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Não adianta procurar as origens da crise apenas no PT. É preciso esquadrinhar a sociedade, onde são dominantes velhos valores ideológicos e políticos, contra os quais o partido, ao ser fundado, se insurgiu

A atual crise política atinge fundamente o PT e o governo Lula. Para alguns, ela começou com a “Carta ao Povo Brasileiro” e a chegada do PT ao poder. Para outros, decorre da organização burocrática do PT, com seus “profissionais” passíveis de ser corrompidos pelo “poder dissolvente do capital”. Em resumo, por um lado ou pelo outro, as raízes da crise estariam no próprio PT, em sua natureza.

Restaria, então, o caminho de descartar a história de acumulação de forças e de experiências do PT, considerar corrompidos seus quadros e militantes e atirá-los fora como imprestáveis – o que fizeram, aliás, os que se desligaram do partido, fundaram outras siglas e torcem prazerosos pela fragmentação do PT e do governo. Ou o caminho de achar a crise atual fruto do deslumbramento com o poder. Para resolvê-la, bastariam ajustes nos cargos de direção, sem necessidade de jogar antigos dirigentes “às feras” – o que teimam em fazer os que se sentem injustiçados pelo envolvimento nos escândalos do caixa dois.

Ambos conduzem ao mesmo desastre. Não o de perder as eleições de 2006. Ou de ver o governo Lula definhar pior que o governo Sarney. Mas o de ser estrategicamente estraçalhado. Sofrer a destruição de um patrimônio que não é seu, como dizem Emir Sader e outros, “mas da esquerda, dos movimentos sociais e da luta do povo brasileiro”. Desastre que somente novas gerações poderão superar.

Para evitar isso, não adianta procurar as raízes da crise apenas no PT. É preciso esquadrinhar a sociedade, onde são dominantes velhos valores ideológicos e políticos, contra os quais o partido, ao ser fundado, se insurgiu. Velhos valores retomados por alguns dirigentes, em substituição aos fundamentos petistas. No diagnóstico e na ação política desses dirigentes, as classes sociais foram substituídas por uma sociedade civil amorfa, e os interesses de classe dos trabalhadores, pelos supostos interesses de toda a sociedade ou da Nação.

Decorrência natural disso foi que, na política de alianças, a unidade e a luta foram substituídas apenas pela unidade, e a estratégia, pela tática. Na disputa eleitoral, a política foi substituída pelo “marketing político”. Na ação política geral, substituiu-se a mobilização social pela ação exclusivamente parlamentar. Na formação de quadros, a formação política foi substituída pela informação eletrônica. De substituição em substituição, o PT foi conduzido a erros de prioridades políticas, econômicas e sociais. E vários de seus dirigentes, a envolvimento em atos de corrupção.
É de algumas dessas substituições que trataremos.

Substituição das classes sociais

A idéia de que as classes sociais haviam acabado já era forte em muitos meios intelectuais desde antes da eclosão operária do ABC paulista. O despertar da classe operária, naquele momento, pareceu um fenômeno inusitado, fora de lugar. E não produziu nenhuma análise das classes sociais que tivesse força suficiente para orientar o PT em suas estratégias e táticas.

A reestruturação capitalista dos anos 80-90, ao ampliar o desemprego estrutural, reforçou a suposição de que a nova sociedade da informação não necessitaria de operários. O desmanche do socialismo europeu, ao fazer ressurgir a tese de que a classe operária não possuía nenhuma missão histórica, detonou essa classe. As altas taxas de desemprego e informalidade, do atual momento histórico, parecem haver consolidado a idéia de que qualquer classe social não tem mais razão de ser.

A maior parte da intelectualidade aceitou a suposição pós-moderna da substituição das classes pela “sociedade civil”. Como disse Chico de Oliveira, em entrevista à revista Caros Amigos, estaríamos diante de uma situação cuja melhor metáfora seria “aquele plasma que sai dos vulcões. É uma massa sem forma”. E ele se pergunta “como a política representa algo que não tem forma?” Como fazer política numa situação em que a política é levada “a flutuar como se estivesse levitando, descolada da realidade”?

Essa perplexidade é o efeito mais evidente da desconsideração da sociedade civil como uma sociedade de classes, possuidoras de interesses, comuns e contrários, que se expressam em ideologias e políticas, ao mesmo tempo assemelhadas e conflitantes. Muitos petistas se tornaram navegadores sem referenciais de orientação. Às cegas, alguns bordejaram para um politicismo radical, que supõe a existência de uma ética geral norteadora, sendo o PSOL sua expressão mais evidente. Outros se encantaram com o canto das sereias ideológicas e políticas dominantes. Não mais diferenciando o caráter de classe dos atores políticos, tomam qualquer um deles como “amigo”, a exemplo de Delúbio Soares.

No meio, ou por fora, há outros que passaram a tomar o PT como o pior inimigo do povo. Para eles, a partir dos anos 90 formou-se no PT um grupo que baseou sua ação política em fontes de financiamento nebulosas, usando o dinheiro para obter o controle do partido e o êxito político. Isso teria maculado o PT irremediavelmente.

Mesmo admitindo a existência de tal grupo, não se pode elidir que os “financiamentos nebulosos” são uma prática histórica das classes dominantes, fazem parte da natureza dessas classes. Nem se pode esconder que tais tentativas de controle e sucesso político conduziram ao oposto do almejado. Ao invés do êxito, o que esse grupo conseguiu foi resvalar pelo abismo, ameaçando levar consigo todo o partido.

Assim, uma reflexão séria não pode aceitar que tais práticas foram introduzidas na esquerda apenas há poucos anos. Ou que, enquanto as crises anteriores da esquerda teriam resultado de enfrentamentos com o adversário, a atual, além de mais grave, seria interna. Isso, além de absolver os erros do passado, tergiversa sobre a origem de classe dos antigos e atuais esquemas de corrupção, e de todas as crises da esquerda.

Uma reflexão séria tem de lidar com a presença, na amorfa sociedade civil, de vários tipos de trabalhadores assalariados, trabalhadores proprietários e proprietários médios, grandes e muito grandes, com seus interesses e suas expressões ideológicas e políticas. E como a falta de reconhecimento dessa realidade rebateu profundamente em certas práticas de dirigentes petistas.

Substituição dos interesses de classe dos trabalhadores

Tendo abandonado as classes e os interesses de classe, parcelas do PT e da esquerda, quando começaram a ocupar parte do Estado e a governar “toda a sociedade”, caíram na ambigüidade que coloca, de um lado, o “governo para toda a sociedade”, ou “para a Nação”, e, de outro, o “governo para a parte majoritária da sociedade”.

Para corresponder aos interesses das camadas populares na luta contra o desemprego e a estagnação econômica, os governos populares deveriam ter como prioridade recompor a força social das classes trabalhadoras, a parte majoritária da sociedade. Isto é, realizar o crescimento econômico com base na multiplicação da economia familiar e das micro e pequenas empresas, na criação de milhões de empregos e na redistribuição da renda. É difícil, porém, encontrar governos de esquerda que tenham incorporado tal prioridade a suas políticas.

Diante de uma correlação de forças sociais e políticas desfavoráveis, eles têm realizado recuos estratégicos na esperança de governar para toda a sociedade. Fazer recuos e concessões é parte da luta política. Não é isso o que preocupa. Preocupante tem sido a falta de clareza quanto a seus limites. Se eles ferem o objetivo de recompor a força social das classes trabalhadoras, o governo, o PT e a esquerda perigam perder a parte majoritária da sociedade.

O mesmo acontece com certa “esquerda”, que centra suas críticas ao governo e ao PT na suposta ausência de um “projeto de Nação”. Ela acredita que a formação da Nação seria a finalidade primeira do partido. Ignora que temos uma nação, uma nação capitalista. Uma nação construída pelo poder político dominante. Não tem sido por falta dela que nosso país permanece num terrível patamar de miséria e injustiça.

O suporte econômico e social dessa nação tem sido o pacto patrimonial entre os capitais estatais, os capitais estrangeiros e os grandes capitais nacionais. Sobre tal pacto erigiu-se o poder de uma comunidade política cuja missão, sob a forma ditatorial ou democrática, é a continuidade desse pacto e dessa nação.

Toda vez que o pacto patrimonial sofreu disputas internas, a comunidade política dominante entrou em crise. A ditadura Geisel, ao privilegiar o setor estatal, causou um racha profundo, que facilitou o fim do regime militar. A ofensiva dos capitais estrangeiros sobre os capitais nacionais, durante o governo Sarney, dividiu a comunidade política burguesa, abrindo brechas para a ascensão democrática e popular do PT.

As vitórias de Collor e, depois, de FHC, representaram soldagens provisórias da comunidade política burguesa em torno do pacto patrimonial. Duraram pouco, em vista da gula dos capitais estrangeiros, e levaram a uma nova e profunda divisão daquela comunidade política, que abriu campo para a vitória de Lula, em 2002.

Assim, se a reestruturação patrimonial da Nação, nos últimos anos, fragmentou as classes trabalhadoras, ela também dividiu as classes dominantes. Por pressão daquelas, a comunidade política burguesa teve de transitar da ditadura militar para a democracia política, assistir à participação popular e operar num arcabouço dentro do qual as esquerdas construíram um instrumento como o PT, para a disputa do poder. Esse arcabouço democrático burguês tem sido um problema, tanto para a comunidade política burguesa quanto para as esquerdas. Para aquela, impõe cooptar ou manietar as classes populares, para desistirem do rearranjo democrático da propriedade e consentirem com o pacto patrimonial. Para as esquerdas, trata-se de realizar o rearranjo democrático da propriedade e transitar para uma nação democrática e popular e para uma sociedade socialista.

Tudo isso, num contexto em que a ideo­logia e o poder político se encontram sob influência da burguesia, e o que interessa de imediato aos assalariados é o salário; aos camponeses sem terra, a propriedade da terra; e aos lúmpen, a comida e a cobertura do viaduto de cada dia. Num contexto em que as classes trabalhadoras estão dispersas, com sua força social enfraquecida, impondo-lhe a necessidade, mesmo para a conquista daquelas aspirações imediatas, de recompor sua força social. Numa situação como essa, substituir os interesses de classe dos trabalhadores pelos interesses de toda a sociedade, ou da Nação, é o mesmo que condenar os trabalhadores à morte por inanição.

Substituição da luta nas alianças

A discussão em torno da recomposição da força social das classes trabalhadoras deveria ser, neste momento histórico, o ponto central de qualquer política de alianças. Porém, como o debate em torno das alianças tornou-se ideológico, em vez de político, ele consumiu boa parte da história do PT sem que a necessidade daquela recomposição tivesse vindo à luz.

Se a ideologia fosse o critério básico das alianças, jamais os soviéticos teriam se aliado aos americanos e ingleses contra o nazismo. Os comunistas chineses não teriam se unido a Chiang Kaishek na guerra contra o Japão. Nem os comunistas e socialistas brasileiros teriam se aliado aos liberais contra a Alemanha e pelo envio da FEB à frente de combate na Europa.

A ideologia é um traço distintivo nas alianças. Mas não é ela que as determina. As alianças são impostas pela presença de inimigos principais e secundários, de forças fundamentais e intermediárias, e pela correlação de forças entre tais atores. A questão-chave consiste em isolar o inimigo principal. Para isso, se a esquerda é relativamente fraca, ela precisa aliar-se a setores intermediários e a inimigos secundários. Grosso modo, alianças são feitas com inimigos secundários contra inimigos principais.

Como, porém, a esquerda pode manter, digamos, sua dignidade, ao aliar-se a partidos burgueses, com longa prática de fisiologismo e traições? A história tem mostrado que isso só é possível se ela se distinguir por seus objetivos principais e por seus métodos. Nesse sentido, não se pode afirmar a priori que o PT teria rasgado seus princípios e transformado sua natureza por aliar-se ao PL, PTB, PP e PMDB. Ele poderia ter realizado essas alianças e mantido seus princípios e sua natureza, ao preservar seus objetivos principais e seus métodos.

Em torno de objetivos táticos comuns, a esquerda pode fazer alianças com forças políticas cujos objetivos principais e métodos são diferentes, ou mesmo antagônicos, aos seus. O que exige dela, além da unidade contra o inimigo comum, um permanente processo de luta dentro da aliança. Tal luta envolve a defesa de seus objetivos principais, assim como a aplicação de métodos democráticos e socialistas no relacionamento com as camadas populares e com os outros aliados, no tratamento da coisa pública e no enfrentamento do inimigo principal.

O que pode mudar a natureza da esquerda não é o fato de fazer alianças, mas de aceitar os objetivos principais dos aliados e imitar seus métodos, como fizeram atabalhoadamente alguns dirigentes do PT. Estes chegaram a isso, em grande medida, porque, embora o PT tenha feito alianças com forças burguesas desde seu nascimento, a exemplo da participação nas Diretas, ele jamais tratou adequadamente esses aspectos da política de alianças.

Nessas condições, o PT não se preparou como deveria para enfrentar o desafio de chegar ao governo no bojo de uma coalizão com partidos burgueses. Teve dificuldade em visualizar o enorme arco de alianças que tendia a formar-se em torno da candidatura Lula, independentemente das concessões que fizesse. Não avaliou que, após a crise financeira e cambial de 1999, as forças que sustentavam FHC haviam entrado em desagregação, falhando todas as suas tentativas para construir uma alternativa própria para derrotar FHC. A única via que lhes restava era Lula.

Diante desse quadro, era preciso facilitar a concretização de um amplo arco de alianças. No entanto, não seria preciso fazer concessões além do necessário, como aconteceu, caso houvesse mais clareza sobre os deslocamentos das forças políticas. De qualquer modo, esses erros de avaliação poderiam ter sido corrigidos, se parte da direção do PT não tivesse absolutizado a unidade, excluindo a luta e o cuidado com seus objetivos principais e seus métodos.

É verdade que, em 1994 e 1998, essa incompreensão já se fizera presente com a utilização de formas de publicidade, arrecadação de recursos e angariação de votos, típicas dos partidos burgueses, igualando os métodos do PT aos dos demais partidos. Continuar na mesma linha, ao chegar ao governo, e capitular às “balas de açúcar” da corrupção, seria apenas um passo a mais. Porém, estariam criadas as condições para abrir os flancos do PT e do governo popular aos ataques inimigos, e para a eclosão de uma crise política de grandes proporções.

Numa situação como essa, seria infantilidade supor que a burguesia financeira, por estar satisfeita com os lucros permitidos pela política econômica, iria perder a oportunidade de destruir um aliado que considera apenas de ocasião. A burguesia jamais confiou que Lula mantivesse intocada a política econômica. Sempre temeu que o PT a faria voltar-se contra seus rendimentos e privilégios. Portanto, destruir o PT não será apenas um lucro de 40%, mas de 1.000%. Como bem expressou Jorge Bornhausen, trata-se de uma oportunidade única de “acabar com essa raça”.

São essas contradições que embaçam a visão da ultra-esquerda. Ela pensa que Lula e o PT permitiram a ofensiva da direita ao optar pela política econômica de FHC. No entanto, a crise também poderia eclodir com uma política econômica contrária, se os métodos praticados pela direção do PT fossem os mesmos. Em qualquer dos casos, sem parâmetros de classe, a ultra-esquerda se aliaria à direita. Não enxergaria que destruir o PT e sustar a primeira experiência histórica da esquerda no governo significam a emergência de uma nova hegemonia da direita.

No rescaldo da crise e no rearranjo das alianças, o PT e o governo Lula terão de levar em conta que não se pode substituir impunemente a luta pela colaboração. A não ser que se queira continuar alimentando a ofensiva da direita.

Wladimir Pomar é membro do Conselho de Redação de Teoria e Debate