Nacional

Instituiu-se uma campanha nacional diante da incapacidade dos partidos políticos de cumprir seu papel de promover as mudanças necessárias ao desenvolvimento nacional e à defesa dos direitos fundamentais da pessoa humana

A política, como já se acentuou alhures, é a atividade de organização da vida coletiva, nos planos econômico, social e cultural. Essa atividade pressupõe o exercício do poder, voltado para a realização plena dos grandes valores da justiça social e do bem-estar das coletividades. É, aliás, o que proclama o artigo 1º da nossa Constituição Federal, ao declarar que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito, fundado, entre outros princípios, na dignidade da pessoa humana.

Os partidos políticos, nesse quadro, sobretudo nos países de economia periférica, como o Brasil, têm como função precípua não a simples conquista e exercício do poder, segundo a Constituição vigente, mas, muito mais que isso, a educação do povo para a transformação da realidade social, ou seja, para atingir os objetivos fundamentais expressos no artigo 3º da mesma Carta: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Esse ideário, em outras palavras, é a realização do bem comum do povo, como tal entendido o bem coletivo, distinto do bem dos indivíduos.

Acontece que, lamentavelmente, neste início de século 21, essa distinção não foi ainda compreendida nos países de economia periférica, em que o poder político é exercido em nome da democracia por grupos oligárquicos perfeitamente identificáveis. Essa anomalia política, como bem observou Marx, leva a um desvirtuamento na identificação do bem comum, que acaba sendo estabelecido em função dos interesses das classes dominantes, e não dos valores preeminentes na sociedade civil. Como assinala Norberto Bobbio, numa sociedade em que a divisão em classes é fortemente acentuada, os interesses das classes dominantes acabam sendo assimilados e incorporados pelas classes dominadas como bem comum, ou seja, como expressão do interesse coletivo; enquanto numa sociedade mais igualitária, em que o poder de dominação entre as classes sociais não é preponderante, o bem comum tende a ser efetivamente a expressão do interesse coletivo.

A estabilidade política, na realização do bem comum, já observava Aristóteles, será tanto maior quanto mais abrangente forem as classes médias na sociedade.

Por isso mesmo, repita-se, aos partidos políticos compete a função primordial de apresentar e difundir as idéias e os valores preeminentes na sociedade civil, ao mesmo tempo que lhes cabe também a educação do povo para a modificação daquelas idéias e valores incompatíveis com a dignidade da pessoa humana. Sobretudo nos países onde o capitalismo impera livremente, como instrumento das classes dominantes – gerando uma injusta e inaceitável concentração da riqueza nas mãos de uma minoria qualificada, em detrimento da extraordinária maioria de pobres e miseráveis –, essa função pedagógica dos partidos políticos tem especial relevância.

Ou seja, nos dias atuais, ante o individualismo crescente nas sociedades capitalistas, sem precedentes na história da humanidade, a função maior dos partidos políticos consiste, justamente, na educação do povo para a defesa e a fruição do bem comum de todos.

Saliente-se que, numa primeira fase, a crença liberal, cantada em verso e prosa por Bentham, insistia no seu modelo originário de que “bastava ao indivíduo buscar inteligentemente sua própria felicidade para estar buscando, simultaneamente, a felicidade dos demais”, para daí se inferir, com o individualismo de Adam Smith, uma falsa coincidência entre “o interesse econômico do indivíduo e o interesse econômico da sociedade”. Excluem-se, portanto, nessa concepção absolutamente individualista, a figura e o papel do Estado.

Numa segunda fase, esse postulado individualista sofre, sobretudo a partir das doutrinas políticas de Rousseau e Hegel, sua primeira grande crise. Passa-se a admitir que a vontade geral, resultante do pacto social celebrado pela sociedade civil, é a coincidência do interesse comum com o interesse individual, do interesse do Estado com o interesse dos indivíduos. “Desta forma, ia-se afirmando a superioridade do Estado sobre o indivíduo, contra a qual o liberalismo se insurgira em sua primeira fase”. Ou seja, reconheceu-se a superioridade do Estado capitalista sobre o indivíduo, pois, sendo ele o ponto de convergência dessa vontade geral, cabia-lhe prover os anseios e sentimentos dos indivíduos nas suas relações na sociedade civil; o que significa dizer, o Estado passou a desempenhar um papel instrumental na defesa dos interesses individuais.

É preciso ter presente, pois, que o capitalismo, na sua forma mais elaborada, alça o individualismo exacerbado ao cume dos valores sociais, onde o objetivo maior são a produção e a acumulação da riqueza. Por isso mesmo, faz-se necessário pôr em relevo o fato de que esse individualismo não decorre de fatalidade na natureza, mas é produto da vontade humana, ou seja, ele resulta da deliberada implementação de políticas públicas direcionadas segundo determinados interesses.

Ora, a conseqüência funesta dessa concepção de Estado capitalista, no Brasil, como instrumento de realização dos interesses individuais, em nome do interesse coletivo, foi justamente sua apropriação por grupos oligárquicos claramente definidos: os proprietários de terras, numa primeira fase, que compreende o período de 1500 a 1930; os empresários industriais, numa segunda fase, que vai de 1930 a 1990; e os empresários banqueiros, numa terceira fase, a partir de 1990 até esta parte. Ressalte-se que o poder sempre foi exercido pelos senhores das terras, da indústria e da moeda, nesses períodos, em total colaboração entre si, com o apoio dos meios de comunicação de massa.

De modo que, sem pretender aderir à orientação marxiana, esposada já no primeiro lustro do século 19, não se pode deixar de reconhecer a lamentável evidência de que, nos países de Terceiro Mundo, o poder econômico submete o interesse coletivo, organizando-se o Estado para a proteção e a defesa dos interesses das classes dominantes, em detrimento das classes dominadas.

Por conseguinte, as idéias e valores emanados de uma multiplicidade de centros de interesses oligárquicos – como os latifundiários, os grandes empresários industriais, as corporações multinacionais, os controladores das escolas privadas, as grandes empreiteiras e, sobretudo, as grandes corporações bancárias, nacionais e estrangeiras – dominam, com a colaboração dos meios de comunicação de massa, o ideário nacional, colocando na sombra a função maior dos partidos políticos. E, como estes não cumprem sua relevante função de educar o povo – verdadeiro titular do poder soberano – para a transformação da realidade brasileira, sobretudo para instaurar os valores preeminentes do desenvolvimento nacional, como tal entendido o crescimento econômico com justa distribuição do produto desse crescimento, bem como a efetiva defesa dos direitos humanos, outra saída não resta ao povo senão realizar, diretamente, esses grandes valores republicanos e democráticos.

É, pois, nesse contexto que se insere a Campanha Nacional em Defesa da República e da Democracia, idealizada pelo professor Fábio Konder Comparato, e encampada por entidades representativas da sociedade civil.

No que concerne à República, nosso andarilho incansável e primeiro historiador, frei Vicente do Salvador, pôde testemunhar, já no início do século 17, o desprezo com que os colonizadores tratavam o bem comum do povo e a prosperidade do país. Os povoadores, disse ele, “por mais arraigados que na terra estejam e mais ricos que sejam, tudo pretendem levar a Portugal e, se as fazendas e bens que possuem souberam falar, também lhes houveram de ensinar a dizer como os papagaios, aos quais a primeira coisa que ensinam é: papagaio real pêra Portugal, porque tudo querem para lá. E isso não tem só os que de lá vieram, mas ainda os que cá nasceram, que uns e outros usam da terra, não como senhores, mas como usufrutuários, só para a desfrutarem e a deixarem destruída”. Daí sua conclusão de que “nem um homem nesta terra é repúblico nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular”.

Essa mentalidade privatista perdura, entre nós, e se agrava na medida em que as instituições são organizadas para favorecer os interesses grupais, fruto de um sistema oligárquico cruel e desumano, em que os bens públicos são livremente apropriáveis e os serviços públicos são implementados em benefício e interesse de muito poucos, deles excluindo-se a grande maioria do povo brasileiro.

A evidência dessas conclusões bem pode ser medida pela atual e gravíssima crise vivida, sem expectativa de solução, no plano das relações políticas, em que tudo é feito para atender aos interesses dos grupos oligárquicos que sempre exerceram o poder, no governo. Hoje, no rescaldo da privatização desmazeladamente realizada na década passada, predatória ao bem comum do povo, com a alienação de empresas estrategicamente importantes, senão fundamentais, ao desenvolvimento nacional, e conseqüente demolição do patrimônio público, verifica-se que toda a organização financeira do Estado é voltada a atender exclusivamente o pagamento de juros aos capitalistas, nacionais e estrangeiros.

No que concerne aos costumes democráticos, é bem de ver que eles nunca fizeram parte de nossa vida. Como observou Sérgio Buarque de Holanda, com muita propriedade, “a democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido”, sobretudo por ser uma democracia importada pelos grandes latifundiários sob a condição de que seus direitos e privilégios permanecessem assegurados.

Destarte, constatada a incapacidade dos partidos políticos, no atual sistema partidário e eleitoral, de cumprir seu papel essencial de educar a sociedade para a transformação da realidade brasileira e promover as mudanças necessárias ao desenvolvimento nacional e à defesa dos direitos fundamentais da pessoa humana, instituiu-se – com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, da Central Única dos Trabalhadores, da Força Sindical, da União Nacional dos Estudantes, de Escolas de Governo e muitas outras entidades – a Campanha Nacional em Defesa da República e da Democracia, cujo objetivo é criar as condições necessárias à participação direta do povo, verdadeiro soberano no regime republicano democrático, nas decisões maiores de interesse nacional, mediante plebiscito, referendo e iniciativa popular.

Nesse sentido, e com esse objetivo, tramita na Câmara Federal dos Deputados o Projeto de Lei nº 4.718, de 2004.

Claudineu de Melo é professor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie e diretor da Escola de Governo de São Paulo.