar o centésimo título publicado pela editora – que só poderia ter sido comemorado com um autor tão representativo como Sérgio Buarque de Holanda, fundador do PT. Uma coisa é o projeto de organização da ensaística do historiador inédita entre os anos de 1929 e 1980, incluindo os textos escritos e publicados em alemão, outra coisa é o livro Para uma Nova História. Feita essa distinção elementar, passo para a seguinte.

Quanto à obra ensaística de Sérgio Buarque de Holanda, esta jamais foi tratada pelo organizador como mero apêndice de suas obras clássicas, como insinua o resenhista. Na apresentação lê-se textualmente que “é possível encontrar pontos tão latentes de interseção entre os livros e os textos da imprensa que estes últimos podem ser considerados um apêndice daqueles”. Quais textos? “...os que foram publicados ao mesmo tempo em que o autor trabalhava em suas obras-primas e representam um momento de pausa nas suas reflexões mais sistematizadas, para lançar o seu olhar, não menos reflexivo, sobre os acontecimentos do tempo presente” (p. 16).

Quanto aos critérios de antologização, lembro que o livro foi organizado de forma temática, e não temporal, como queria o resenhista. O leitor notará que primeiro foram publicados os textos sobre política, depois os sobre história e por último os sobre historiografia, tendo sido o critério, portanto, temático. Os próximos volumes, sim, estão sendo organizados pelo critério periódico, procurando assim determinar a evolução do pensamento político, histórico, historiográfico, social e cultural do autor, ao longo dos anos de abrangência dos textos, o que nos permitirá inclusive uma melhor compreensão da sociologia histórica de sua vida intelectual.

Quanto ao título Para uma Nova História, é mais poético do que literal, não tem nada a ver com o debate acadêmico dos novos paradigmas historiográficos. “Para uma nova história” é uma metáfora que se refere mais à novidade e à revelação de outra faceta do historiador em relação à sua já consagrada produção de crítica literária e historiográfica.

Lamento que o resenhista não tenha entendido essa verdade elementar – que o projeto de organização dos textos de Sérgio Buarque de Holanda adotará critérios de seleção e disposição adequados – que, todavia, não podem ser julgados aprioristicamente – e, portanto, não ocorrerão “omissões”, “lacunas” nem “inferências arriscadas”, posto que estão sendo alvo do trabalho de profissionais, tanto no que se refere à pesquisa como no que se refere ao projeto editorial.

Mas o fato mesmo é que os textos publicados transcendem qualquer discussão menor e, portanto, o livro abre caminho para que se irradie, num campo ainda pouco conhecido, a luz da produção intelectual de Sérgio Buarque de Holanda.

Do que não foi dito pelo resenhista sobre o livro eu começaria por lançar luz sobre a importância da obra do autor para a experiência intelectual brasileira, que é indiscutível. Livros como Raízes do Brasil e Visão do Paraíso se inserem no cenário da historiografia brasileira como clássicos da interpretação da história do Brasil. Devemos a Sérgio Buarque de Holanda uma das mais sólidas e perspicazes contribuições para o conhecimento da realidade brasileira na medida em que, utilizando-se de métodos novos e reagindo a diversos climas intelectuais e políticos, transformou as interpretações historiográficas tradicionais feitas até então e, a partir daí, abriu precedente para a reflexão sobre o Brasil e sua formação social, econômica, cultural e política. Os textos do livro Para uma Nova História não fogem à regra. Lamento apenas que tenha sido lido, supostamente, até a página 18, pois não há na resenha nenhum comentário sobre os textos de Sérgio Buarque de Holanda, desperdiçando, desse modo, uma oportunidade rara de conhecer um material inédito e se manifestar sobre o pensamento do maior historiador brasileiro no século 20.

Nesse sentido, se o resenhista tivesse lido, por exemplo, “Mentalidade Capitalista e Personalismo”, publicado em 1947, teria percebido que nesse texto se reiteram críticas do autor à modernização brasileira feitas em Raízes do Brasil, que se revelam um verdadeiro fulcro inspirador comum em todos os seus trabalhos e que reconstitui a tensão entre tradição e mudança histórica. Se tivesse lido o texto “Depois da Semana”, teria percebido que se trata de um importante ajuste de contas e um dos primeiros balanços críticos da Semana de 22. Se tivesse lido os textos “Os Problemas da Democracia Mundial”, “Introdução à Democracia”, “A Democracia e a Tradição Humanista”, do relatório das reuniões da Unesco sobre a questão da democracia no mundo, teria percebido que é o radicalismo democrático que ilumina o pensamento de Sérgio Buarque de Holanda, em que estaria exposto um exemplo de como a consciência política de um intelectual deve estar presente na sua obra, além de demonstrar que a análise do passado não deve ser operação saudosista ou de mera verificação, mas sim servir como arma para abrir caminho aos grandes movimentos democráticos.

Se tivesse lido textos como “Economia Colonial II” e “Economia Colônia III”, “Da Lei Eusébio à Crise de 1864” e “Cooperação e Trabalho Livre”, publicados em 1946 e 1947, depois do lançamento do livro Monções, em 1945, teria percebido a antecipação em relação à historiografia francesa da interseção entre cultura material e mental, ofício no qual o autor foi mestre, podendo ser considerado um historiador  a cultura avant la lettre, e poderia ter ido além de somente dizer que “o interessado em conhecer as interfaces da cultura material com as representações simbólicas na história do Brasil que não tenha transitado pelos textos de Sérgio Buarque de Holanda merece mais nossa piedade que nossa reprovação”. Poderia ter ele mesmo transitado na obra do autor e demonstrado como essa interface entre cultura material e representações mentais se dá. Se tivesse lido textos tais como “O Senso do Passado”, “Apologia da História”, “Para uma Nova História” entre outros, publicados nos anos 50, teria percebido o rico debate em torno dos novos paradigmas historiográficos que estavam surgindo na época, além do pensamento de Sérgio Buarque de Holanda sobre o ofício do historiador, quando cita um diálogo entre Henri Pirenne e Marc Bloch e conclui que “para o verdadeiro historiador há de importar primeiramente o esforço para a boa inteligência do tempo presente se quiser entender o passado”, coisa rara entre os historiadores de hoje.

Nesse sentido, se o resenhista tivesse dispensado a devida atenção ao livro, e não aos caraminguás acadêmicos e burocráticos, a análise obscurantista que fez do projeto, certamente, apareceria com o sinal trocado.

Da próxima vez, se eu fosse você, realmente começaria por aqui.

Marcos Costa é organizador de Para uma Nova História: Textos de Sérgio Buarque de Holanda