Nacional

A maior crise está na relação do partido com o governo e as políticas públicas que este impulsiona. É preciso repactuar partido e governo.

As eleições internas deram um sinal inequívoco da resistência e do enraizamento do Partido dos Trabalhadores. Os 315 mil filiados e filiadas que, no primeiro turno, renovaram as direções municipais, estaduais e nacional e os 230 mil que voltaram no segundo turno foram a resposta positiva que o partido deu à crise que o atingia há quatro meses.

Certamente não era a única possível, mas, diante da paralisia e dos erros cometidos pela maioria da direção partidária ao enfrentar a crise, a eleição interna mudou a pauta da mídia sobre o partido, pois esta teve de reconhecer a singularidade do pleito e a forma ousada, transparente e inovadora com que o PT submete suas direções ao julgamento direto da base partidária.

Por mais positivo que o processo tenha sido, porém, ele não responde a todos os desafios que temos pela frente. A começar pela própria crise de ética partidária que ainda vivemos. A nova direção nacional precisa sinalizar para o conjunto dos filiados e, em especial, para a opinião pública que essa crise não é de origem nem de programa partidário. Mas sim sua negação por alguns dirigentes e parlamentares que quebraram a confiança, a lealdade e a ética partidárias, jogando o PT e seu governo na pior crise de identidade enfrentada nesses 25 anos.

A nova direção não pode mais vacilar e conciliar com a crise. Os dirigentes e parlamentares que foram indiciados nas denúncias precisam ser investigados pela comissão de ética do partido, sem julgamentos prévios ou condenações sumárias, para que o Diretório Nacional – à luz desses pareceres – possa apreciar e deliberar sobre o grau de responsabilidade de cada um.

A maior crise, no entanto, não é essa, e sim a que precisamos enfrentar na relação do partido com o governo e as políticas públicas que este impulsiona. Existe hoje, e as eleições internas evidenciaram isso, uma dicotomia entre o que pensam e o que querem a base partidária e o centro da política econômica desenvolvida pelo governo. Esse conflito não se esgota na base do partido, mas se expressa também no recente documento “Convocação aos Sindicalistas”, assinado por dezenas dos principais dirigentes cutistas-petistas, e no importante artigo assinado por Leonardo Boff, “PT: alargar a plataforma” (Agência Carta Maior, 8/10/2005).

A posição dos sindicalistas e de alguém com grande trânsito em outra de nossas principais bases sociais é um alerta ao partido e ao governo que reforça o posicionamento da metade, no mínimo, dos petistas que compareceram às eleições internas do PT.

Todos queremos preparar o partido para 2006 e reeleger nosso projeto, e não há dúvida de que a candidatura do presidente Lula é natural no PT e pela lógica do sistema eleitoral, baseado no direito à reeleição.

O que nos dizem, no entanto, os sindicalistas, líderes dos movimentos sociais e expressivos líderes religiosos? Com a atual política econômica, baseada em insuportável taxa de juros e num superávit primário que impede novas obras e serviços públicos e transfere bilhões ao rentismo financeiro, “a base popular que assegurou a vitória de Lula terá dificuldades em se engajar de modo incondicional na defesa de seu governo e da reeleição”. (“Convocação aos Sindicalistas”, 17/9/2005).

Esse é o problema que partido e governo precisam resolver. Nosso futuro depende da capacidade de respondermos a essa questão de forma positiva e mantendo nossa identidade política histórica.

Isso significa um governo que estimule, defenda e crie mecanismos de participação popular direta na gestão pública e na elaboração orçamentária. Esse protagonismo popular assenta-se numa visão de autonomia e independência dos movimentos sociais e criação dos espaços de participação e decisão, para que, de forma organizada, setores crescentes da população se apropriem e tomem conhecimento do funcionamento do Estado. E, principalmente, possam ter poder de decisão sobre o orçamento e as políticas públicas setoriais.

Essa é uma política que constrói outra governabilidade, outra sustentação ao governo, que não se esgota no Congresso Nacional, mas combina e subordina isso ao apoio e à mobilização na sociedade.

A governabilidade congressual que se praticou nesses três anos sustenta-se numa política de alianças que é incoerente com a concepção estratégica transformadora que propúnhamos ao vencer as eleições.

O regime presidencialista brasileiro dá ao Poder Executivo capacidade de iniciativa e margem de manobra para gerir o país mesmo em minoria legislativa – situação que exploramos pouco e de forma insuficiente. Confundiu-se aliança de governo, programática e administrativa, com busca de uma maioria parlamentar permanente, que nunca se efetivou por completo, mas cujo custo administrativo e político foi altíssimo e uma das causas da crise vivida nesses últimos meses.

Um exemplo evidente dessa situação foi a maneira de tratar a reforma política. Apesar de esta se constituir na melhor alternativa para enfrentarmos o cerco das denúncias e acusações sobre financiamentos irregulares de campanha praticados por dirigentes petistas, governo e partido ficaram paralisados.

Não havia nem há melhor resposta para a crise de corrupção eleitoral e financiamentos irregulares de campanha do que a defesa de uma reforma político-eleitoral que acabe com o voto nominal, o financiamento privado das campanhas e a frágil fidelidade partidária atual. Nem desmascaramos os que pregam moralidade e ética, mas se beneficiam de um sistema eleitoral que estimula e incentiva a corrupção, nem buscamos mobilizar a opinião pública séria e honesta, que quer uma profunda reforma eleitoral. Mais uma vez ficamos reféns dos “aliados”.

Daí a urgência de um congresso partidário a curto prazo, para que possamos repactuar o partido orgânica e programaticamente. Do ponto de vista orgânico, a crise fez aflorar as debilidades e os equívocos cometidos na reforma estatutária de 2001, que lentamente vem transformando o PT em um partido eleitoral, em detrimento de sua história e formação de um partido de militância, de participação consciente e ativa de seus filiados nos movimentos sociais e, por decorrência, forte eleitoralmente.

Do ponto de vista programático, o congresso tem de preparar o partido para enfrentar 2006 e, simultaneamente, abrir o debate mais estratégico sobre o socialismo petista. Sem uma repactuação programática que responda aos impasses atuais na política econômica e nas alianças partidárias, viveremos um tensionamento maior do que a crise atual, em pleno ano eleitoral.

Recuperar um conceito de transição de governo que se propõe a questionar as próprias instituições que assume e praticar políticas públicas nitidamente identificadas com os interesses das classes populares que representamos exige retomarmos o debate estratégico sobre o socialismo petista, estagnado desde o 1º Congresso, de 1990.

Esse é o sentido do movimento de refundação socialista do PT. Essa é a grande tarefa, o grande desafio da direção que ora assume o partido, em plena crise de ética partidária e de identidade política.

Nossa história e a excelente resposta da base partidária nessas eleições internas nos autorizam a ser otimistas e capazes de responder à altura o desafio diagnosticado. Nosso futuro dependerá da competência de repactuarmos partido e governo para sinalizar imediatamente, antes mesmo das eleições de 2006, uma mudança de rumos.

Precisamos de uma nova estrutura orgânica que recupere pontos essenciais do Estatuto e o engajamento do conjunto do partido, de seus apoiadores e simpatizantes, na ratificação de um projeto socialista atualizado, plural e com a diversidade e complexidade dos conflitos e contradições da vida contemporânea, num país ainda subdesenvolvido que necessita conquistar sua plena soberania nacional.

Raul Pont é deputado estadual (PT-RS), secretário-geral nacional do PT e foi candidato à presidência nacional do partido