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Entrevista com Leonardo Boff - "O teólogo é um ser impossível"

 

“O teólogo é um ser impossível”, confessa Leonardo Boff, seguindo as trilhas de São Boaventura e São Alberto Magno no ensaio “Teologia sob o signo da transformação” (O Mar se Abriu – Trinta Anos de Teologia na América Latina. Luiz Carlos Susin (org.), Edições Loyola, 2000). A teologia seria “ante et retro occulata”, possui um olho voltado para o passado, em que lê os textos da revelação, os testemunhos da fé, os mestres exemplares e as tradições sagradas, e outro voltado para a frente, em que capta as intimidações da realidade complexa, contraditória e provocadora.

Nesse ensaio em que revisita seu percurso teológico de mais de quarenta anos, Leonardo Boff nos fala desta impossibilidade criativa do ser, constituído na cultura dos milênios e atravessado pelas promessas da emancipação. Sua primeira formação teológica deu-se na Ordem Franciscana, tendo lido durante sete anos os mestres medievais. “Quase sucumbi à tentação dos fraticelli do século 14, ao considerá-los mais fecundos que os evangelhos e mais inspiradores que Jesus de Nazaré.”

Em Um Balanço de Corpo e Alma (Editora Vozes, 1989), refaz os caminhos do “menino de pés descalços, maldizendo os dias gelados de junho-julho, montado num velho cavalo para ir ao moinho, levando trigo e trazendo farinha para o pão de mamãe, feito no forno de pedras rústicas”. Suas várias crises criativas como teólogo: dos mestres medievais da neo-escolástica ao pensamento transcendental de Karl Rahner e com a fenomenologia de Heidegger por intermédio de seu discípulo católico Max Müller, em seus estudos em Munique; a crítica da teologia fenomenológica pela teologia política de J.B. Metz e J. Moltmann, que lhe “abriram o mundo como conjunto de relações sociais e políticas e a responsabilidade do cristianismo para a gestação da crítica denunciadora das ilusões da modernidade individualista”.

A crise formadora decisiva, no entanto, foi em 1970, em um retiro para padres e religiosos missionários na floresta amazônica, em Manaus. “No terceiro dia de retiro minha crise se havia densificado de tal forma que não conseguia mais fisicamente falar”, lembra. A grande síntese: “Devemos atuar de forma revolucionária e libertadora para dar as razões de nossa fé e fazer jus aos títulos de sua pretensão, que é representar o desígnio de Deus na história”. Em seguida, viria o encontro com a obra de Marx.

O livro Igreja: Carisma e Poder – Ensaios de Eclesiologia Militante (Vozes, 1981) seria fruto dessa personalíssima imersão na vasta experiência das comunidades eclesiais de base. A experiência social da emancipação pensada a partir do carisma de São Francisco, “o que quer ser radicalmente pobre para ser plenamente irmão”, torna-se síntese do encontro histórico do cristianismo com o povo brasileiro. A nova Igreja do povo que está surgindo olha criticamente para a Igreja de Roma e sua “organização interna de cunho feudal, discriminatório e autoritário”.

É, ao mesmo tempo, a raiz na teologia franciscana de São Boaventura – a teologia cordis e a sacramentalidade de todas as coisas – que lhe permite na última década renovar a Teologia da Libertação como um pensamento ecológico cósmico tensionado para se situar frente à crise de civilização. “Pode o finito conter o Infinito / Sem ficar louco ou adoecer? / Não pode. Por isso eu grito / contra esse morrer sem morrer / Implode o infinito no finito! / O vazio é Deus no meu ser!”, diz em um poema do seu último ser em expansão.

Este cuja teologia já é parte da história cultural do povo brasileiro e cujo ser busca a harmonia sobre todas as coisas, paradoxalmente, nutre-se permanentemente da crise. É desse lugar que nos fala, de forma comovida e comovente, sobre os desafios da refundação do PT (JG).

Em Igreja: Carisma e Poder há uma construção crítica de como as determinações do poder político, no plano simbólico e material, afastaram em vários momentos históricos a estrutura oficial da Igreja Católica dos valores fundadores do cristianismo. A Teologia da Libertação sempre manteve uma saudável desconfiança das impregnações não virtuosas do poder na prática social. Como neutralizar as necessidades impostas do realismo político com a força das utopias da transformação? Em que medida a experiência do PT teria falhado nesse desafio essencial?
Há permanente tensão entre utopia e história, entre sonho e realidade. Para essa tensão não há equação perfeita, porque a utopia e o sonho sempre desbordam de qualquer realização concreta. O problema é como manter os dois pólos articulados, já que eles vêm sempre juntos. Acho que, antes de tudo, precisamos melhorar nossa concepção de realidade. Esta não se opõe à utopia. A utopia pertence à realidade. A realidade nunca é apenas o dado empírico. Ela contém dentro de si infindas virtualidades e possibilidades. Desse seu lado potencial nascem as utopias e os sonhos que buscam concretização, embora nunca o consigam de forma definitiva. A conseqüência prática é que nunca devemos identificar o real com o utópico. Precisamos relativizar o real. Não podemos nos perder nele. Quando fazemos a identificação, esvai-se o sentido da crítica, renunciamos à liberdade de criar e, no limite, podemos nos tornar conservadores e até fundamentalistas.

A hierarquia da Igreja, que surgiu num determinado momento da estruturação do poder sagrado pari passu com o poder temporal dos imperadores europeus, identifica esse fato com a natureza mesma da Igreja. Dogmatizou a história e assim sepultou a força estruturante dos ideais originários que apontam para formas participativas de poder, como comunhão de pessoas, como serviço comunitário, e não como centralização em poucas pessoas. Estimo que, de maneira semelhante, grupos do PT, especialmente da direção, identificaram o sonho Brasil-diferente com o projeto do PT, como se o partido tivesse o monopólio da representação e dos meios para realizá-lo. Esses estratos se burocratizaram, impediram a emergência da crítica interna e criaram obstáculos à criatividade que vinha dos ideais originários. Um certo desapego e distanciamento da própria posição é fundamental para a saúde política dos dirigentes e para manter aberta a história a outras formas de estruturação, diferentes daquelas convencionais em política.

A crise do petismo revela também o enfraquecimento dos valores de uma ética pública e a capacidade de agenciamento do que poderíamos chamar de “mercado da política” em sua cultura. Como a Teologia da Libertação enfoca essa relação a partir do reconhecimento da autonomia relativa entre a dimensão da ética e da política?
A Teologia da Libertação, em sua leitura da grande instituição Igreja (fundamentalmente da hierarquia da Igreja), deu-se conta de que houve na história uma concentração lenta e persistente do poder sagrado, controlado por um corpo de peritos (bispos e padres), correlato a um despotenciamento quase completo do povo de Deus. Inicialmente era uma comunidade fraternal, e os leigos participavam de tudo o que interessava a todos, até da eleição dos bispos e do papa, em Roma. Lentamente houve um verdadeiro golpe contra a participação dos leigos, até sua expressão maior com o papa Gregório VII, que publicou um famoso documento com o título Dictatus Papae, que traduzido literalmente significa “a ditadura do papa”. Isso ocorreu em 1077 e perdura até os dias de hoje. Todo o poder está nas mãos da hierarquia. Aos leigos cabe apenas ouvir e obedecer. Não possuem cidadania eclesial. São massas religiosas sem expressão e infantilizadas. No lugar de uma Igreja-rede-de-comunidades surgiu uma Igreja-sociedade-hierarquizada-desigual.

Diria que sempre que se descola de sua base real, que é o povo, quando não se deixa controlar por esse portador originário nem se enriquece com uma articulação orgânica com ele, esse poder acaba se isolando, se substantivando, se autonomizando, até se tornar totalitário. Os teólogos denunciavam esse fenômeno com o nome totatus: uma totalização completa e fechada da Igreja. Isso é fascismo religioso. Para se manter, articula-se com outros poderes seculares, corrompe-se pelos privilégios, viola todas as leis éticas ao afastar concorrentes e um eventual antipoder.

Foi analisando o comportamento dos papas da Renascença e o maquiavelismo de suas políticas, grande parte criminosas, que Lorde Acton pronunciou aquela frase conhecida: “Todo poder corrompe, e o poder absoluto (dos papas e bispos locais) corrompe absolutamente”. Já Hobbes, no seu Leviatã, denunciava a lógica do poder: “O poder só se garante buscando mais poder”. A expressão material desse poder é o dinheiro, que potencialmente tudo compra. Estratos do PT, na minha avaliação, foram vítimas dessa lógica: buscaram o poder do dinheiro, não tanto para se beneficiar pessoalmente (embora em alguns tenha ocorrido), mas para fortalecer o poder do partido com o interesse de se perpetuar por longo tempo no poder de Estado. Ligados organicamente às bases, os políticos são continuamente educados, reeducados, pelo povo e nele encontram mil razões para continuar a lutar por causas justas que atendam às demandas desse povo.

O tema da subjetividade do agente social da transformação, do militante social, também aflora com muita força nessa crise, quando se revelam episódios grotescos de corrupção ­pessoal. Se uma mentalidade sacrificial da vida, muito típica de certo cristianismo, parece carecer hoje de poder de polarização, como renovar a fusão entre o sentido cotidiano da vida e a dedicação à emancipação social?
Aqui é importante resgatarmos o sentido radical de revolução e a compreensão correta da função do indivíduo na história. A revolução, para ser radical (mudança de rumo na história para atender às demandas da população sistematicamente negadas), precisa envolver todo o homem e todos os homens. Não basta que sejam transformadas apenas as relações sociais. Cada sujeito deve ser envolvido nesse processo e ele mesmo mudar. Se não mudar, a revolução em algum momento mostrará seu impasse. Foi por não ter tido cuidado com esse processo global, que inclui o sujeito concreto e pessoal, que o socialismo, no meu entender, abortou seu projeto libertador. Deixou as subjetividades intocadas, especialmente com referência à mulher e à questão do meio ambiente. Continuou oprimindo a mulher e devastando a natureza.

A revolução, para ser radical, tem de ser permanente, como processo aberto de melhora contínua das relações − uma espécie de revolução sem fim que, para ser concreta, e não utópica, deve flexibilizar suas instituições e submeter à vigilância os hábitos políticos. Se determinarmos que o objetivo final de um processo revolucionário é o estabelecimento da democracia integral e da cidadania plena, devemos visar àquilo que o pensador luso Boaventura de Souza Santos bem formulou: a democracia sem fim. Realizar tal objetivo é o sentido maior da política e da ação dos seres humanos na História. O sujeito não pode ser entendido nos moldes do liberalismo e da visão burguesa da sociedade, em seu esplêndido isolamento e independência. O sujeito é sempre e concretamente um nó de relações, não apenas sociais (a tendência do pensamento de Marx), mas de relações totais e em todas as direções, até aquelas que incluem o transcendente e a sede de infinito.

O sujeito emerge assim como um projeto infinito, impossível de ser enquadrado numa ideologia, num quadro político e religioso ou cultural. Ele desborda sempre. Se não começar o processo de mudança por ele próprio (aquele pedacinho de mundo e de sociedade que é ele mesmo), dificilmente irá mudar as relações sociais. Kant, no meu modo de ver, articulou bem o duplo aspecto da ética, o pessoal e o universal: “Viva de tal maneira que aquilo que você vive possa ser válido para todos os demais seres humanos”.