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Na crise em que está enredada a vida política, talvez o elemento mais crítico para a democracia esteja no processo de desqualificação de toda fala destoante do diagnóstico-padrão sobre a corrupção do governo e seu partido

Num ambiente democrático em que as controvérsias de opinião e as divergências sobre o interesse coletivo solicitam a inteligência do público para sua elaboração e decisão, o simplismo, o reducionismo, a propaganda manipulatória – que ostenta evidências e alega a verdade para dissolver a legitimidade das “contra-dicções” – fragilizam e comprometem o espaço da convivência política. Assim, na crise em que está enredada nossa vida política, talvez o elemento mais crítico para a democracia (mais que as práticas lamentáveis que legitimamente questionamos), se assinale no avanço de um processo, irado e mesmo violento, de desqualificação de toda fala destoante do diagnóstico-padrão sobre a corrupção do governo e seu partido. É verdade que essa crispação quase uníssona parece catalisada pelos próprios fatos; mas os fatos, sabemos, só se manifestam já enraizados, desde o início, em certa trama de significações. Ora, são vários e de procedências diversas os discursos que enfeixam e sustentam os fatos em causa, de modo que se torna necessário identificá-los e distingui-los para compreendermos o verdadeiro enraizamento e natureza da crise. Assim, parece pertinente tentar um exercício de aproximação e balizamento das grandes plataformas de sustentação de boa parte das posições e intervenções a que temos assistido. Enfim, no uníssono da repulsa e da acusação da corrupção podemos talvez destacar ao menos três grandes “discursos da crise”.

I - O discurso moral

Esse discurso, velho conhecido, alimenta-se da desconfiança popular de todo poder e, especificamente, entre nós, de uma já longa tradição (bastante fundada, aliás), de acusação das nossas elites – socialmente arrogantes, economicamente predatórias e politicamente promíscuas. Os déficits da formação de nossa cidadania republicana, os ímpetos, constantemente frustrados, de nossas aspirações democráticas e modernizadoras agitam periodicamente (ao menos desde os anos 20) os estandartes da “regeneração política”: a denúncia das “roubalheiras”, dos “mares de lama”, as campanhas da grande imprensa (dirigidas sobretudo às classes médias) pela eliminação da corrupção e pela restauração das instituições, reiteradamente conspurcadas.

Essa grande corrente popular de aspiração moralizadora, que atacou na Velha República as oligarquias decadentes (pretendendo educar elites modernas), que se frustrou finalmente com as promessas “redentoras” do aparelho policial militar da via autoritária, parece se abater agora, com redobrado rancor e violência, contra os que traíram sua derradeira esperança, a de substituir nos postos do poder os representantes das elites pelos homens do povo (isentos da malignidade congênita dos grandes). Ora, esses críticos, os mais legítimos, do mandonismo oligárquico, do aparelho policial militar, da empáfia das elites coroadas pelo mérito acadêmico, ao chegarem ao poder, escancaram, então, seu despreparo intelectual e moral para as funções de governo. Os filhos do povo levam o povo a envergonhar-se a si mesmo. Estampa-se neles não mais o deboche das elites, mas a doença nacional da “falta de vergonha”, ou mesmo a miséria da “condição humana”. Todos, afinal, mostram-se suscetíveis à corrupção do poder e às suas pompas: mordomias palacianas, aviões de milhões de dólares, Romanée-Contis, charutos cubanos ou jeeps baianos. E ainda a tentação maior, a da perpetuação do mando e apropriação do Estado: crimes eleitorais, alianças espúrias, corrupção da administração, mensalões, achaques. Enfim, a tal “corrupção sistêmica”.

Esse discurso evidentemente conforta o cinismo conservador, à direita. Vimos como muitos mal disfarçaram sua satisfação – finalmente todos iguais, todos humanos e sensíveis à persuasão do dinheiro. Os pecados do PT os redimem. Porém, não deixam de sugerir – velha ideo­logia! – que as elites tradicionais, mais hábeis e mais “satisfeitas”, agem com maior contenção e, assim, com menos danos para as instituições. Suas faltas, afinal, são escusadas por bordões diversos, do ”rouba mas faz” aos apelos vários, e diversamente concebidos, a uma “ética da responsabilidade”.

Mas a plataforma moral opera também, evidentemente, à esquerda. Que se observe dentro do próprio PT o grande número de militantes em estado de aflição e contrição. Minguam suas análises políticas e a imbecillitas humana passa a ser o objeto de suas considerações. Confessam que o partido foi “arrogante” e presunçoso ao se conferir o monopólio da ética... Que o “ser humano” está sujeito às pressões do poder e é vulnerável aos interesses privados... E daí por diante. Enfim, o arrivismo de alguns, somado ao pragmatismo dos objetivos políticos mais imediatos, corrompeu os valores do partido. Penitenciar-se, pedir desculpas à sociedade, exigir mais humildade, maior vigilância e disciplina dos dirigentes, cauterizar a banda podre e reafirmar seus ideais e programas históricos parece-lhes o caminho do rearmamento moral e da reconquista das bases do partido.

Escusado dizer que essa leitura moralista da crise, politicamente conservadora, reafirma e perpetua a “maldição” de nossa formação republicana e fecha as portas da renovação política. No PT, reforça a sedução da perpetuação do oposicionismo, a renúncia aos projetos de poder – deixar, afinal, de ser partido – para garantir a aura da pureza dos intransigentes e de sua fusão com as causas do “povo”.

II – O discurso economicista

No pólo oposto ao do discurso moral está aquele em que tudo se decide pela materialidade do jogo de forças da economia. A crise, por essa interpretação, desencadeou-se, em última instância, em função do caráter ambivalente – e mesmo “esquizofrênico” – do governo petista. Os liberais, novos e velhos, denunciam as contradições de um governo dividido entre as imposições da racionalidade da ordem capitalista globalizada (representada por Palocci e os “técnicos” do Banco Central) e as bandeiras da esquerda arcaica e bolchevique (José Dirceu e comparsas), que ameaçam os esforços seriamente empenhados na direção da estabilização e da conquista da confiança dos mercados: as pressões populistas pelo aumento dos gastos públicos (a serviço de seu projeto de aparelhamento do Estado, o desastroso neo­patrimonialismo de perfil sindical gestado pelo socialismo petista) e de suas políticas sociais assistencialistas (também elas nitidamente aparelhistas). A crise irrompe, então, com a escandalosa revelação de que, enquanto o presidente bancava a imperiosa política dos ajustes macroeconômicos, o neorevolucionarismo stalinista agia à socapa para a realização de seus objetivos totalitários. Questão atroz: Lula sabia? Talvez seja melhor calar a incômoda suspeita, pois importa no momento a blindagem (a garantia da estabilidade e das conquistas, ainda frágeis) da economia.

Na esquerda petista e seus congêneres, a interpretação é simétrica. Não se pode, dizem, servir a dois senhores. Ou se serve aos interesses do capital financeiro ou às forças progressistas. Com a “Carta ao Povo Brasileiro” o candidato petista se aproximou das elites financeiras e industriais, mas esse expediente eleitoral pôs o presidente petista com os pés em duas canoas. Era esperar para ver a qual dos dois lados trairia. Depois de um certo período, que se esperava “de transição”, fica, então, meridianamente clara sua capitulação à política econômica neoliberal (a mesma de FHC), que acabou por definir objetivamente a natureza do seu governo: a subserviência aos interesses do capital e às imposições do imperialismo. Lula (ao contrário de Kirchner ou de Chávez) embarca na canoa furada do neoliberalismo. Enfim, o medo dos poderes econômicos venceu a esperança, sob pretexto de realismo. Pois a política econômica não apenas compromete, mas inviabiliza o cumprimento das promessas eleitorais, fundadas nos valores e programas históricos do partido. Com a traição, o governo perdeu o apoio de suas bases partidárias e sociais (que começaram a ruir com a escandalosa reforma da Previdência), restando-lhe então apenas o caminho da corrupção, das alianças parlamentares crapulosas, para assegurar a governabilidade. Conclusão: a opção econômica ortodoxa, neoliberal e antipopular engendrou a corrupção política. O governo enterrou o PT; isolou-se e se refugiou no conservadorismo. A crise de sua desestabilização é o seu troco – pois, em burguês, não se confia.

Como se vê, tudo aí parece meridianamente simples e claro. O que não é de admirar, pois são descartados os elementos mais triviais das considerações propriamente políticas: os condicionantes institucionais, as obrigações das magistraturas republicanas, os aspectos conjunturais das ações governamentais, internos e externos, e os deslocamentos político-ideológicos da expressão das diferentes forças sociais. Afastados esses elementos, restam princípios e esquemas analíticos, quase sempre esquálidos; e as ações do governo, vistas como “decisões”, passam a ser avaliadas pelo seu crivo. E não é difícil observar que essa versão “materialista” da crise se assenta, paradoxalmente, no mais estreito “decisionismo” e voluntarismo – sempre focados na pessoa do presidente (“O Lula errou... O Lula não quis... Não ouviu... O Lula decepcionou... O Lula traiu....”). Eliminam a consideração dos enfrentamentos político-sociais, e tudo esperam das iniciativas do governo. Buscam a sombra do muro das lamentações (e da revolta), porque se suprimiram como agentes políticos.

III - O discurso pseudopolítico

Aqui a análise da crise parte de uma concepção aparentemente fina da política. Ela assinalaria o espaço das deliberações e decisões relativas ao condomínio dos assuntos coletivos, em que se confrontam, segundo regras convencionadas, interesses particulares, que buscam – no elemento das aparências e opiniões – impor-se como gerais (capitalizando poder) pelo recurso a crenças, idéias e valores comumente aceitos. Nessa forma política do embate dos interesses, em que a persuasão astuciosa toma o lugar da força como instrumento de poder, torna-se consubstancial ao jogo da política (em função do próprio elemento – as aparências – em que ele se dá) o recurso aos expedientes escusos: a manipulação e o blefe, a simulação e a dissimulação. A política se associa, enfim, como que congenitamente, à politicagem, que portanto, de certo modo, “faz parte do jogo”, desde que não o contamine ou esvazie inteiramente, a ponto de desfigurar suas regras ou falsificar seus embates.

Essa compreensão da política deixa, então, muito claro o engano do PT. Ele cultivou candidamente para si mesmo, e também vendeu para o público, a ilusão de uma ação exclusivamente política, isenta de toda politicagem; de maneira incauta (por influência, seguramente, de seus setores ligados às comunidades de base), assumiu o papel de paladino da transparência e da ética na política. No entanto, depois de sucessivas derrotas, acabou por se render, como todos, à incontornabilidade da zona cinzenta da política: as manobras e manipulações eleitorais, o marketing ilusionista (ao invés do “debate de idéias e da elevação dos níveis de consciência da população”) e todos os expedientes ilícitos (caixa dois, alianças venais etc.). Viu-se, enfim, empurrado para a realidade da convivência inevitável da politicagem e da política – “tapando o nariz, entrou no jogo como ele é” (e não como deveria ser), comenta o fino analista. Abriram-se aí a ferida e a dilaceração do partido, pois ele se verá, daí em diante, no beco sem saída da contradição entre seus ideais generosos e promessas ingênuas e a realidade de sua prática efetiva.

Mas essa contradição do petismo explica também a presente crise, pois produz conseqüências explosivas ao passar do âmbito do partido para o coração do aparelho do Estado. O que acontece, então? Por ignorarem a natureza e as regras da política, por encararem seus ardis de maneira embaraçada, os petistas, no poder, não podendo nem assumi-los nem evitá-los, passam a exercê-los da pior forma, a mais perigosa possível. Dissociam as duas faces da política, autonomizando e delegando a politicagem, descolando-a assim temerariamente da trama da grande política e da autoridade governamental, pelas quais deveria ser limitada, guiada e protegida. Passam a um grupelho do partido o trabalho sujo, levando-o a agir de maneira mafiosa, sem nenhum controle político. O resultado é o que se viu – o desastre. Pois a quadrilha (“la bande à quatre”) passa a agir com a desenvoltura de bandidos entre bandidos: extorque dinheiro, trafica influências, arma calotes, monetiza e comercializa despudoradamente, no Parlamento, as fidelidades. Corrompe, em sentido forte, as instituições, sobretudo o Legislativo, levado a perder sua substância republicana e a operar unicamente pelos interesses privados. A corrupção crônica (mas sempre residual e pontual) de nossos bravos (mesmo se quase sempre medíocres) representantes torna-se agora substancial; esvazia-se a própria função representativa. O governo do PT torna-se responsável pelo crime da “desinstitucionalização” do Legislativo. O partido dos puros, com sua perversa inocência, não apenas escancarou sua incompetência, mas deixou como saldo a ruína de nossas instituições políticas.

A conclusão desse discurso parece bastante clara – e dispensa comentários. Que devolvam o espólio aos partidos sérios, competentes e responsáveis, calçados pelo saber e pela experiência para o difícil trânsito pelos domínios da politicagem, pela zona turva da política.

Não se tente inferir dessas considerações qualquer responsabilização desses discursos pela crise. Não se trata aqui de lançar mão do odioso expediente de rebater sobre o denunciante o crime. No entanto, se nenhum desses discursos é responsável pela crise (e se é preciso reconhecer e defender seu direito à expressão e à persua­são do público – em vista mesmo de sua contrariedade – na cena do debate e da crítica democráticos), não se pode deixar de observar que a crise só se desencadeia quando esses discursos, não obstante sua rigorosa incompatibilidade, passam a produzir, em conjunto, conseqüências políticas. A crise acontece quando esses discursos, que já atuavam separadamente, em meios sociais e políticos diversos, entram na extravagante confluência que os conforta mutuamente e potencializa suas acusações da corrupção do governo petista. Enquanto atuaram separadamente, houve críticas, denúncias, decepções, inconformismos e manobras políticas, mas não houve crise. É quando o moralismo do discurso arraigado nas classes médias e fartamente cultivado e explorado pela mídia, o pragmatismo do discurso economicista, nas suas versões liberal e esquerdista (“nem aí para caixa dois; o que me interessa é o emprego e a distribuição de renda”, tantas vezes ouvido) e, por fim, o realismo político dos intelectuais modernos (a sopa rala do maquiavelismo wittgensteiniano servida quente aos profissionais peessedebistas) se associam, extraindo da aparente concordância de suas conclusões próprias – o desastre da administração petista – a convicção sobre sua objetividade, é que o diagnóstico comum se transforma em “fato”. Por isso se pode dizer que o que desencadeia, produz e mesmo constitui a crise é a insólita confederação desses discursos para ou pseudopolíticos (sem prejuízo, evidentemente, das necessárias avaliações e críticas – talvez mesmo devastadoras – que poderiam ser endereçadas às ações do governo e ao comportamento do partido).

Enfim, a crise se dá quando a crítica e a oposição se deslocam de seu terreno apropriado, aquele das controvérsias democráticas, e se unificam na denúncia, alicerçada pela Verdade (em nome da qual falam agora mesmo os editoriais mais nitidamente sectários e violentos), armada de fatos e evidências, atirados como pedras sobre qualquer reserva, interrogação ou perplexidade. Abre-se, então, a temporada de caça e se anunciam os massacres. Tudo se manifesta em termos de raiva, decepção, ressentimento, agressão, ridicularização e desrespeito; todos precisam ostentar sua indignação – verdadeira ou oportunista –, pois tudo o mais é má-fé e conivência com o crime.

A crise já não é do PT ou do governo; penetra a própria sociedade quando se perde o espaço das controvérsias democráticas. A corrupção mais temível, mais ameaçadora, é a que se instala no tecido mesmo da nossa convivência social e política.

Sergio Cardoso é professor de Filosofia na FFLCH da USP