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Asa: uma experiência de enfrentamento da seca no Semi-Árido

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Chuvas irregulares e alto índice de evaporação da água, ausência de políticas públicas voltadas para a população mais carente e a chamada indústria da seca são realidades do Semi-Árido brasileiro. Nesse cenário a Articulação do Semi-Árido Brasileiro (ASA) se propõe a criar mecanismos de acesso à água e a promover a mobilização das comunidades da região para que lutem contra o esquema de dependência e subserviência

Céu azul sem nenhuma nuvem, solo rachado e marcado por grandes pedras, relevo acidentado e vegetação que parece um emaranhado de galhos secos. Espaçadamente, pode-se ver um barreiro quase seco, um pé de jurema ainda verde ou uma cerca de avelós acinzentado. Essa é a paisagem cantada em prosa, versos e filmes que tratam do Semi-Árido brasileiro. Foi tema amplamente explorado por escritores como Euclides da Cunha, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Ariano Suassuna, e por cineastas que fixaram suas câmeras nas regiões secas, a exemplo de Nelson Pereira dos Santos, Guel Arraes, Glauber Rocha, Walter Salles e Marcelo Gomes.

Além da natureza hostil apresentada nessas obras, algumas revelam também o lado cruel das relações de poder que se estabeleceram na região ao longo do tempo e parecem ter sido agravadas mais recentemente. A ausência de políticas públicas voltadas para a população mais carente e a chamada indústria da seca são realidades que não podem ser negadas. É verdade que açudes foram construídos com dinheiro público. Porém, foram edificados nas grandes propriedades rurais com orçamentos superfaturados. Eles não serviram para melhorar a qualidade de vida do povo. Os carros-pipa, que em períodos de seca levam água para essas famílias, funcionam como moeda de barganha em tempos de eleição, quando os políticos e latifundiários trocam água por votos. É dessa maneira que vem se mantendo inalterado o perfil do Semi-Árido, isto é, por meio de uma relação perversa entre o poder público, os políticos e os grandes senhores de terras e a população.

É nesse contexto que se insere a Articulação do Semi-Árido Brasileiro (ASA), que se propõe não só a criar mecanismos de acesso das comunidades à água como também a promover sua mobilização, de modo a permitir que tomem consciência de seus direitos e lutem por eles coletivamente para, aos poucos, romper com o esquema de subserviência, dependência e exploração, conquistando condições de vida e trabalho mais dignas. Fundada em 1999, a ASA reúne 750 entidades da sociedade civil voltadas para a solução dos problemas de desenvolvimento econômico, social, político e cultural da região. É integrada por ONGs de diferentes características, oriundas de movimentos religiosos, sociais, ambientalistas, associações de trabalhadores e comunitárias, sindicatos rurais, além de instituições públicas e privadas, nacionais e internacionais.

A preocupação com o Semi-Árido vem sendo alvo de ações por parte da sociedade civil desde a década de 70, quando a Igreja Católica já realizava trabalho no sentido de orientar a população quanto à utilização da água. No início dos anos 90, as mobilizações ganharam maior impulso e, em 1993, diversas entidades se reuniram para elaborar e encaminhar ao governo federal um documento denominado Programa de Ações Permanentes, voltado para o desenvolvimento da região.

A ASA, entretanto, surgiu de forma efetiva por ocasião da 3ª Convenção de Combate à Desertificação e à Seca, conferência promovida pela Organização das Nações Unidas no Recife. Paralelamente, a sociedade civil promoveu um fórum e uma rede de entidades elaborou a Declaração do Semi-Árido, na qual está contida a proposta de criação de 1 milhão de cisternas, principal programa a que a ASA se dedica hoje. Trata-se de uma rede apartidária, sem personalidade jurídica e comprometida apenas com as populações incluídas no programa, especialmente os agricultores. Seus principais objetivos podem ser resumidos na conservação, no uso sustentável e na recuperação dos recursos naturais e na quebra do monopólio de acesso à terra, à água e aos meios de produção.

Segundo esclarece João Amorim, gerente do programa em Pernambuco, já ao ser criada a ASA definiu a questão da água como o grande mote a ser trabalhado, uma vez que o acesso aos mananciais ou reservatórios ainda é o grande entrave ao processo de desenvolvimento do Semi-Árido. Apesar de estar de olhos voltados para a necessidade de viabilização econômica da região, a rede entende que é preciso primeiro resolver o problema emergencial da água para uso doméstico, isto é, para beber e cozinhar. Daí porque priorizou a execução do Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência com o Semi-Árido: Um milhão de Cisternas Rurais (P1MC), implantado em 949 municípios do país. Agora, está partindo para uma proposta mais ambiciosa, que é a edificação de reservatórios de recolhimento da água da chuva para ser utilizada na produção.

Na avaliação de Amorim, o que diferencia a ASA de outras iniciativas adotadas anteriormente pelos diferentes governos é a importância que dá à mobilização social, fazendo com que as soluções encontradas sejam conquistadas pela população, e não meros favores oferecidos por políticos, que não representam soluções permanentes. Provavelmente, é a proposta até agora implantada na região que viabiliza maior nível de participação popular. Ao longo do processo que culmina na construção das cisternas, os beneficiários, junto com os gerentes do programa, discutem a convivência com o Semi-Árido, isto é, o gerenciamento dos recursos hídricos, a construção das cisternas e a administração das verbas disponíveis.

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Tal postura se contrapõe à prática secular em que os governos privilegiavam as oligarquias locais, que se mantinham no poder, em grande parte, em função do controle sobre a água, o que levava a população carente a uma situação de submissão e dependência. Era o preço da sobrevivência, por mais amarga que ela fosse. Por meio dessa política governamental, o poder público, aliado à elite regional, conseguiu impedir mudanças significativas no cenário social e econômico da região.

A Declaração do Semi-Árido, na qual se baseia todo o trabalho desenvolvido pela ASA, procura atingir seus objetivos apontando alguns caminhos: a convivência com as secas, a reorientação de investimentos, o fortalecimento da sociedade, a busca de meios de financiamento adequados e os cuidados especiais com o ecossistema. Ou seja, se as secas são fenômenos naturais periódicos que não podem ser combatidos, torna-se, portanto, imprescindível a convivência com elas, mas sem que a população tenha de viver na miséria. Assim, o documento propõe o fortalecimento da agricultura familiar, medidas para a segurança alimentar, uso de tecnologias adaptadas ao semi-árido, o acesso de todos os habitantes à água potável, ao crédito e aos canais de comercialização.

O trabalho implementado pela ASA lhe valeu, em 2005, o Prêmio Objetivos de Desenvolvimento do Milênio Brasil, graças à contribuição que vem dando ao país para atingir as Metas do Milênio até 2015. O prêmio é concedido pelo governo federal e a ele concorreram 920 entidades e instituições. As Metas do Milênio fazem parte dos oito Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, fixados em setembro de 2000 durante a Cúpula do Milênio, realizada em Nova York com a participação de 189 países: erradicação da pobreza e da fome; educação básica de qualidade para todos; promoção da igualdade entre os sexos e autonomia das mulheres; redução da mortalidade infantil; melhoria da saúde das gestantes; combate à Aids, à malária e a outras doenças; garantia da sustentabilidade ambiental; e estabelecimento de parcerias para o desenvolvimento.

Desarticulação da economia

Economista, consultora, professora do Departamento de Ciências Geográficas na Universidade Federal de Pernambuco, secretária da Fazenda e do Planejamento do estado durante o segundo governo Arraes e membro do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo, Tânia Bacelar explica o desagregamento econômico que ocorreu no Semi-Árido a partir da década de 80.

Nas fazendas de gado solto, os proprietários reservavam terras para o plantio do algodão e para a lavoura de subsistência cultivada pelos trabalhadores. A população pobre, portanto, não possuía terras e mantinha com os fazendeiros contratos de parceria. Para a economista, nesse tipo de relação de trabalho encontram-se as raízes dos problemas sociais decorrentes da seca, isto é, os agricultores produziam, mas não acumulavam. Entretanto, como dado positivo desse tipo de economia, ela aponta o fato de que a cultura de alimentos ficava fora dos contratos com os patrões, o que afastava o estigma da fome tal qual se desenhava na Zona da Mata.

Esse cenário mudou na década de 80, quando o algodão foi atingido pela praga do bicudo. Nos anos 90, apesar de já terem sido identificados meios de controle do bicudo, o Semi-Árido já não apresentava competitividade para voltar a produzir algodão. O Brasil passara por uma abertura comercial, transformando-se em grande exportador do produto cultivado em outras regiões. Tânia explica que o fim do ciclo do algodão lançou estilhaços sobre a pecuária, já que parte da alimentação do gado vinha do algodão, da chamada torta de caroço, que era obtida a custo zero. Os fazendeiros passaram então a plantar palma e a comprar esterco de galinha para alimentar o gado. Tal despesa, até então inexistente, provocou a redução da pecuária. No que se refere aos trabalhadores, como perderam a única fonte de renda de que dispunham – proveniente do algodão –, o padrão nutricional das famílias caiu.

De acordo com a economista, a ASA surgiu nesse contexto, buscando descobrir uma atividade capaz de reestruturar a economia do Semi-Árido e, ao mesmo tempo, de conviver com as secas periódicas. A tentativa era fazer com que os eixos econômicos tivessem uma dinâmica relacionada com a questão ecológica, ou seja, com o regime de chuvas. A caprinocultura despontava como uma alternativa mais viável, já que os animais consomem menos água e menos alimentos e estavam adaptados ao meio ambiente. Outra opção seria voltar-se para a produção de biodiesel, a partir da mamona ou de outras plantas oleaginosas, o que esbarrava no problema do processamento e da capacidade restrita de produção. A ASA, lembra Tânia, entrava em conflito com a questão da transposição do São Francisco e com a agricultura irrigada, tendo em vista a escassez de água e a conclusão de estudos que apontam só ser possível a utilização desse tipo de tecnologia em alguns lugares. (Segundo a Embrapa, apenas 5% das terras do Semi-Árido são consideradas boas para a agricultura.) Assim, a ASA entendia que a transposição não resolvia a demanda rural nem atendia às populações dispersas da região.

Na avaliação da economista, a construção de grandes cisternas munidas de motobombas pode ajudar na produção, mas não engendrará atividades de peso. Entretanto, concorda que as cisternas representam uma solução para o uso das famílias que vivem isoladas, além de considerar importante a participação das comunidades no processo de construção, ao longo do qual aprendem a conservá-las. Outro aspecto por ela destacado no programa da ASA se refere à sua concepção política, na medida em que a rede trabalha com projetos próprios, voltando-se para as especificidades do Semi-Árido, numa articulação com as universidades que estudam a região, e procurando pensá-las em seu conjunto. Ela assinala que esse método de ação faz um contraponto com o comportamento das elites, que raciocinam em termos de guerra fiscal entre os estados.

No que se refere à transposição do Rio São Francisco, o diretor do P1MC, Aldo dos Santos, diz que o assunto foi discutido pela ASA, que integra o Comitê da Bacia do São Francisco, com representantes dos ministérios do Meio Ambiente, da Casa Civil e da Integração Nacional, mas que estes não conseguiram apresentar uma defesa racional do projeto. Segundo ele a transposição pretende levar água para onde já existem mananciais, beneficiando empresas, e não comunidades rurais. Cita como exemplo a intenção do governo de retirar os criadores de camarões dos mangues, transferindo-os para as áreas que serão irrigadas pelas águas do São Francisco.

Aldo dos Santos chama atenção ainda para o custo da água, que certamente subirá. Seu raciocínio baseia-se no fato de que são os estados que gerenciam a água e as companhias responsáveis por isso estão em processo de privatização. Além disso, não acredita que a revitalização do rio possa ser realizada com apenas R$ 300 milhões, como está programado. Por fim, destaca que, do ponto de vista político, o rio está prestes a se transformar em fator de desintegração nacional, já que divide os estados receptores e doadores.

Parceiros e cúmplices

A ASA possui uma unidade gestora central no Brasil, coordenações estaduais e 61 unidades gestoras localizadas em microrregiões dos diversos estados do Semi-Árido. Pernambuco, por exemplo, possui oito microrregiões, cada qual formada por um conjunto de municípios. As unidades gestoras formam comissões municipais que, junto com uma equipe técnica, indicam as comunidades e as famílias que serão atendidas pelo programa. As comissões comunitárias representam a última instância do programa. A coordenação executiva, braço político da rede de entidades, reúne em cada estado 22 pessoas e é amparada pela Associação do Programa Um Milhão de Cisternas, que oferece respaldo jurídico.

Durante o governo Fernando Henrique Cardoso, a idéia foi apresentada ao então ministro do Meio Ambiente, Sarney Filho, que firmou convênio para ajudar a viabilizá-la. A Diaconia, entidade formada por igrejas evangélicas, ficou encarregada da recepção e distribuição dos recursos federais. Hoje, a iniciativa conta com apoio direto do governo federal, por meio do Fome Zero, do Ministério do Meio Ambiente e da Agência Nacional de Águas (ANA), e de entidades como Febraban, Unicef, Oxfam, Cáritas, Fiat, Microsoft, entre outras. O custo previsto para alcançar a meta de execução de 1 milhão de cisternas é de US$ 424,3 milhões.

O primeiro passo para a concretização do programa foi a construção, em caráter experimental, de quinhentas cisternas. Em seguida, a ASA firmou convênio com a Agência Nacional de Águas, conseguindo recursos para a construção de mais 12.400 cisternas. A edificação envolvia capacitação de técnicos, pedreiros, mestres-de-obras, gestores administrativos e financeiros, além da discussão e preparação das famílias, que participavam inclusive das obras, em regime de mutirão.

Para a ASA, a mobilização das comunidades é o grande diferencial em relação às ações desenvolvidas anteriormente. A participação e a conscientização das famílias a respeito de seus direitos constroem uma perspectiva de futuro, de novas lutas e conquistas, ao passo que a imposição de soluções resulta em ações passageiras, incapazes de promover mudanças sociais mais profundas.

A mobilização envolve diversos segmentos e etapas. O ponto de partida são as famílias a serem beneficiadas pelo programa, que, por sua vez, se encarregam de arregimentar outras. Tem-se, então, uma comunidade inteira envolvida no processo, engajando, quando existirem, organizações formais ou informais ali estabelecidas, assim como sindicatos, igrejas, pastorais, clubes de serviços e associações de classe. Cabe a essas organizações observar se as escolhas da comunidade estão sendo respeitados e obedecem aos princípios fixados pelo programa.

Conforme explica João Amorim, a seleção das famílias leva em conta critérios claros e objetivos, como as que são lideradas por mulheres, as que têm maior número de filhos pequenos, as que possuem algum portador de deficiência e as que possuem idosos entre seus integrantes. As metas são definidas por estado. São alvos do programa famílias dispersas, assentamentos para reforma agrária, aldeias indígenas, como a nação Pankararu, que recebeu cem cisternas, e comunidades quilombolas, como a de Conceição das Crioulas, no município de Salgueiro, onde foram edificadas sessenta cisternas.

Entidades microrregionais ou estaduais também desempenham importante papel no projeto, gerindo e buscando recursos e acompanhando a execução das obras. Paralelamente, órgãos nacionais e internacionais se encarregam de divulgar a relevância do trabalho, chamando a atenção para os problemas do Semi-Árido, região geralmente relegada a segundo plano e vista como uma verdadeira ilha de subdesenvolvimento. Os governos, em todos os níveis, vêm sendo convocados a investir no projeto, sabendo que se o fizerem não poderão buscar retorno eleitoral como anteriormente, mas estarão contribuindo para solucionar a questão da falta de água para consumo humano em caráter definitivo. Também não fica de fora o empresariado.

Experiências mostram que o sucesso do funcionamento das cisternas depende do processo educativo da comunidade, com a capacitação tanto dos técnicos que vão repassar às famílias conhecimentos sobre a gestão dos recursos hídricos como dos pedreiros instrutores, que ficarão responsáveis pela transmissão do que aprenderam a outros profissionais. Os cursos para pedreiros incluem não só a construção das cisternas, mas o controle do padrão de qualidade e a correção de possíveis falhas, localização, cálculos da dimensão da área a ser construída e a importância dos acessórios, como bombas, tampa, tela de proteção e calha. Por sua vez, a comunidade também participa de cursos sobre o armazenamento e uso da água, sistema pluviométrico da região, possibilidades de evaporação da água e agricultura familiar. João Amorim afirma que cada pedreiro recebe R$ 170 por cisterna construída. Eles trabalham com a ajuda das famílias, incluindo seus filhos, e de vizinhos, que realizam uma ação solidária em regime de mutirão.

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Cisternas cilíndricas

Durante muitos anos os governos investiram amplos recursos na construção de grandes açudes. A solução mostrou-se tecnicamente inadequada, já que os açudes possuem um espelho de água muito grande, o que facilita a evaporação. Entretanto, experiências inicialmente realizadas no Sertão do Araripe e no município de Mirandiba, em Pernambuco, no Agreste da Paraíba, na região do Cariri, no Ceará, no Seridó e no município de Mossoró, no Rio Grande do Norte, em Palmeira dos Índios, em Alagoas, e em Araci, na Bahia, demonstraram que existem iniciativas tecnológicas mais simples e eficientes que podem mudar a face social e o esquema de dominação política a que são submetidas as comunidades em decorrência da falta de água.

A análise dos resultados dessas experiências levou as entidades que atuam na região à elaboração do P1MC. Trata-se de uma solução simples e barata, que não se propõe a resolver as dificuldades relacionadas à produção, mas a garantir o mínimo necessário à sobrevivência das comunidades que convivem com as estiagens, que é o acesso à água potável. Está embutida aí a preocupação com a saúde das famílias, que sem tal ajuda são obrigadas a caminhar quilômetros para carregar, na cabeça, ou no lombo de burros, uma lata de água poluída para o consumo doméstico. No caso da utilização de água fornecida por caminhão-pipa, além de a população ficar na dependência de prefeituras, governos e políticos, não se observa um abastecimento regular.

No que se refere à questão da saúde, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), baseado em dados do Ministério da Saúde, constatou que de cada quatro crianças que morrem no Semi-Árido uma é vítima de diarréia provocada pela má qualidade da água consumida. Como as cisternas são tratadas, limpas e fechadas, abastecidas com água pura das chuvas ocorridas no período invernoso, torna-se mais difícil a contaminação. Outra vantagem constatada é o aproveitamento máximo da água, menos exposta à evaporação, já que as cisternas são tampadas.

Na verdade, as primeiras cisternas começaram a ser construídas no Semi-Árido há mais de 40 anos, no município de Simão Dias, em Sergipe. Foram edificadas por um pedreiro conhecido como Nel, que aprendeu em São Paulo a construir piscinas utilizando placas pré-moldadas e adaptando a técnica às necessidades da cisterna. Com a ajuda dos irmãos e outros pedreiros, disseminou seus conhecimentos na região. Em 1983, o poder público passou a investir nesse tipo de depósito para armazenamento de águas das chuvas em Sergipe, no Maranhão, em Pernambuco e no Rio Grande do Norte.

Depois de estudar diversos modelos de cisterna para captação da água da chuva, a ASA optou pela forma cilíndrica, feita com placas pré-moldadas. Além de mais econômica e resistente, tecnicamente ela se aplica a todos os tipos de solo do Semi-Árido e sua edificação é de fácil aprendizado. O custo final, por unidade, incluindo materiais e mão-de-obra, é considerado baixo: US$ 333 dólares.

Quanto à mobilização social pretendida, a construção exige participação da comunidade. A escavação do buraco, por exemplo, é feita pelas famílias, que também freqüentam os cursos sobre a manutenção a cisternas e cuidados a serem tomados com a água antes de consumi-la. Em relação à questão ecológica, a tecnologia usada nas construções não prejudica o meio ambiente, tendo em vista que não explora os lençóis freáticos nem deposita resíduos nos terrenos. De acordo com a ASA, o sistema de armazenamento de água para consumo humano foi o único a receber 100% de aprovação do Banco Mundial. As cisternas construídas pelo programa armazenam 16 mil litros, o suficiente para que uma família de cinco pessoas tenha água para beber e cozinhar durante um ano.

Os beneficiários recebem orientação de entidades que compõem a ASA e atuam na microrregião, repassada por meio de cursos e de farto material didático, como cartilhas e folhetos de cordéis, que utilizam a linguagem da população. Até o final de janeiro a ASA já havia mobilizado 130.976 famílias no Semi-Árido brasileiro e concluí­do a edificação de 114.163 cisternas. Mais 899 se encontravam em processo de construção. Essas obras estão distribuídas nos 949 municípios atendidos pela rede.

Água para produção

O programa Uma Terra e Duas Águas representa um grande avanço da ASA, uma vez que tem como centro de suas preocupações a produção. Segundo explica João Amorim, partindo também do armazenamento da água da chuva em barragens subterrâneas, barreiros profundos, tanques de pedras, cisternas maiores e outras formas de captação que estão sendo estudadas, a intenção é oferecer os meios necessários à pequena irrigação, que permitirá a produção familiar. O projeto, cujo fase inicial já foi financiada pela Fundação Banco do Brasil, começará em Pernambuco, nos municípios de Jataúba, Afogados da Ingazeira, Serra Talhada e Oricuri.

O novo programa da ASA baseia-se numa experiência chinesa desenvolvida em 1995, no Estado de Gansu, onde as condições ambientais são semelhantes às do Semi-Árido brasileiro. Lá, entretanto, a situação é agravada pelo fato de que toda a água subterrânea está contaminada por arsênico. Conseqüentemente, a única forma de captação é por meio das chuvas. Até 2003, o país asiático havia conseguido construir 2,5 milhões de cisternas, proporcionando água potável para 1,1 milhão de famílias, beneficiadas com 305 mil hectares para a produção de alimentos a serem comercializados.

No caso do Semi-Árido brasileiro, a ASA estuda várias hipóteses de armazenamento de água das chuvas para o cultivo doméstico. Uma delas seria a própria cisterna, com capacidade para 16 mil litros, separada da cisterna anteriormente construída, exclusiva para a água destinada a beber e cozinhar. Iniciativa desse tipo, segundo a ASA, serviria para irrigar quintais produtivos de aproximadamente 10 metros quadrados.

Outra possibilidade seria o tanque de pedra, chamado de caldeirão. Trata-se de uma espécie de caverna, escavada em lajedos. A mandala, por meio da qual a água é armazenada em pequenos reservatórios cônicos e pode ser usada para a irrigação de hortifruticultura por gotejamento, aliada à criação de peixes, também é uma alternativa. Já a barragem subterrânea serve para guardar as águas das enxurradas e de pequenos riachos. Em períodos de seca a área onde está a água conserva a umidade do solo, garantindo a sobrevivência de fruteiras, hortas e culturas anuais. Todas essas tecnologias partem do pressuposto básico de facilitar a sobrevivência da população carente do Semi-Árido, fazendo de cada pessoa sujeito da transformação de sua vida e libertando-a da dependência de políticos e grandes proprietários.

João Amorim aponta um equívoco das políticas públicas até agora implantadas na região: a maioria dos recursos investidos se destinava à construção de grandes açudes, utilizados pelos pecuaristas, beneficiando assim latifundiários e políticos. “Nunca houve uma política pública preocupada com a agricultura familiar. O que existia era um pretexto para enriquecer os fazendeiros que, muitas vezes, eram os próprios políticos”, afirma.

A ASA defende a reforma agrária como única forma de romper com a realidade em que quem tem terra e água possui o poder econômico e político. Sem essa reforma, na opinião dos integrantes da rede, qualquer tentativa de desenvolvimento sustentável para o Semi-Árido será inútil. Portanto, sua proposta de construção de grandes reservatórios de água destinada à produção não é considerada o fim de um processo, mas apenas uma etapa de medidas mais amplas que precisam ser adotadas pelos poderes públicos.

Defendendo a necessidade de prover a população de meios para desenvolver a agricultura familiar, a ASA acredita no sucesso, na região, da criação de caprinos e ovinos, do cultivo de lavouras adequadas ao sequeiro, da rotação de culturas, dos quintais produtivos e de outras atividades já testadas que não agridem o meio ambiente. Mas cobra dos governos, entre outras coisas, apoio à comercialização, políticas de crédito, assistência técnica, educação e saúde para a população.

Em 2004, após a realização do Encontro Nacional do Semi-Árido Brasileiro, promovido pela ASA, em Teresina, foi encaminhado ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a governadores, senadores, deputados federais e estaduais, prefeitos e vereadores documento denominado Carta do Piauí – Carta da Terra, que apresenta o tipo de reforma agrária que atenderia às exigências do Semi-Árido. Os participantes defendiam a desapropriação de latifúndios, de modo a fazer prevalecer a função social da terra; a destinação para fins da reforma agrária de terras públicas, atualmente arrendadas a preços irrisórios para o cultivo de eucalipto e outras monoculturas; e a regularização da posse da terra dos que não têm propriedade formal, além do reconhecimento imediato das terras das comunidades quilombolas e da demarcação das áreas indígenas.

Para os signatários da carta, a eleição de Lula para a Presidência da República provocou a expectativa de mudanças estruturais, mas a reforma agrária não vem sendo executada em ritmos e métodos diferentes dos anteriores e prometidos durante a campanha. Reclamam do apoio governamental aos latifundiários, evidenciado pelo estímulo ao agronegócio, pois consideram que o latifúndio monocultor, embora gere a curto prazo importantes divisas para a estabilização da economia, aprofunda a exclusão social, a insegurança alimentar e a degradação ambiental.

O documento afirma que a política fundiária adotada pelo governo Lula não se configura como um efetivo programa de reforma agrária. O financiamento da terra por meio de crédito fundiário não é um mecanismo capaz de quebrar a espinha dorsal do latifúndio e democratizar o acesso à terra e à água. Também ressalta a determinação de continuar a lutar para que o limite do tamanho das propriedades seja fixado em 35 módulos fiscais.

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Mudança de vida

Embora as comunidades atendidas pelo programa da ASA tenham plena consciência de que o projeto é desenvolvido por diversas entidades, contando inclusive com ajuda internacional, grande parte das famílias acha que nada disso seria possível sem a interferência do presidente Lula. No município de Bom Jardim, em Pernambuco, por exemplo, Serafim Bezerra da Silva, 69 anos, e sua mulher, Tereza Isabel da Silva, residentes em Lagoa das Onças, não têm dúvidas a respeito do papel desempenhado por Lula quanto à construção de cisternas.

Consideram que ele foi o melhor presidente que o Brasil já teve e o comparam com Fernando Henrique Cardoso de forma espirituosa: “FHC vendeu tudo que o país tinha. Só não vendeu as mulheres dos padres porque não sabiam quem eram elas. Agora, veja: Lula não vendeu nem um fósforo. Só pensou nos pobres e criou o Bolsa-Família, o Bolsa-Escola, o Fome Zero. Eu mesmo fui logo recebendo minha parte. De uma vez só ele aumentou minha aposentadoria em R$ 40. Agora, ficam inventando essas mentiras contra ele, só por inveja. Falam em mensalão, em CPI. É a pior mentira. Tudo por inveja”, afirma convicto Serafim Bezerra.

Tereza Isabel traz nas pernas as marcas da vida que tinha até a construção da sua cisterna. São varizes que parecem cobras. “Levava uma hora até chegar num lugar que tivesse água. Como o fazendeiro era malvado, não deixava que a gente pegasse a água. Então eu ia de madrugada e roubava, caminhando novamente até minha casa com a lata na cabeça”, conta ela. O casal mora com quatro filhos, uma nora e dois netos num terreno de 0,1 hectare, onde planta coco e banana.

Alguns quilômetros adiante, reside José Amaro dos Santos, 79 anos, com a mulher, Severina, com a qual teve nove filhos. Ele explica que o nome do local, Lagoa das Onças, vem de um barreiro grande que existia antigamente, onde as onças bebiam água. “O barreiro secou e ninguém viu mais as onças”, completa. Severina explica que antes de ter a cisterna bebia água de barreiro. Apenas coava, sem filtrar ou ferver, porque ninguém nunca tinha lhe explicado que tais procedimentos eram necessários. “Coava só para não engolir mosquito e filhote de sapo.”

No Sítio Jucá, também em Bom Jardim, Severino Celestino da Silva, 81 anos, e Maria do Livramento mudaram completamente de vida com a chegada da cisterna, no ano passado. O reservatório encheu durante o período de inverno e até hoje fornece água. Mesmo assim, a mulher caminha 40 minutos para chegar a um açude de onde pode retirar água para o plantio de milho, feijão, batata-doce e fava.

Em Bom Jardim o programa é coordenado por Adeildo Fernandes da Silva, responsável pelas ações desenvolvidas em doze municípios que integram a microrregião e articulador regional da ONG Sabiá, que atua há doze anos no Agreste Setentrional, no Sertão do Pajeú e na Mata Atlântica, funcionando como um centro de desenvolvimento agroecológico. Segundo ele, no Agreste Setentrional já foram construídas 1.965 cisternas e 330 deverão ficar prontas até o início de março.

O município de Bom Jardim tem uma característica diferente de grande parte dos demais: com população de 37.500 habitantes, possui apenas dois latifúndios. A maioria das propriedades tem cerca de 3 hectares e 75% da população vive na área rural. A ONG Sabiá trabalha com a Agroflor, uma associação de agricultores que produzem sem a utilização de insumos químicos. Eles procuram reproduzir o modelo da agrofloresta, plantando espécies diversificadas de várias alturas e ciclos diferentes, além de árvores nativas que servem para equilibrar o ecossistema. São plantas cujas raízes atingem uma profundidade maior, abrindo espaço no solo para a concentração de água.

No município de Sairé, também em Pernambucano, o trabalho é levado adiante pela Cáritas Diocesana, ligada à Igreja Católica, e pela Igreja Menonita, vinculada aos evangélicos. A sede fica em Caruaru e atende os 20 municípios da microrregião do Agreste Central. A coordenação fica a cargo de Elizabeth Szilassy. Lá já foram construídas 3.060 cisternas e 62 estão em execução.

Embora seja conhecida como a terra da laranja, Sairé possui como atividade econômica de peso a bovinocultura. Mas, segundo Oséias Caetano da Silva, presidente do Sindicato Rural e integrante da comissão municipal do projeto, para a população carente a realidade é a mesma do restante do Semi-Árido. Os que não possuem cisternas têm mesmo de caminhar com latas de água na cabeça ou, na melhor das hipóteses, no lombo de burros.

Pesquisa feita pelo sindicato mostra que o grau de satisfação das famílias beneficiadas com as cisternas é de 100%. Porém, adianta que as lideranças municipais não estão muito felizes. É que, com o consumo de água limpa, diminuíram os casos de doenças, principalmente entre as crianças. “Com o atendimento reduzido, as unidades de saúde viram que os recursos provenientes do SUS também ficaram mais escassos”, conta o sindicalista.

Josina Maria de Lima é um exemplo típico de pessoa que enfrenta dificuldades para obter água. Ela está construindo sua cisterna e, enquanto não fica pronta, sobe e desce 400 metros de morros para ter acesso à água. Enquanto isso, o marido trabalha ganhando R$ 10 por dia nas fazendas vizinhas, quando é chamado para ajudar em alguma atividade agrícola. A família de Josina também expressa toda a contradição resultante de uma realidade social distorcida. Ela não tem água, mas sua casa, no Sítio Cunha, em Sairé, exibe uma imensa antena parabólica.

No mesmo sítio, é grande a agitação na pequena propriedade de Ermenegildo José da Silva. Vizinhos fizeram um mutirão para ajudá-lo na construção da cisterna, sob a orientação do pedreiro José Severino de Oliveira Filho, autor de mais de cem obras desse tipo na região. Ermenegildo mora com dez filhos e vários netos, o menor deles com 5 meses. Como outros moradores da área rural, também não sabia que precisava tratar a água. “Nós, do interior, somos que nem burro”, declara.

Severino Pereira da Silva, morador do Sítio Mongonga, em Sairé, acha que sua vida mudou muito após a construção da cisterna. Para ele, não conta só a comodidade de ter água junto de casa, mas a liberdade de votar em quem desejar. “Agora eu posso escolher o candidato que quiser. Antes eles iludiam os eleitores. Prometiam água. Botavam um pouquinho durante a campanha e depois desapareciam. Precisando muito da água, o povo aceitava”, relata.

Outro que viu sua vida transformada foi Heleno Herculano da Silva, 73 anos, que perdeu uma perna em 1953. “O caminhão em que eu viajava virou e o trem passou por cima da minha perna”, conta ele. Herdou um terreno de 2 hectares do pai e vive da sua aposentadoria. Porém, precisou sustentar cinco filhos, que junto com a sua mulher retiravam água de uma cacimba localizada longe de casa. Hoje, só procura a água do poço para regar a plantação de milho, mandioca, feijão e laranja.

Tereza Rozowykwiat é jornalista

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