Nacional

O programa de governo deve contemplar metas para superar o neoliberalismo no país

Um contraste entre as agendas, ações e dinâmicas criadas pelo governo Lula em seis áreas estruturantes da ação do Estado brasileiro mostra que, de conjunto, ele já deixou para trás um paradigma tipicamente e coerentemente neoliberal de Estado. Mostra, ao mesmo tempo, que a transição de um paradigma neoliberal se deu de modo diferenciado, desigual e parcial nessas áreas. Em particular, a permanência de padrões típicos do período neoliberal na gestão da moeda, do câmbio e da dívida pública exerceu forte contenção dos avanços possíveis nas outras áreas.

É certamente nas relações do Estado brasileiro com o sistema internacional que o governo Lula mais atuou em contraste com o paradigma neoliberal e, nitidamente, mais avanços conquistou. Os governos neoliberais de FHC apostaram em uma agenda comum com as lideranças dos governantes de então dos EUA e da Inglaterra, Clinton e Blair, cedendo fortemente no campo da soberania nacional. Por largo tempo, praticaram a paridade do real com o dólar e flertaram com a dolarização, expondo o Brasil às dinâmicas da agenda da Alca no continente e tornando o país vulnerável a sucessivas crises cambiais. Os quatro anos do segundo mandato de FHC foram geridos sob o manto dos acordos com o FMI.

O conjunto da agenda, das ações e das dinâmicas imprimidas pelo governo Lula demonstrou inequivocamente uma ruptura com esse padrão. A saída do acordo com o FMI, a reconstituição das reservas nacionais (que passaram de US$ 15 bilhões para US$ 60 bilhões), a acumulação de fortes superávits comerciais e da balança de pagamentos significaram uma importante recuperação da soberania econômica. O congelamento da agenda da Alca e a retomada de uma dinâmica da integração da América Latina ajudaram a impulsionar uma nova conjuntura latino-americana. A constituição do G20, o lançamento com forte audiência de uma campanha mundial contra a fome e, agora, a realização da primeira Conferência da FAO sobre reforma agrária após décadas são momentos expressivos da ação mundial do governo Lula.

No campo das políticas sociais, o padrão dos governos neoliberais de FHC (com exceção para o Ministério da Saúde em aspectos importantes) optou pelo paradigma neoliberal dos programas focalizados de assistência social, pela ênfase no ensino fundamental em contraponto ao sistema universitário público, pelo dualismo da medicina privada para os ricos e básica para os pobres, paralisando e invertendo uma lógica de progressiva universalização da construção do Estado do bem-estar social indicada na Constituição de 1988.

Um contraste entre as agendas, ações e dinâmicas criadas pelo governo Lula em seis áreas estruturantes da ação do Estado brasileiro mostra que, de conjunto, ele já deixou para trás um paradigma tipicamente e coerentemente neoliberal de Estado. Mostra, ao mesmo tempo, que a transição de um paradigma neoliberal se deu de modo diferenciado, desigual e parcial nessas áreas. Em particular, a permanência de padrões típicos do período neoliberal na gestão da moeda, do câmbio e da dívida pública exerceu forte contenção dos avanços possíveis nas outras áreas.

É certamente nas relações do Estado brasileiro com o sistema internacional que o governo Lula mais atuou em contraste com o paradigma neoliberal e, nitidamente, mais avanços conquistou. Os governos neoliberais de FHC apostaram em uma agenda comum com as lideranças dos governantes de então dos EUA e da Inglaterra, Clinton e Blair, cedendo fortemente no campo da soberania nacional. Por largo tempo, praticaram a paridade do real com o dólar e flertaram com a dolarização, expondo o Brasil às dinâmicas da agenda da Alca no continente e tornando o país vulnerável a sucessivas crises cambiais. Os quatro anos do segundo mandato de FHC foram geridos sob o manto dos acordos com o FMI.

O conjunto da agenda, das ações e das dinâmicas imprimidas pelo governo Lula demonstrou inequivocamente uma ruptura com esse padrão. A saída do acordo com o FMI, a reconstituição das reservas nacionais (que passaram de US$ 15 bilhões para US$ 60 bilhões), a acumulação de fortes superávits comerciais e da balança de pagamentos significaram uma importante recuperação da soberania econômica. O congelamento da agenda da Alca e a retomada de uma dinâmica da integração da América Latina ajudaram a impulsionar uma nova conjuntura latino-americana. A constituição do G20, o lançamento com forte audiência de uma campanha mundial contra a fome e, agora, a realização da primeira Conferência da FAO sobre reforma agrária após décadas são momentos expressivos da ação mundial do governo Lula.

No campo das políticas sociais, o padrão dos governos neoliberais de FHC (com exceção para o Ministério da Saúde em aspectos importantes) optou pelo paradigma neoliberal dos programas focalizados de assistência social, pela ênfase no ensino fundamental em contraponto ao sistema universitário público, pelo dualismo da medicina privada para os ricos e básica para os pobres, paralisando e invertendo uma lógica de progressiva universalização da construção do Estado do bem-estar social indicada na Constituição de 1988.

Já é possível avaliar que o governo Lula, mesmo com os limites orçamentários dados e por suas opções, vem retomando uma lógica de construção do Estado do bem-estar social no Brasil. A universalização do Fome Zero, assentado prioritariamente no programa Bolsa-Família, representa de fato a cobertura crescente de dezenas de milhões de brasileiros abaixo da linha de pobreza e ao desabrigo de políticas públicas permanentes. A cobrança de condicionalidades na área da educação e da saúde por parte da família dos beneficiados e a integração com um conjunto de políticas de inclusão social antes inexistentes ou inoperantes (Luz para Todos, microcrédito e bancarização, entre outras) superam a dimensão meramente assistencialista. A criação do Fundeb, ampliando o investimento federal em educação em termos de volume e cobertura, agora do ensino médio, a retomada da reforma universitária e a criação de inúmeras universidades públicas acopladas a estratégias de desenvolvimento regional, o ProUni, restituem valores básicos da escola pública e da democratização do acesso ao ensino. Na saúde, o aumento muito expressivo da cobertura do programa Médico de Família, a integração dos programas de saúde bucal, o investimento federal na emergência com o programa Samu alentam o repertório e a capilaridade do Sistema Único de Saúde (SUS), que já oferece o maior sistema público de transplantes do mundo. A defesa de cotas para o ensino público e raciais para o acesso à universidade constitui uma inovação histórica nas políticas públicas brasileiras. Trata-se certamente de um processo inicial, mas já capaz de criar novas agendas e dinâmicas a serem consolidadas e, principalmente, expandidas.

Essa hipótese de retomada de construção do Estado do bem-estar social, em contraponto ao focalismo das políticas sociais dos governos neoliberais, fica reforçada quando se examinam as novas relações do Estado brasileiro com o mundo do trabalho. O governo FHC inaugurou-se com forte contenção ao movimento sindical, com tanques reprimindo a greve dos petroleiros, sinalizando uma era de cassação de direitos da classe trabalhadora. Essa cassação de direitos tornou-se estrutural com o intenso avanço do desemprego e da informalização do mercado de trabalho.

A taxa média mensal de criação de empregos com carteira de trabalho durante o governo Lula é cerca de dez vezes superior à dos anos FHC. Iniciou-se a reversão da curva de informalização do mercado de trabalho, com a criação líquida até agora de cerca de 4 milhões de empregos formais. Em quatro anos, a política de valorização do salário mínimo foi já maior que nos oito anos de governo FHC. Esse processo de diminuição do desemprego, de formalização do mercado de trabalho, de elevação do salário mínimo é insuficiente para repor os danos superpostos do período do regime militar e dos anos neoliberais e aquém do que seria possível fossem outras as opções na gestão macroeconômica. Mas aponta certamente outra possibilidade histórica para as classes trabalhadoras brasileiras.

No que diz respeito ao mundo agrário, a prioridade e o eixo de continuidade das políticas públicas do Estado brasileiro foram basicamente o estímulo ao grande agrobusiness. Os anos 90 ainda registraram forte êxodo rural e de desestruturação da agricultura familiar. A agenda do governo Lula significou certamente a maior ruptura na história do país com políticas agrárias unilateralmente voltadas para o grande agrobusiness. O financiamento da agricultura familiar cresceu de R$ 2,3 bilhões no biênio 2002-2003 para cerca de R$ 9 bilhões no biênio 2005-2006. A meta de assentar 400 mil famílias de sem-terra em quatro anos parece viável: em três anos, em uma dinâmica de aceleração, já foram assentadas 245 mil famílias, contra 540 mil em 32 anos da história do Incra. A área destinada à reforma agrária em três anos do governo Lula, 22,5 milhões de hectares, já é superior à dos oito anos dos governos FHC. As famílias beneficiadas com assistência técnica chegaram a 450 mil em 2005, contra apenas 56 mil no último ano do governo FHC. Esses números, que colocam o governo Lula muito à frente de qualquer outro governo no que diz respeito à reforma agrária, são, no entanto, basicamente insuficientes para alterar de modo significativo o padrão da concentração fundiária no Brasil.

Em relação à questão central da democracia e das funções do Estado brasileiro, o paradigma neoliberal dos governos FHC optou pela lógica do Estado mínimo, privatizando estatais e terceirizando funções, criando modelos de regulação fraca do mercado. O governo Lula basicamente não privatizou estatais nem terceirizou funções do Estado. Ao contrário, retomou uma dinâmica vigorosa de contratação em áreas fundamentais do governo federal, por meio de concurso público, e conseguiu imprimir forte capitalização e dinamismo a entes estatais poderosos, como BNDES, Caixa Econômica e Petrobras. Por meio de grandes conferências nacionais setoriais e de fóruns de interlocução – saúde, campo, trabalho, mulheres, ecologia, negros, assistência –, o governo federal abriu-se a uma dinâmica de absorção de agendas e interação com os movimentos sociais. O investimento em pessoal e equipamento da Polícia Federal permitiu uma ação historicamente sem precedentes, no Brasil, de combate ao crime organizado. Medidas de transparência e de auditoria inéditas foram estabelecidas pela Corregedoria Geral da União. Mas o governo Lula não conseguiu criar nem mesmo um processo inicial de discussão pública do orçamento federal, e as medidas de democratização da gestão pública e de combate à corrupção sistêmica ficaram, em geral, muito aquém do possível e necessário.

No campo da relação do Estado com a economia foi onde se aplicou com mais força o paradigma neoliberal. Em primeiro lugar, a onda de privatizações das estatais, que significou a maior transferência de patrimônio público para mãos privadas na história brasileira. Em segundo lugar, construíram-se as condições institucionais para que os interesses do capital financeiro e especulativo passassem a exercer amplo domínio na dinâmica da economia brasileira. Se no primeiro mandato de FHC tal política tinha como chefe uma linha de dolarização (com a paridade do real com o dólar), no segundo, após a crise cambial de 1998, o caminho da financeirização estruturou-se por meio do tripé metas de inflação-câmbio flutuante-altos superávits primários.

Foi na relação do Estado com a economia brasileira que o governo Lula certamente encontrou maiores dificuldades para transitar para outro paradigma. Nela se concentraram as pressões advindas do setor que mais magnificou seu poder nos anos neoliberais, o financeiro. A “autonomia operacionall” concedida pelo governo Lula aos gestores do Banco Central foi, na prática, maior que nos anos FHC, que por duas vezes destituiu seu presidente. A taxa de juros básica da economia, apesar de menor do que a média dos anos FHC, permaneceu bastante elevada, com forte impacto no aumento da dívida pública e na dinâmica da economia. O BC manteve-se trabalhando restritamente com metas de inflação, sem sequer incorporar a combinação do combate à inflação com o objetivo primordial do crescimento econômico, como faz, por exemplo, o Banco Central norte-americano. As metas de inflação continuaram a ser fixadas sem participação dos agentes econômicos centrais, empresários do setor produtivo e trabalhadores. As taxas de juros privadas, escandalosas de qualquer ponto de vista, prosseguiram sem nenhum controle ou regulação do Banco Central. Assim, se a inflação foi estritamente controlada, se a relação dívida pública–PIB conheceu uma redução na margem, se o crédito consignado permitiu acesso ao crédito com taxas bem diferenciadas, é verdade que a taxa de crescimento da economia brasileira ficou aquém da média da economia mundial e muito aquém das taxas de uma série de países emergentes. As restrições ao crescimento, ao orçamento público e à oferta de crédito para investimento e consumo a taxas compatíveis com o resto do mundo continuaram a limitar fortemente o impacto positivo de todas as políticas de emprego e renda e sociais do governo Lula, ao mesmo tempo que garantiam taxas recordes de lucratividade ao setor financeiro.

Um outro Brasil agora é possível

Uma nova vitória contra as forças neoliberais em 2006 pode abrir um ciclo histórico de mudanças que superem integralmente o paradigma neoliberal do Estado brasileiro e inicie uma grande revolução democrática no país. Mas para isso será preciso ultrapassar os fatores estruturais que mais condicionaram e limitaram a ação criadora do governo Lula.

Em primeiro lugar, o Brasil deve avançar no caminho da afirmação da sua soberania construindo um poderoso sistema público de financiamento de longo prazo, criando um sistema nacional de inovação que alimente e amplie a produtividade de sua economia e sua capacidade exportadora, alargando e democratizando a base e a potência de seu mercado interno, enfim, consolidando uma nova espacialidade continental e internacional para o desenvolvimento.

A superação dos preconceitos historicamente enraizados que garantem privilégios de classe ou status, de raça e de sexo exige que se invista em uma revolução cultural dos valores que organizam a sociabilidade dos brasileiros. O racismo, as dimensões simbólicas do apartheid social, o machismo devem ser enfrentados, em tom alto e pedagógico, em grandes campanhas públicas que mobilizem a sociedade e a cultura brasileiras.

Para superar o modelo econômico neoliberal será fundamental democratizar e tornar republicanas as gestões do Banco Central e do orçamento público da União. Mina a democracia, em nome da complexidade e do caráter técnico, que, no fundo, mal escondem interesses de grandes rentistas, retirar do debate democrático responsável e claramente institucionalizado decisões tão fundamentais que definem a vida dos brasileiros.

Não há como construir novos padrões de governabilidade sem tornar central em nossa plataforma e nosso discurso a defesa da reforma político-eleitoral. É ela que permitirá ir desmontando os nós da influência do poder econômico nas eleições, do fisiologismo e da alimentação da corrupção sistêmica no Estado brasileiro.

O trabalho de superação desses obstáculos históricos permitirá elevar, de forma realista, o programa de metas do governo Lula. Assim, como se fez marcante na história brasileira, esse programa de metas deve ter um centro unificador e cinco dimensões fundantes.

O centro só pode ser o aprofundamento da democracia do país, o avanço da democracia participativa e do controle social do Estado. Assim como a meta-símbolo do primeiro governo foi o Brasil para todos e o Brasil sem fome, a meta agora deveria ser a construção integral da dignidade do cidadão brasileiro.

As cinco metas poderiam ser:

• A afirmação de um novo modelo econômico capaz de ser ecologicamente sustentado e distribuir renda para crescer a taxas nunca inferiores a 5% ao ano;

• A retomada da construção plena de um Estado do bem-estar universalista que acolha as metas do pleno emprego, do direito das mulheres e da ação afirmativa dos direitos dos negros;

• A reforma no sistema agrário, capaz de criar uma expansão inédita da agricultura familiar e alternativa, com base na cooperação e na democratização da terra e do crédito;

• A afirmação da cidadania cultural dos brasileiros, por meio da democratização da educação, da comunicação e da expansão da sua identidade cultural plural;

• A construção da comunidade política do continente latino-americano, a partir de valores de liberdade, justiça social e pluralismo cultural.

Construir esse programa de transformações não pode ser apenas tarefa do PT. É uma construção social, pública e democrática, que reclama a participação de todos os setores sociais que resistiram e souberam vencer o neoliberalismo.

O povo brasileiro não quer de novo provar diariamente a sopa rala e amarga do neoliberalismo. Aspira de novo a se alimentar do pão cotidiano da esperança em um Brasil justo, novo e fraterno. É essa esperança que pode, enfim, começar a se tornar realidade com a vitória das forças populares e democráticas em outubro de 2006.

Juarez Guimarães é cientista político, professor na UFMG, editor do Periscópio, boletim eletrônico da Fundação Perseu Abramo