Nacional

Entrevista com Ricardo Berzoini

Candidato do Campo Majoritário, eleito presidente nacional do PT no dia 9 de outubro, o deputado federal Ricardo Berzoini derrotou no segundo turno, com cerca de 52% dos votos, Raul Pont. Nesta entrevista, Berzoini fala da situação política nacional, da crise do PT e das perspectivas eleitorais para 2006.

Você acaba de ser eleito presidente do PT. Qual sua avaliação do Processo de Eleições Diretas (PED) e a composição da nova direção?
O PED revelou a vitalidade institucional e emocional do partido. Num momento de crise grave conseguimos que 315 mil pessoas votassem no primeiro turno e mais de 230 mil no segundo turno. É óbvio que o processo todo foi contaminado pela crise e alguns setores acabaram trabalhando de maneira oportunista, tentando inclusive polarizar um embate entre os “éticos” e os “não-éticos”, o que considero uma despolitização. Mas, no geral, foi muito positivo porque permitiu confrontar as posições políticas e resultar num processo de convivência mais qualificada, criando uma correlação de forças que, embora dando a presidência ao Campo Majoritário, não deu maioria para essa chapa. Portanto, teremos uma vida política mais rica dentro do PT, com a obrigação de todos construirmos, de maneira mais qualificada, consensos ou maiorias pontuais que possam dar a direção para o partido no próximo período.

Quais são os principais desafios para o partido no próximo período?
Primeiro, é ter capacidade de comunicação com sua base filiada, com os simpatizantes e a sociedade em geral sobre o diagnóstico que o partido tem de produzir da crise política. Segundo, construir um balanço da experiência petista de governar o Brasil, obviamente ressalvando que é o governo do PT, mas não só. É uma experiência compartilhada e, portanto, com todas as contradições que isso enseja. Nós temos a obrigação de construir de maneira democrática um balanço da experiência governamental. E, em conseqüência desse balanço, produzir uma proposta de programa de governo que dialogue tanto com o capital acumulado nessa experiência governamental quanto com a realidade dos movimentos sociais, para não ser um balanço “chapa branca”, oficialesco. Tem de ser um balanço que dialogue com a base do partido e projete uma nova formulação de esperança – na minha avaliação, o combustível da política -, que construa eixos para o segundo mandato do presidente Lula e também se reflita em nossas campanhas estaduais no Brasil inteiro.

E como você vê esse processo?
Eu vejo com bastante preocupação no que toca a nossa capacidade de traduzir de maneira clara o desafio do Brasil e do PT. Quem está no governo tem de dialogar com o que foi feito e o que deixou de ser feito, com as insuficiências e as contradições de um governo de composição como o nosso, e saber construir eixos programáticos para o futuro de maneira realista, ou seja, de modo que não se projetem apenas bandeiras simbólicas, que são importantes, mas não suficientes. Acredito que é necessário combinar o imenso potencial econômico que o Brasil tem com uma visão de economia social. Por exemplo, a educação no Brasil tem um imenso papel social, de melhorar as condições de vida da população, se trabalhada com mais qualidade, com mais estratégia, e, ao mesmo tempo, tem uma dimensão econômica fantástica. O grande salto econômico que o Brasil precisa dar, agregando valor a sua produção, gerando mais emprego, gerando emprego de melhor qualidade e construindo um outro futuro, é por meio da educação. Como fazer isso?

Há diversas formulações que foram testadas e não deram o resultado esperado. Nosso governo avançou em diversas áreas na questão educacional, mas tem um salto de qualidade que ainda precisa ser dado, que é encontrar a maneira clara de construir uma educação básica de qualidade. O Fundeb é parte disso, mas não é tudo. De outro lado, é necessário projetar uma reestruturação do ensino médio e do superior, na lógica de se aproximar do processo produtivo sem perder a característica humanista e universalista. Esse eixo vai ao encontro da aspiração do homem mais simples e dos segmentos mais sofisticados do pensamento nacional. E tem de ser construído não como uma bandeira oportunista de eleição. É um projeto para dez ou doze anos. Nas outras áreas – saúde, meio ambiente, políticas sociais de transferência de renda etc. –, tudo tem de ser construído com esta visão: dialogar com o que fizemos, capitalizar o que fizemos, estabelecer uma avaliação sincera, capaz de valorizar os aspectos positivos, e, ao mesmo tempo, construir projetos que sejam visíveis e factíveis.

Um segundo governo Lula deve dar mais peso ao social?
Sim, nestes três anos governamos uma boa parte do tempo com a responsabilidade de reverter a dinâmica irresponsável do governo anterior, que produziu um conjunto de incertezas para o futuro tão grande que a expectativa de quebra do Brasil no final de 2002 era altíssima no mercado financeiro, nacional e internacional. E foi salvo temporariamente por um acordo, ao qual o FMI exigiu que Lula, Ciro, Garotinho e Serra dessem aval. Nossa responsabilidade foi – e o presidente Lula foi muito corajoso em fazer isso – realizar uma política econômica extremamente austera; em muitos aspectos, conservadora; em alguns aspectos, exageradamente conservadora. E conseguiu-se reverter essas expectativas, mostrando que nossa dívida era viável, que poderia ser desdolarizada. Hoje a parcela dolarizada é inferior a 4%. Estancamos o crescimento contínuo da relação dívida-PIB e até reduzimos essa relação. Melhoramos vigorosamente os números da balança comercial e da balança de transações correntes e estabelecemos um conjunto de indicadores favoráveis para a economia. E isso foi feito com geração de emprego. Chegamos, neste momento, a 3,6 milhões de empregos gerados, ou seja, não houve uma política que tenha tido só o viés conservador. Houve simultaneamente uma série de medidas e o aproveitamento da conjuntura internacional para alavancar a criação de empregos.

Então, há combinação de uma política macroeconômica conservadora em muitos aspectos, mas necessária, com a política microeconômica de incentivo a vários setores de produção que estavam estagnados, com o aumento do crédito ao trabalhador, do Pronaf, do Proger. Em alguns momentos foi questionada essa contradição: de um lado, o Copom puxando o freio e, de outro, os programas de crédito, incentivando o consumo e a produção, e conseguimos criar um processo virtuoso. A questão colocada é: isso basta para nós?

Temos condição de projetar para o segundo mandato uma política econômica de outra natureza, que mantenha o modelo, na minha avaliação acertado, pela natureza da dívida brasileira, mantenha um superávit primário grande – o quanto, depende de uma projeção, de um conjunto de variáveis, sobretudo da taxa de juros real. O superávit primário é função da taxa de juros real e do estoque da dívida. Não há razão para ter um número mágico - 4,25 é bom, 4 é ruim, 5 é demais, 3 é pouco. Podemos ter 3,5 ou 3 e mesmo assim ser suficiente, dependendo da conjuntura internacional e da situação de financiamento da nossa dívida. Mas precisamos ter uma visão clara da execução orçamentária das áreas sociais e da infra-estrutura e da necessidade de a economia ser, em vários segmentos, impulsionada pelo Estado, como tem feito aliás nosso governo, com os instrumentos de que dispõe, e eu acho que o papel dos bancos públicos ainda pode ser melhorado fortemente.

Como você vê a política de alianças para as próximas eleições?
Esse tema é muito delicado porque a própria mídia tenta combinar a crítica ao PT com uma indução ao raciocínio de que o partido foi levado a essa crise por fazer aliança com quem não fazia antes. É uma armadilha acreditar nessa tese. Porque temos alianças tradicionais com o PCdoB, com o PSB, tivemos alianças oscilantes com o PDT e o PPS, mas nunca tivemos na nossa base de alianças partidos chamados de centro ou centro-direita. Nossa experiência em 2002 com o PL foi difícil de ser aprovada no PT. Hoje temos um governo que possui na sua composição ministros do PTB, do PL, um ministro que não é filiado ao PP, mas foi indicado por esse partido, e três ministros do PMDB. Então, de certa forma, é uma contradição trabalhar com a idéia de não fazer aliança com quem compõe nosso próprio governo. Devemos ao mesmo tempo manter uma estratégia de conversar, aprofundar os laços com os aliados tradicionais e manter o diálogo com os aliados da base do governo, com vistas a possíveis alianças. O PL, o PTB, o PP devem ser partidos com os quais conversamos e que podem vir a se aliar ou não, que não devem estar previamente excluídos, mas não fazem parte de nosso núcleo estratégico de alianças. Só em 2006 será possível definir de maneira clara qual a política de alianças. Vamos precisar ter um olho no estratégico e outro no tático, que é a disputa política real, muito mais complexa do que gostaríamos que fosse.

Tarso Genro, quando na presidência do partido, lançou um movimento pela refundação do PT. Você chegou a assinar um manifesto nesse sentido. Como você vê essa questão?
Eu acredito que a palavra refundação acabou, no processo eleitoral interno, carregando significados muito diversos, dependendo de quem fazia a leitura. Cheguei a afirmar na coletiva em que foi anunciada minha candidatura que se refundação era reforçar os fundamentos do PT e nossas fundações – para brincar um pouco com a origem da palavra –, reforçar a idéia de que é um partido socialista, que busca sua força na base, e não na cúpula, que busca aumentar a participação do povo na política e cujas relações políticas internas têm de obedecer à diversidade e à transparência, eu apoiava a idéia. Mas, se fosse uma visão burocrática de que era preciso refundar o partido, começar de novo, repensar tudo, eu não seria favorável. Não há como dissociar a história recente da história do PT. O partido trilhou um caminho em que cometeu muitos acertos e erros. Portanto, negar os erros é também negar os acertos e a história. É melhor trabalhar com a idéia de reforçar os fundamentos e com a perspectiva de construir uma dinâmica política interna que demonstre claramente que a direção do partido está empenhada em ter a base não como um elemento de consulta eventual, mas sim de participação permanente, que nossas campanhas eleitorais vão voltar a ter como foco principal a mobilização, sem abrir mão dos instrumentos de propaganda – que também devem ser dimensionados adequadamente. A mobilização é mais importante que a lógica da campanha institucional-padrão e podemos ter mecanismos de participação efetiva nos rumos do partido em vários momentos, não apenas no PED.

Mas o nome refundação acabou sendo um pouco queimado nessa polêmica: aqueles que achavam que era preciso defender a história do partido na íntegra, seus erros e acertos, e outros que, no seu discurso, passaram a idéia, mesmo que não quisessem, de que a refundação significava um total começar de novo, e isso não ajuda a unir o partido.

Na minha opinião, o PT viveu nesses últimos meses a pior crise de sua história, centrada basicamente na questão ética. Que medidas são necessárias para enfrentar essa questão, ou seja, para que isso não se repita daqui a um tempo?
Primeiro é preciso conceituar questão ética. É óbvio que houve um processo de degeneração dos procedimentos na área financeira do partido, em relação tanto à campanha quanto à gestão do partido. Houve uma superconcentração de poderes em algumas figuras que estão pagando o preço, e isso levou para dentro do partido uma relação de desconfiança. Para mim, a ética se situa no campo da confiança, ou seja, é um conjunto de valores e procedimentos que um grupo social estabelece para si e a partir do qual se produz a confiança de que o grupo funcione de acordo com essas premissas. É diferente do conceito de honestidade. Essa crise foi resultado de um processo de erros, mas sua amplificação decorre da luta política. Então, o PT não pode ser ingênuo, aceitar e jogar tudo para o campo ético.

Temos de trabalhar com a perspectiva, em primeiro lugar, de que o PT sempre se pautou pelo combate à corrupção, com mecanismos de participação popular, de controle social e acompanhamento da coisa pública, portanto, na contramão daquilo que tentam nos impingir; em segundo, de que o PT tem uma história muito maior que esses fatos mais recentes; em terceiro, de que aqueles que tentam nos impor determinada imagem têm outros interesses, muito distantes da ética e de cunho claramente ideológico. A tentativa, como expressou muito bem o ato falho do senador Bornhausen, não de afastar essa “raça”, mas essa experiência recente da política brasileira, por muitos anos. A prática do PT ameaça essa elite política, que está associada à elite econômica e à midiática.

Internamente, temos de estabelecer mecanismos de governança, ou seja, o controle social, mecanismos de transparência, de exposição das práticas, procedimentos, normas para o julgamento público, compreendendo que isso é um pedaço muito pequeno da crise, cuja dimensão principal é uma disputa política que se iniciou em 2005. Exatamente no terceiro ano de governo Lula, quando poderíamos estar debatendo o Bolsa Família, os 3,6 milhões de empregos, a Universidade para Todos, a política externa inovadora, o papel do Pronaf na agricultura familiar, o papel do Luz para Todos para as populações mais distantes do país, a democratização nas várias áreas de governo, enfim, discutindo o que de fato nos interessa, mas não interessa nem ao PFL nem ao PSDB. Por isso, a insistência em estender a crise até 2006, em prorrogar a CPI. Eles sabem que, se houver uma janela de oportunidade, e o PT tiver competência para isso, nós mostraremos à população a qualidade deste governo.

Recentemente o ex-tesoureiro do partido foi expulso, mas há sete deputados federais do PT submetidos a processos na Comissão de Ética da Câmara. Qual deve ser o procedimento interno do partido nesses casos?
Nenhum filiado do PT deve estar acima ou fora do alcance de qualquer avaliação ética. Mas, ao mesmo tempo, não podemos correr o risco de agir internamente de maneira a complicar ou a comprometer a defesa que esses companheiros fazem no Parlamento. Há duas naturezas de acusações. Em relação ao José Dirceu, a acusação genérica de que ele teria sido o idealizador de um sistema de corrupção e de compra de votos – acusação gravíssima, mas sem nenhuma prova concreta – e um senso comum produzido de que a cassação dele limpa a imagem do Parlamento. José Dirceu não está acima de nenhuma investigação, mas é preciso que o processo de cassação se produza com provas e que internamente o PT processe também da mesma forma, ou seja, que estabeleça no momento apropriado uma avaliação política da situação e que tenha compreensão se o ex-presidente do PT agiu ao arrepio da ética partidária ou não. Os demais estão envolvidos em caixa dois de campanha. Esse é um debate muito delicado, porque de fato caixa dois é uma ilegalidade eleitoral. Agora, se avaliarmos o que isso representa na política brasileira, é inegável que há uma cultura de que a formalização dos recursos de campanha perante a Justiça Eleitoral é quase sempre parcial. Isso acontece em todos os partidos, porque muitos dos que contribuem para as campanhas eleitorais, empresários ou não, simplesmente não querem aparecer naquelas famosas listinhas de doações que depois das eleições os jornais vão publicar. Então, não punir ninguém seria deixar uma ilegalidade impune na Câmara ou no partido, punir com a pena máxima – no caso da Câmara a cassação e no caso do partido a expulsão – significaria punir quem foi descoberto. Ou seja, quem ultrapassa o sinal vermelho onde não há radar fotográfico ou policial será inocentado, e aqueles que forem flagrados pela câmera serão punidos com a pena máxima, por algo que é corriqueiro na política brasileira. Então, sem adiantar uma posição definitiva, eu acho que o PT precisa ter franqueza nessa discussão e colocar na disputa política na sociedade o debate sobre o financiamento público de campanha como elemento central, até porque, se não houver mudanças – e temos um tempo muito curto para fazê-las –, na próxima eleição haverá caixa dois. Talvez não como na eleição passada, mas haverá, porque no calor das eleições é difícil conter esse tipo de movimento e a capacidade de fiscalização do Estado e dos partidos sobre seus candidatos é insuficiente.

O PT viveu a pior crise de sua história. Ela já foi superada, estamos vivendo outra conjuntura?
De maneira alguma. Essa crise está em outro patamar, em que conquistamos algumas vitórias parciais que melhoram nosso posicionamento: o comparecimento no PED, a mobilização, a construção de uma Comissão Executiva por consenso entre as diversas correntes e a eleição do Aldo Rebelo na Câmara são vitórias importantes. E o fato de que o governo não se imobilizou pela crise. Embora os meios de comunicação tentem passar a idéia de imobilização, o governo continua produzindo resultados em várias áreas sociais e não houve uma crise de credibilidade da economia brasileira. O partido está num posicionamento melhor, a bancada federal voltou a se reunir, se unificar em torno de algumas questões, e a relação com a sociedade está um pouco mais qualificada, o debate sobre financiamento de campanha já se faz mais abertamente. Mas, para superar de fato a crise, precisaremos chegar ao final das CPIs ou, pelo menos, à fase de conclusão delas, com a demonstração cabal de que não houve um esquema de corrupção montado pelo PT para abastecer campanhas eleitorais, mas sim um conjunto de erros operacionais, na forma de concretizar as alianças que expuseram o partido a um risco político altíssimo e deram oportunidade para a oposição se aproveitar e produzir, junto com a grande mídia, um clima de absoluto linchamento do partido.

Há uma questão fundamental para o PT no próximo período: fazer, na contramão das expectativas de nossos opositores, uma grande campanha de filiação. Em Brasília, na posse do Chico Vigilante na presidência do PT local, duzentas pessoas se filiaram. Também houve um ato dos sindicalistas em São Paulo com centenas de filiações novas. Se fizermos essa mobilização, mostraremos que o PT, enquanto instituição, sobrevive ao linchamento de alguns de seus líderes, decorrente de erros ou não. Há outra questão: temos um problema financeiro gravíssimo no partido.

O PT não vai sair da crise buscando grandes doações de empresários, por mais que elas possam ocorrer – não são ilegítimas se forem dissociadas de qualquer compromisso futuro –, mas a saída da crise financeira não se dará pelos métodos tradicionais de financiamento da política brasileira. Vamos ter de fazer, mesmo sabendo que boa parte da nossa base tem pouco poder aquisitivo, uma grande mobilização de buscar dinheiro de baixo para cima. Nós temos R$ 40 milhões de dívidas formais, não tem nada a ver com as operações não contabilizadas que Marcos Valério quer cobrar e nós não reconhecemos. Não reconhecemos nenhum tipo de dívida informal. Precisamos recuperar o processo de mobilização, fortalecer o PT e chegar em 2006 em condição de reafirmar o que o PED demonstrou – que não somos um partido nem de deputados, nem de senadores, nem de governadores, nem de presidente da República, mas um partido de base social. É a base social que dá o oxigênio ao PT e é a alma do partido, e é essa base social que pode ajudar neste processo de recuperação financeira.

Ricardo de Azevedo é coordenador editorial de Teoria e Debate