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Acostumou-se a governar com o povo, percorrendo feiras no interior do estado, ouvindo queixas e reclamações

Ele não pôde sequer receber os desenhos que os filhos, ainda crianças, prepararam para homenageá-lo no Dia dos Pais. Naquele dia, silencioso, mas não sombrio, permaneceu isolado num canto da capela, cercado de soldados armados, à espera de um casamento que se anunciava tenso. O casamento da filha Ana Lúcia com o escritor Maximiano Campos, ainda quase adolescentes, na Base Aérea do Recife. Chegou e partiu como prisioneiro, sob o domínio de baionetas, com licença apenas para abraçar os filhos. Nada de conversas. Nem mesmo afetividades.

O governador deposto de Pernambuco pelo golpe militar de 1964, Miguel Arraes de Alencar, acabava de deixar, por breves instantes, o presídio do arquipélago de Fernando de Noronha, para onde fora levado, sem julgamento, havia dias, acusado de desestabilizar o poder conservador do Brasil e levar Pernambuco para os obscuros caminhos do comunismo. Um homem firme, mas humilde, que chegara ao poder recitando os versos de Drummond:

"Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo"

Eram tempos escuros e pesados. Mas ele não perdia a serenidade. Respondeu a inquéritos e foi jogado no exílio da Argélia. Tornou-se membro do Bureau Internacional Bertrand Russel para a Liberdade, amigo de Jean-Paul Sartre, Gabriel García Márquez, Pablo Neruda e José Saramago. Na época do exílio, tinha 48 anos de idade. Agora, aos 88 anos, três vezes eleito governador do estado, presidente do Partido Socialista Brasileiro (PSB) e deputado federal, agoniza no Hospital Esperança, do Recife, atacado por uma pneumonia resistente.

Acostumou-se a governar com o povo, percorrendo feiras no interior do estado, ouvindo queixas e reclamações, o que lhe custou a acusação dos inimigos de trabalhar somente pelos grotões. Foi ali, porém, que escutou um homem dizer, na simplicidade do chapéu amassado nas mãos: “Querem levar dr. Arraes para o Purgatório, mas ele vai mesmo é para o Céu”. No momento, não entendeu. Um dos assessores explicou que o homem fizera referência ao problema dos precatórios, mote de campanha eleitoral em 1998. Os inimigos o acusavam de ter alterado as listas de pessoas, com nomes fictícios ou de mortos, com direito a indenização – os precatórios, na expressão jurídica. Mais tarde, verificou-se ser uma inverdade, com direito a absolvição no Supremo Tribunal Federal. Os adversários se apressaram em dizer que nunca fizeram acusação alguma a Arraes. O povo já o havia absolvido.

Nos sábados à tarde, costumava receber amigos e políticos no terraço do casarão da Rua Olegarinha Cunha, no bairro de Casa Forte, cercado de árvores, quase sempre ao lado de dona Madalena, a esposa, mãe de Pedro e de Mariana. Boa conversa regada a uísque, gargalhadas e brincadeiras. Às vezes fuma charutos. Foi justamente o cigarro que lhe provocou os maiores problemas na saúde, embora nem todos os médicos concordem. Fumou muito desde os 12 anos de idade, quando ainda morava com os pais, no Crato, pequena cidade do Ceará, onde residem três de suas cinco irmãs: Ana, 87 anos; Maria Alice, 85; e Almina, 81.

Gostava de rir, mas era contido na afetividade. Sabia dosar uma conversa e tinha o ritmo no discurso. Esse traço do caráter do ex-governador, aliás, foi destacado pelo escritor Antônio Callado: “Eu diria que se trata de um dos homens mais contidos, mais bem-educados que me foi dado conhecer. O mais importante é dito às vezes por ele em tom de quem fala, digamos, do tempo: vai ou não chover, ficará ou não nublado à tarde. E Arraes pode estar falando em tiro, e não em trovoada, em fechamento do Congresso, e não do horizonte meteorológico. O homem é imperturbável, daqueles que, mesmo quando estão narrando, ou evocando passagens realmente duras de suas vida, o fazem com um distanciamento raro”.

Conta-se, por isso mesmo, que esse comportamento vem do pai, também cercado de lendas. Doente, teria pedido ao médico que não o deixasse morrer deitado. Em coma, foi levantado pelos amigos e morreu de pé. No meio da sala. Firme. Sem gritos ou gemidos. Pode nem ser verdade, no entanto a história ilustra muito bem a força e a determinação da família, sempre disposta à luta. No terceiro governo, teve de trabalhar apenas com o dinheiro de Pernambuco, porque o governo federal lhe negava recursos, sistematicamente. Mesmo assim, optou por não fazer críticas constantes, em público, da atitude do governo. Discreto, sempre discreto.

Discreto e resistente. Fisicamente. Numa viagem a Garanhuns, cidade turística pernambucana a 400 quilômetros do Recife, precisou ficar até 2 da manhã no Festival de Inverno, onde acompanhava a apresentação de cantores e bandas de sua preferência. Os assessores se mostravam preocupados porque ele teria de se levantar às 6, a fim de seguir viagem ao Sertão. Todos ainda dormiam quando ele apareceu pouco depois das 5 horas no restaurante do hotel para o café matinal. Mandou acordar os assessores.

Acompanhava com muita atenção as artimanhas da direita brasileira, que via nele um político astuto e competente. “A elite está sempre trabalhando contra mim, mas eu furo por baixo, com o povo”, dizia, enquanto comentava os rumos da política brasileira, no vasto terraço do casarão. Ali também costumavam se reunir escritores e intelectuais de toda ordem para ouvi-lo, até porque ele tinha sempre uma particular visão da sociedade e do país. Na verdade, tinha um projeto para o Brasil, que está consagrado no livro Miguel Arraes: Pensamento e Ação Política, publicado em 1997 pela editora Topbooks, do Rio de Janeiro.

Para ele, o “Estado, privatizado pelas elites, foi industrializado para fomentar a concentração do sistema financeiro e apoiar a consolidação de cartéis e monopólios privados. Dois Brasis surgiram desse projeto. Um, mínimo, formado pela elite que vai do operário especializado da grande indústria à alta classe média e aos ricos; outro, máximo, que vai dos miseráveis que dormem nas ruas às camadas médias, cada vez mais incapacitadas de manter seu nível anterior de vida. Dois Brasis separados em seus extremos pelo fosso de vergonha entre os que comem três vezes ao dia e os que nada comem”.

Tudo isso é resultado da visão dos famintos que carregou vida afora. Era a grande e avassaladora seca de 1932. Junto com o pai, ficava na calçada da casa, distribuindo água e bolacha aos miseráveis que chegavam quase desfalecidos. Nunca mais esqueceu os excluídos.

No hospital, atendido por médicos e enfermeiras, não podia conversar com políticos de todas as tendências e partidos que se acotovelam nos elevadores, assinavam livros de visitas, falavam aos microfones de televisões e rádios, e constatavam o verdadeiro comportamento do líder:

− É um homem em que se pode confiar −, como observou o deputado federal Roberto Magalhães, seu adversário em muitas eleições e prefeito do Recife quando ele era governador pela terceira vez.

Na solidão da UTI, era possível recordar os versos por ele preferidos do poema do pernambucano Joaquim Cardozo:

"Sou um homem marcado em país ocupado pelo estrangeiro"

Raimundo Carrero é escritor e jornalista pernambucano