Cultura

Duas âncoras sustentam o filme 2 Filhos de Francisco: a integridade da família e busca pelo sucesso

Duas âncoras sustentam um filme realista e conservador: a integridade da família e a busca do sucesso. Lança um olhar “iraniano” sobre uma sociedade em que convivem um sogro medieval (Lima Duarte), a cobrar do genro uma espécie de corvéia ou o aluguel do arado para trabalhar a terra, que não se conforma com a implantação de uma escola isolada na casa de Francisco (Ângelo Antônio) e da filha Helena (Dira Paes); o sonho alimentado por um transmissor de rádio – o mais importante utensílio do rancho –, convertido numa obsessão, “na loucura” de Francisco; a miudeza dos pequenos golpistas travestidos de empresários, povoando restaurantes de beira de estrada, rodoviárias miseráveis comícios municipais ou assediando rádios locais, como Miranda (Zé Dumont); e o mundo da megaindústria do entretenimento.

Uma dose de lágrimas suficiente para estabelecer o vínculo com o sentimentalismo do público amante da música sertaneja ou mesmo da música caipira tradicional, registrada na trilha sonora traçada por Caetano Veloso e César Augusto, 2 Filhos de Francisco, talvez por narrar uma história baseada em fatos reais, traz consigo os ingredientes da composição tradicional na música caipira – a família, a fatalidade da tragédia, o sentimentalismo nas relações, o êxodo para a cidade, o mundo urbano hostil, a morte do filho na busca do sucesso – para com eles penetrar o imaginário do público predisposto a receber de coração aberto a mensagem de que é possível com vontade e talento subir na vida, “obter sucesso na cidade grande”.

Na busca da redenção da pobreza pelo talento dos filhos, Francisco – “e sua loucura” – constitui-se na espinha dorsal do sonho conservador e do filme. Depois do rádio, a magnífica sanfona comprada com o resultado da safra e posta contra o peito do menino significa, de fato, uma aposta, um salto no escuro. Mas, antes de tudo, constitui-se numa recusa, ingênua ou não, à condenação a uma vida organizada por outro instrumento: a enxada. Se a enxada é o cabo e a lâmina de ferro da segurança, da previsibilidade, mas também da escravidão, da condenação ao trabalho da terra, a sanfona encarna a liberdade, o imprevisto, a beleza, a vertigem do desconhecido – a cidade grande para onde se dirigem Francisco e os seus. Onde repetirão a sina dos milhões de deslocados do campo para a cidade no período de vigência do regime militar: encontrar o ganha-pão como servente de pedreiro, na construção civil, porta de entrada dos deserdados do campo no mercado de trabalho braçal das cidades.

A tenacidade, talvez resida aí a raiz da “loucura” algo instintiva – o filme nunca a explicita na forma de consciência – de Francisco ao jogar seu destino de maneira absoluta no improvável sonho de ver os filhos alcançar o sucesso como dupla sertaneja. Uma determinação que o leva a entregar os dois meninos aos cuidados do “empresário” Miranda e permanecer um período intoleravelmente longo sem nenhuma notícia deles. Gera assim o único conflito real no âmbito da família quando Helena cobra, mais com os olhos do que com as palavras, mais com a dor premonitória da mãe do que com a revolta, os filhos de volta para casa. A rigor, aos olhos de uma família urbana modesta, seria um gesto inaceitável um pai entregar dois filhos menores a um desconhecido na ingênua expectativa de uma carreira artística, naquele interior do Brasil, distante dos grandes centros culturais, longe, portanto, das melhores oportunidades.

Um olhar crítico sobre a conversão desse esforço, por assim dizer, “artesanal” de Francisco em favor dos filhos – o investimento em fichas telefônicas e a montagem da rede de operários ouvintes que liga do telefone público pedindo que o programa de rádio toque a composição dos filhos – no fenômeno de massa produzido pelo salto para a indústria cultural, para a produção em massa da música de consumo poderia revelar aspectos interessantes do processo de fabricação dos megastar neste país da música. Não era, seguramente, o propósito do filme. Seguirá – com a indicação ao Oscar – como mais uma peça de sustentação da dupla que já vendeu mais de 20 milhões de discos.

2 Filhos de Francisco

Direção: Breno Silveira
Com: Ângelo Antônio, Dira Paes, José Dumont, Paloma Duarte, Márcio Keiling
Trilha sonora: Caetano Veloso e César Augusto

Hamilton Pereira é presidente da Fundação Perseu Abramo