Internacional

Entrevista com o presidente da Frente Cívico-Militar Bolivariana da Venezuela, tenente-coronel Héctor Herrera Jiménez

Em abril, a convite da Fundação Perseu Abramo e do Instituto Maurício Grabois, o tenente-coronel Héctor Herrera Jiménez, presidente da Frente Cívico-Militar Bolivariana da Venezuela, esteve no Brasil para participar do Fórum Social Brasileiro, realizado no Recife. Na oportunidade, ele concedeu esta entrevista a Teoria e Debate, na qual fala da situação política em seu país, das propostas de Hugo Chávez e da importância da reeleição de Lula para toda a América Latina

Qual é o significado do governo de Hugo Chávez para a Venezuela?
O presidente Chávez e o processo bolivariano dividem a história da Venezuela em antes e depois. Os governos que dirigiram o país durante anos o fizeram de uma maneira não nacionalista, integrados ao império norte-americano. Desde 1900, por exemplo, todo o petróleo foi vendido e presenteado aos Estados Unidos, que nem sequer pagaram royalties ao nosso país. Então, Chávez, com idéias nacionalistas e regionalistas, fez despertar nossa auto-estima. A oligarquia venezuelana e os EUA nos acusam de populismo.

Conseguiram propagar bem essa idéia...
Se populismo é fazer com que o povo seja protagonista, que seja levado em conta para a tomada de decisões, que seja consultado em referendos para assinar ou não um Tratado de Livre Comércio, para ter uma Constituição, para se integrar ou não a um grupo econômico regional, que seja levado em conta para participar na gestão do governo, que diga quais são as prioridades em sua região para obter recursos e para gastá-los, então somos populistas. Isso para nós é humanismo, é justiça social.

Se um governo, além de dar o que comer à população, destina recursos para que esta aprenda a ler e escrever, isso é humanismo, não é clientelismo nem populismo. Nós buscamos garantir a segurança alimentar do povo, por exemplo, levando alimento onde está a população necessitada, às favelas, aos bairros, aos morros. O Estado construiu mercados populares. O presidente levou médicos às favelas, pois a medicina estava mercantilizada e somente os ricos podiam ir a uma clínica, a um hospital. Agora a saúde vai ao povo, aos bairros. Isso é o que Chávez fez e por isso há um corte na história venezuelana: antes e depois de Chávez. O povo se tornou protagonista de sua Constituição, criou uma consciência, não aceita que lhe tirem ou imponham coisas. Agora, as pessoas vão aos ministérios em massa: “Tirem esse ministro porque não cumpre o prometido” ou “tire tal chefe porque nos engana, não nos atende”. Isso é protagonismo e participação.

Quanto ao tema político, por exemplo, as comunidades se reúnem e nomeiam porta-vozes, por intermédio dos quais reivindicam ao governo municipal suas prioridades. O povo, reunido em assembléia, é quem diz quais são as prioridades. Isso é o que Chávez chama de democracia revolucionária – não a representativa, como antes –, que tem três características: participação, protagonismo e a unidade cívico-militar.

Fale um pouco desta última.
As Forças Armadas não podem continuar a ter o papel que tradicionalmente tiveram, simplesmente para manter o establishment no poder e reprimir rebeliões populares; é preciso vinculá-las à realidade de seu país, de sua região. Não podem estar alheias à miséria e à fome. Têm de utilizar todo o seu aparato para a defesa do país, sim, como primeira função, mas têm de participar ativamente no desenvolvimento econômico e social; têm de ajudar a abrir estradas na zona rural para que os agricultores possam levar sua produção aos centros de comercialização, barateando os custos da cadeia produtiva; têm de utilizar seu equipamento de engenharia para construir escolas, consultórios médicos. É um mandato constitucional, colocamos isso na Constituição para que se prolongue no tempo. E as Forças Armadas têm de participar no desenvolvimento tecnológico do país. Por exemplo, estão participando, com o governo da China, num projeto para desenvolver nosso software livre. Também com a China desenvolvemos nossos satélites. Com a Rússia, com Cuba, também há projetos.

E como se muda essa mentalidade nas Forças Armadas?
É um processo. Isso não se decreta, sobretudo em casos como o brasileiro, que tem uma má experiência com os militares. Na Venezuela, esse processo se acelerou porque as Forças Armadas não são elitistas, vêm do povo, diferentemente das da Argentina e da Colômbia, onde têm origem na classe alta. Estamos há sete anos ensinando, inculcando em toda a oficialidade média e, sobretudo, na tropa esse pensamento. O golpe de Estado – por incrível que pareça – ajudou o governo a tomar decisões fortes, e com razão. Por exemplo, banir das Forças Armadas ativas a alta oficialidade que não estava de acordo com o processo de mudança. Os generais, coronéis, almirantes que não estavam identificados com o processo de mudança e participaram do golpe de Estado, todos estão fora. Alguns foram indiciados como traidores da pátria, por rebelião militar, outros simplesmente se retiraram e alguns ficaram em cargos administrativos, mas são minoria. A grande maioria do novo generalato, dos novos coronéis, dos níveis médios de comando e da tropa está com o processo de mudanças que houve na Venezuela. Tem sido relativamente fácil impulsionar essa relação cívico-militar; manter como prioridade a defesa da soberania, o treinamento militar e a participação na manutenção da ordem interna, e a unidade cívico-militar, que incentiva o povo a participar, junto com as Forças Armadas, na defesa militar e no desenvolvimento econômico e social do país.

Vocês terão eleições no final do ano. Qual é o quadro político-eleitoral hoje? Quais são as perspectivas?
Quando Chávez assumiu, dos 270 deputados do Parlamento Nacional, somente 50 estavam com ele e, de 24 governadores, apenas 5. Nas eleições de 2000, Chávez passou de 5 para 22 governadores, uma maioria quase absoluta. Dos 270 deputados, tínhamos a metade mais um, e agora, por uma estratégia que a oposição usou, temos todos os deputados. Percebendo que teriam um fraco resultado eleitoral, que elegeriam não mais que 15 ou 20 deputados, eles se retiraram das eleições para ver se Chávez as adiaria ou se o processo se deslegitimaria internacionalmente e perante o povo, mas nada disso aconteceu. Agora temos todos os deputados.

Na Venezuela há a Ação Democrática – ligada à social-democracia – e o Copei – ligado à democracia-cristã – e agora há um novo partido, que se chama Primeira Justiça. A popularidade de Chávez cresceu. O MVR, que é o partido de Chávez, tem 60% de aceitação e cada um dos dois partidos tradicionais, cerca de 1 a 2%. O Primeira Justiça, que é dos jovens ricos, tem 9%. A Ação Democrática e o Copei não querem reconhecer o Primeira Justiça na liderança da oposição e não o apóiam, porque isso seria aceitar que eles desapareceram politicamente.

Para as eleições de dezembro, Chávez tem, em todas as pesquisas, em torno de 60% e a oposição não chega a 10% e não tem candidato. Chávez está correndo só, embora saibamos que há uma estratégia dos Estados Unidos no sentido de tentar emplacar um candidato. Há uns três ou quatro que querem, mas não se lançam oficialmente. Vão tentar ver se chegam a 15% até outubro. Se não conseguirem, vão se retirar da disputa de novo para não sofrer outra derrota esmagadora e sairão dizendo que a Venezuela é uma tirania, e não uma democracia.

Isso se dá também porque agora os venezuelanos votam. Antes não votavam porque não tinham carteira de identidade. Tirar uma cédula de identidade demorava oito meses. Além disso, não sabiam ler nem escrever. Agora sabem ler e escrever e a identidade sai em cinco minutos. Chávez mudou tudo isso. Agora temos um sistema de identificação moderníssimo: estão tirando a carteira e simultaneamente, eletronicamente, o título eleitoral é impresso. Isso conscientizou muito o nosso povo, que sente que Chávez governa para eles.

Na questão da educação superior, por exemplo, Chávez tomou os edifícios mais luxuosos que tinha a oligarquia petroleira venezuelana e deu aos universitários, àqueles que nunca tiveram a oportunidade de entrar na universidade. Agora os pobres estudam nos melhores edifícios. Há uma percepção de que o governo é para o povo. Em um ano e meio se construíram 8 mil módulos assistenciais de saúde nas favelas, nos bairros, com médico, enfermeira, remédios, lá no morro. Vieram inicialmente 20 mil médicos cubanos, hoje há uns 30 mil.

E houve alguma rejeição?
Sim, horrível, dos médicos venezuelanos. Mas agora viram que isso foi aceito pelo povo e mesmo a oposição sabe que, se Chávez sai, este programa – Barrio Adentro – tem de continuar, porque o povo ama os médicos cubanos. E hoje já está começando a haver um grupo de médicos revolucionários venezuelanos que estão se inscrevendo no Barrio Adentro para substituir os cubanos. Temos 45 mil médicos na Venezuela e somente 1.500 ou 2 mil estavam na área assistencial propriamente dita. Havia grandes hospitais onde se fazia de tudo, se tinha dor de cabeça ia para o hospital, qualquer doença ia ao hospital, quer dizer, se “saltava” o médico familiar, o médico rural, tudo era nos hospitais. Porque os médicos estavam nas cidades, eles não iam para a área rural. Os médicos na Venezuela eram todos filhos da classe oligárquica.

Qual é a visão da Revolução Bolivariana sobre a integração latino-americana?
Acreditamos que a integração latino-americana vai prosseguir, porque nós, primeiro, aprendemos a amar os valores que temos aqui, especialmente na América do Sul. Nós acreditamos que o Brasil deveria ser o epicentro do poder e o guia de influência da América Latina e deveria liderar a unidade sul-americana, com uma integração não somente comercial nem diplomática, mas social, política, cultural, porque se não tivermos um pensamento político não vamos funcionar. Um desenvolvimento harmônico progressista não pode coexistir com uma integração em que haja concorrência, porque a concorrência é neoliberal. Por exemplo, a solidariedade entre os povos: eu, país grande e rico, dou a quem não tem ou empresto a longo prazo. Ou a complementaridade, que é outro princípio: o que eu tenho posso dar a outro país, e este país me dá o que não tenho, em forma de troca. Ou integração, outro princípio: como bloco para enfrentar outro bloco. Com outro bloco podemos competir, mas entre nós não pode haver concorrência. Com esse conceito podemos fazer a integração. E acreditamos que o Brasil é quem deve liderar na América do Sul.

Vemos, com brilhos nos olhos, que o Brasil, com a liderança de um homem de tendência progressista como Lula, poderia ajudar-nos a todos a fazer essa revolução de pensamento, de conceito e de integração. Um governo de direita no Brasil, assinando a Alca ou um TLC com os Estados Unidos, traria um problema grave para a região, para a Venezuela, para a Argentina, para a Bolívia. Tomara pudéssemos fazer alguns brasileiros entender que Brasil não é Brasil, Brasil é América do Sul. O Brasil é continental e com influência continental. Se for governado pela direita, aqui vai entrar de vez o projeto neoliberal que ainda existe, porque tem sido difícil para Lula governar com um Congresso reacionário, com não sei quantos prefeitos e governadores contra ele, e, não obstante, ele tem feito reformas sociais importantes. Se houvesse um governo títere do neoliberalismo aqui, por exemplo, ele entregaria a Amazônia aos Estados Unidos, porque eles dizem que a Amazônia é da humanidade e os brasileiros não sabem cuidar disso, portanto, eles têm de colocar um exército na Amazônia para cuidar – mas, na verdade, para começar a invasão militar do Brasil.

A grande ameaça do Sul para os Estados Unidos não é Hugo Chávez, é o Brasil, porque tem o poder econômico, tecnológico e militar. E unido a toda a América Latina nos convertemos em uma grave ameaça para eles. E isto é o que queremos: um Brasil forte, um Brasil bem dirigido, um Brasil com governo progressista. Fernando Henrique Cardoso, um dia depois de ganhar as eleições, porque ele é quem estaria dirigindo por trás, a primeira coisa que faria seria assinar o TLC com os Estados Unidos e colocar uma base militar na Amazônia. Temos pessoas que fazem estudos estratégicos e dizem que é isso o que aconteceria. E, conseqüentemente, debilitaria o tema da integração latino-americana que estamos levando em conjunto. A construção da refinaria acabaria, o gasoduto acabaria, a Telesur acabaria. Então, para nós, é importantíssimo que Lula ganhe as eleições.

Como vocês vêem o Mercosul no processo de integração?
O Mercosul é outra de nossas esperanças. Queremos um Mercosul forte, que inclua mais países, mas um Mercosul que não seja só comercial, mas também tenha intercâmbio social e cultural entre nossos países. Por exemplo, como é possível que os países sul-americanos não saibam falar português, se o Brasil é o país com maior influência econômica, social, cultural e militar da região? E vice-versa: como é possível que o Brasil não saiba falar espanhol? É por causa dessa barreira que muitas coisas não vão adiante. Assim, queremos um Mercosul que estabeleça um princípio de complementaridade entre nossas assimetrias econômicas, mas também difunda solidariedade entre nós.

Houve uma Conferência em São Paulo no mês de abril, entre os presidentes Lula, Kirchner e Chávez, em que se falou de um projeto sul-americano de integração do gasoduto do sul, que gerará 1 milhão de empregos diretos mais 4 milhões de indiretos. E o primeiro beneficiado será o Brasil, porque tudo será através do Brasil. O primeiro ponto de parada da produção desse gasoduto é em Manaus, todo o estado de Roraima será beneficiado e, de repente, também o Amazonas. Isso vai criar desenvolvimento econômico e social.

A oposição aqui diz que isso não é viável, porque são muitos quilômetros de extensão...
Exatamente como não era viável a Telesur, e está sendo viável; não era viável a Venezuela fazer um satélite, e já está pago e estará pronto em 2008; não era viável o Mercosul, e está sendo viável; não era viável fazer Petrocaribe, e está sendo viável. Para eles, interessa que não haja energia para os próximos anos na região, mas, se há um gasoduto que tem ramificação para as localidades, isso vai acabar com o negócio dos grandes distribuidores de gás doméstico. Os ricos, que têm negócios, serão os grandes afetados.

Na Venezuela nos atacavam por um projeto de desenvolvimento que diziam ser faraônico: a ferrovia em nível nacional. Depois de cinco anos, já temos vários trechos, com vagões que trouxemos da China e todo o sistema ferroviário que fizemos com o Brasil, a China, e agora temos ferrovias por toda a Venezuela. Temos duas vezes mais metrô. São milhões de dólares. Fizeram-se viáveis. A quem não interessava isso? Aos oligarcas que têm muitos ônibus, velhos, sem ar-condicionado, e ficaram multimilionários com isso. Eles sempre vão dizer que não é viável!

Rose Spina é editora da revista Teoria e Debate