Internacional

A emergência de um indígena como presidente na Bolívia e de uma mulher no Chile, assim como de um operário no Brasil é resultado de processos gerados nas lutas sociais e na construção de políticas alternativas

As eleições do presidente Evo Morales, na Bolívia, e da presidente Michelle Bachelet, no Chile, constituem as mais recentes expressões de uma mudança tendencial que vem se confirmando na América Latina e se expressa em um processo de consolidação democrática inédito na região.

Depois de vinte anos de crise econômica, política e social (por conta da dívida nos 80 e das políticas neoliberais nos 90), o processo de democratização da América Latina passou por momentos muito críticos. Finalmente, a crise econômica e social espalhou-se e as forças liberais-conservadoras recuaram frente à capacidade de rea­ção das sociedades. Assim, o novo século iniciou-se com vários triunfos eleitorais de candidatos representativos das lutas políticas e sociais das décadas anteriores: Lula no Brasil, Chávez na Venezuela, Kirchner na Argentina, Vázquez no Uruguai, Morales na Bolívia e Bachelet no Chile.

Como as novas maiorias que elegeram esses governos são tributárias de experiên­cias históricas muito diferenciadas, é difícil encontrar categorias comuns para analisar essas experiências tão heterogêneas. Governos de esquerda, de centro-esquerda, de esquerda-centro, nacionalistas, populistas, neopopulistas? Eminentes cientistas sociais parecem confundidos na tentativa de enquadrar esses governos em categorias conhecidas. A direita não tem dúvida: "maré popularesca", "retórica obsoleta", "líderes retrógrados", "experiências arcaicas"... Não há compreensão possível dentro de posições dogmáticas.

A proposta deste artigo é observar essa nova realidade sul-americana de uma perspectiva diferente, para conseguir desvendar as transformações que estão em processo. Sem dúvida, a emergência de um indígena como presidente na Bolívia e de uma mulher como presidente no Chile, assim como a de um operário presidente no Brasil, não se explica como fenômeno repentino nem como resultado de estratégia eleitoral acertada. São processos de caráter endógeno, gerados nas lutas sociais e na construção de políticas alternativas. Essas lideranças surgiram na sociedade e conseguiram firmar-se superando todos os preconceitos e quebrando as barreiras históricas impostas pelas elites desses países. O novo cenário permite vislumbrar significativas mudanças em curso.

Democratização da relação Estado e sociedade

Se considerarmos que a democracia é uma construção histórica inacabada, o grande desafio na América Latina foi e continua sendo a questão da desigualdade social. Muitas tentativas de compatibilizar o regime político que se sustenta na ficção básica da igualdade dos cidadãos com um regime econômico-social gerador de desigualdade já fracassaram. José Nun, sociólogo argentino hoje ministro da Cultura do governo Kirchner, propõe recuperar "esa perdida visión de la democracia como gobierno del pueblo" (Democracia, editora Fondo de Cultura Económica, Buenos Aires, 2000). Há que conjugar definitivamente sufrágio e liberdades individuais com justiça distributiva e participação da cidadania, superando a contradição entre desigualdade econômica e igualdade política, numa visão substantiva da democracia em que esta se confunda com o processo de expansão dos direitos dos cidadãos no plano político, econômico e social.

Esta é a primeira mudança que se vislumbra: ainda que timidamente porque o caminho é longo, a construção de políticas públicas dos governos Lula, Chávez, Kirchner e Vázquez, assim como as apresentadas nas plataformas de Morales e Bachelet, mostra uma vontade política de inclusão das maiorias por vias diversas, mas com o objetivo central de combater a desigualdade social.

Religar a sociedade ao Estado, permitindo a legitimação da política, requeria não somente novas lideranças representativas das maiorias anteriormente excluídas, mas também construções sociais e políticas que possibilitassem a sustentação dos novos programas de governo. O PT do Brasil, a Frente Ampla do Uruguai e o Partido Socialista do Chile compartilham, desde 1990, a agenda de debates do Foro de São Paulo sobre as alternativas ao neoliberalismo na América Latina e no Caribe. O Movimento V República na Venezuela e o Movimento ao Socialismo na Bolívia surgiram posteriormente e hoje também estão incorporados a essa articulação que contempla as diversas vertentes da esquerda latino-americana e caribenha.

As visões predominantes no pensamento tradicional centraram sempre a atenção no mundo da economia, deixando em segundo plano a política. Por isso, muito rapidamente surgiram vozes julgando as opções macroeconômicas de mudança progressiva (sem rupturas abruptas com o modelo anterior) como "continuísmo neoliberal". Os governos Lula e Vázquez são os mais mencionados como representativos dessa tendência. Essa redução de todo um universo – social, político, econômico e cultural – à variável macroeconômica não permite vislumbrar a verdadeira transformação que vem ocorrendo na relação entre a sociedade e o Estado nesses países da América do Sul. Essa interpretação simplificadora é usada irresponsavelmente para semear uma divisão de forte alcance simbólico entre governos "fiéis" e "traidores" a determinados postulados ideológicos. Jogo perigoso, alimentado por uma literatura que ressalta as diferenças entre a luta social e a luta política, com o objetivo de estigmatizar esta última.

Sem pretensões de aprofundamentos teóricos que não cabem aqui, há que alertar para o caráter conservador dessas análises. Descolar o plano social do político tem como efeito a perda da idéia de projeto e, conseqüentemente, a permanência no estado de resistência, numa dinâmica social auto-referenciada em ações do passado.

A tarefa em curso dos novos governos tem relação com a conquista de direitos. Velhos direitos consagrados na célebre Declaração de 1948, mas pouco cumpridos até hoje, e novos direitos chamados de terceira geração, como o direito à diferença, à paz, ao meio ambiente. Tarefa difícil, como confirma a pesquisa de Wanderley Guilherme dos Santos (Horizonte do Desejo – Instabilidade, Fracasso Coletivo e Inércia Social, FGV Editora), quando reconhece que, ao longo da transição democrática, a conquista da cidadania política não foi acompanhada por uma cidadania de fruição dos direitos sociais. No Brasil, os governos pós-88 abandonaram as belas gestas constitucionalistas e deram continuidade às velhas práticas clientelistas. A mudança de concepção das políticas de inclusão social, de natureza emergencial, mas também estruturante de um novo modelo de desenvolvimento, já teve como resultado a diminuição da desigualdade social (IBGE). Nos outros países, com características próprias, também há grandes esforços na implementação de políticas públicas com o mesmo objetivo: combater a desigualdade e garantir os direitos. Todo o resto é meio.

Aprofundamento e ampliação da integração regional

Essas transformações nas relações entre as sociedades e os Estados que ocorrem nos marcos nacionais, com realidades históricas e identitárias diferenciadas, têm uma projeção imediata no plano regional.

A substituição de antigas rivalidades por políticas de aproximação está transformando o cenário político da América do Sul, como o demonstra o encontro dos presidentes Lula e Kirchner (novembro de 2005) celebrando 20 anos de amizade Brasil–Argentina e a presença do presidente Lagos na posse do presidente Morales, sinal promissor para a resolução do velho conflito entre Bolívia e Chile. Ao mesmo tempo, as freqüentes reuniões entre presidentes e membros de governos para atender aos imperativos das tarefas da integração vêm demandando esforços de diálogo e construção de consensos, nunca vistos antes na agenda oficial de América do Sul e da América Latina.

Também no plano das sociedades, a proliferação de fóruns e seminários latino-americanos, com a participação de representantes de organizações sociais e políticas, tem permitido interlocução transnacional e intercâmbio de experiências inéditas no continente. Está em curso, portanto, a construção de uma nova cultura política internacional que se manifesta mais intensamente na América Latina, onde Porto Alegre foi berço do Fórum Social Mundial. Essa semente já disseminada vem criando redes de discussão e de propostas de políticas públicas e formando uma proto-sociedade civil internacional, legado latino-americano à comunidade internacional.

A projeção da América do Sul no cenário mundial também se destaca porque emerge com estratégias convergentes de inserção internacional autônoma pela via do fortalecimento dos processos de integração já existentes – Mercosul e Comunidade Andina de Nações – e pela formação da Comunidade Sul-Americana de Nações. Sem ignorar as dificuldades – vide o conflito surgido recentemente entre Argentina e Uruguai em torno da instalação de uma indústria às margens do Rio Uruguai – e as demoras na implementação de uma institucionalidade mais democrática – como o Parlamento do Mercosul –, houve uma nítida mudança de projeto do Mercosul que hoje responde a uma lógica multidimensional: política, econômica, social e cultural. Dessa forma, a agenda da integração não está mais centrada no livre comércio, como era nos 90, mas nela constam iniciativas de planejamento nas áreas produtiva, energética e de infra-estrutura, contemplando políticas públicas de combate às assimetrias. Argumentos que centram o foco nos "modelos" são incapazes de observar e interpretar essas mudanças no processo de aprofundamento e ampliação da integração sul-americana.

Construção da autonomia regional

Essa nova política internacional integracionista também está transformando a relação da América Latina, em especial da América do Sul, com os Estados Unidos.

Depois de setembro de 2001, o governo Bush iniciou uma ofensiva no plano mundial para consolidar o unilateralismo como processo de tomada de decisões no plano internacional. O desrespeito ao Direito Internacional e às Nações Unidas foi denunciado no mundo todo. O governo Lula, desde o começo de sua gestão, em janeiro de 2003, se opôs fortemente à guerra contra o Iraque e, quando a decisão se tornou iminente, telefonou para os presidentes da América Latina com assento no Conselho de Segurança, como o México e o Chile, para que votassem contra a guerra. Na América Latina, somente El Salvador acompanha até hoje a decisão dos Estados Unidos.

As pressões do governo Bush sobre os governos latino-americanos para que aderissem aos postulados da nova lei antiterrorista e aos imperativos do novo paradigma de segurança denominado "guerra preventiva" não tiveram o resultado esperado, salvo na Colômbia, onde o governo Uribe é firme aliado dos Estados Unidos, dos quais recebe volumosos recursos por conta do Plano Colômbia.

No âmbito das negociações comerciais hemisféricas – a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) –, as mudanças foram notáveis. O primeiro passo nesse sentido ocorreu na VIII Reunião Ministerial da Alca, em novembro de 2003 em Miami, quando foi contestado o desenho original de área de livre comércio proposto pelos Estados Unidos na Cúpula das Américas, em 1994, também em Miami. O mais recente, durante a reunião da IV Cúpula das Américas, em novembro de 2005 em Mar del Plata. A ação ofensiva e unitária dos presidentes Kirchner, Lula, Vázquez e Chávez permitiu um desenlace inédito no histórico dessas cúpulas presidenciais: enfrentaram o debate e não cederam posições, defendendo valores e interesses do projeto sul-americano de integração, claramente antagônico ao projeto da Alca defendido por Bush e Fox. Culminava assim uma década de lutas continentais que aglutinaram organizações sindicais, movimentos sociais, partidos políticos e governos de esquerda na defesa de uma integração soberana. No entanto, houve os que creditaram essa vitória exclusivamente à luta social, desconsiderando a importância do processo de construção de uma posição unificada dos governos do Mercosul e da Venezuela.

No plano das relações político-institucionais, os Estados Unidos não conseguiram impor seus candidatos ao cargo de secretário-geral da Organização de Estados Americanos (OEA), o ex-presidente de El Salvador Francisco Flores e o ministro de Relações Exteriores do México, Luis Ernesto Derbez. A eleição de José Miguel Insulza, ministro do governo Lagos e importante quadro do Partido Socialista chileno, tornou-se símbolo de uma nova era no relacionamento dos Estados Unidos com os países sul-americanos, determinados a trabalhar conjuntamente na construção da autonomia regional.

Compromisso com um novo multilateralismo

Há dois grandes relatos clássicos para explicar e interpretar as relações internacionais. Um se articula em torno da idéia de conflito; o outro, em torno da idéia de cooperação. Cada um deles responde a diferentes visões de mundo: o primeiro (hobbesiano) interpreta o cenário mundial como anárquico, onde dominam as relações de poder; o segundo (kantiano) propõe normas, regimes e instituições para regular as relações entre os Estados.

Traduzidas ao cenário mundial atual, a primeira inspira o "unilateralismo", praticado pelo governo Bush, e a segunda o "multilateralismo", defendido pela maioria das nações que fazem parte do Sistema das Nações Unidas, vigente desde o fim da Segunda Guerra Mundial.

A América Latina teve grande protagonismo nos primeiros tempos da implantação desse sistema multilateral, protagonismo que foi perdendo com o tempo sob o manto estratégico da guerra fria, quando o paradigma da "segurança" obscurecia todos os caminhos possíveis na direção do desenvolvimento e da democracia.

Desde 1989 o mundo é outro, apesar dos que se obstinam em ver mais as continuidades do que as mudanças. O chamado "mundo das complexidades" apresenta-se volátil e profundamente instável, abrindo perspectivas para desenvolver políticas contra-hegemônicas, para mudar o mapa do poder mundial.

Nessa direção, também há importantes mudanças em curso pela via do fortalecimento das relações Sul–Sul. A iniciativa de Lula, convocando líderes mundiais para um combate à fome de alcance planetário; o compromisso com os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio das Nações Unidas; e, principalmente, a formação do G20 para articular os interesses comerciais do Sul perante o predomínio dos interesses do Norte na Rodada Doha da OMC constituem ações ousadas que apostam na mudança do sistema multilateral atual, paciente de grave crise de legitimidade. Nesse marco se insere a questão da reforma das Nações Unidas, em especial do Conselho de Segurança.

Na América Latina, esse novo protagonismo multilateral inspirou ações impregnadas de um espírito de cooperação em prol da resolução de casos graves de desagregação nacional, como foi a decisão de Brasil, Argentina, Chile e Uruguai de formar parte da Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti. Imbuídas de velhos significantes, vozes se alçaram em nome do princípio da autodeterminação dos povos. No entanto, a prática de um novo multilateralismo precisa re-significar conceitos que também são construções históricas. Com todos os problemas pendentes, a gesta das eleições haitianas de 7 de fevereiro confirmou a importância da presença da comunidade internacional, reeditando o sucesso de operação similar em Timor Leste há alguns anos.

Como já foi dito, o pensamento crítico tem obrigação de perscrutar mudanças contra a tendência geral de privilegiar a observação das continuidades. Sem medo dos ornitorrincos. Afinal, foram necessários dois séculos para que os cientistas aceitassem superar categorias estanques e reconhecessem que se tratava de um animal superdotado para lidar com a vida.

Ana Maria Stuart é professora de Relações Internacionais, pesquisadora do Cedec e coordenadora da assessoria da SRI-PT