Nacional

Uma conferência importante em suas deliberações, mas realizada num contexto pós-Plano Plurianual, com forte ajuste fiscal e seguida por uma crise política nacional

Para o feminismo, o recente processo de conferências nacionais, mobilizadas a partir do governo Lula, veio somar-se à experiência, já histórica, de participação do movimento feminista em outras conferências de políticas públicas, particularmente nas Conferências Nacionais de Saúde. A análise das implicações e efeitos – sobre governos e sobre a sociedade civil – das catorze conferências de saúde já realizadas no Brasil afirma esses encontros como um instrumento estratégico para o processo educativo que a democracia participativa exige, sem esquecer do fato de terem se constituído, para os movimentos sociais, no mais poderoso espaço da arena política na qual se disputou a construção do SUS no Brasil.

As conferências, de saúde e outras, articulam e mobilizam distintos setores da sociedade para o debate público sobre os problemas sociais, sobre a responsabilidade do Estado e sobre os parâmetros considerados razoáveis para a ação governamental. O processo de realização tem contribuído para enraizar – nas distintas esferas de governo e nos planos locais da sociedade civil – a consciência do problema da desigualdade, afirmando o direito a ter direitos para distintos grupos populacionais. Além disso, as conferências colocam em perspectiva questões polêmicas entre os próprios movimentos, os setores empresariais e de mercado e também os governos. Trata-se de um espaço para o acordo público sobre o marco ético-político para planejamento e avaliação em políticas públicas. Em geral, as conferências discutem assuntos urgentes, para ação imediata dos governos, institucionalizam novos temas e problemas nas políticas públicas e definem diretrizes macropolíticas para sua implementação. Desse modo, cumprem mais um papel político que de gestão.

Sob a influência do pensamento e da prática política feminista na comissão organizadora e nos movimentos que se formaram para nela intervir, a I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres (I CNPM), em 2004, em Brasília, constituiu-se como um espaço público importante para debater a discriminação, opressão e exploração das mulheres no Brasil; cobrar a responsabilidade do Estado, em suas distintas esferas; e construir diretrizes para fazer avançar a ação governamental na direção da transformação das condições de vida das mulheres, da redução das desigualdades e da ampliação da justiça social.

Entretanto, as políticas para mulheres na perspectiva da igualdade de gênero inscreveram-se como questão de Estado bem antes. Isso ocorre com o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), cuja mais importante atuação se fez no processo constituinte de 1988, com resultados notáveis sobre os direitos civis e políticos das mulheres brasileiras e sobre a orientação das políticas sociais. Até a realização da I CNPM, que inclui as conferências estaduais e municipais a ela preparatórias, o que se assistiu no país foi a mais uma replicação desse mecanismo nos níveis estaduais e municipais, numa mimese bastante problemática e na maioria das vezes sem maiores conseqüências, com algumas exceções importantes. Por outro lado, ocorre uma inovação com as Coordenadorias e Secretarias da Mulher, em especial nos governos populares das administrações petistas, que, embora tenham desempenho bastante irregular e às vezes muito insatisfatório, apontam para uma maior institucionalização das políticas para as mulheres nas esferas locais de governo.

A Conferência Nacional de 2004 demarca, portanto, um novo momento nessa institucionalização, ao recolocar, em todo o país, o debate sobre o sentido e a urgência de políticas para a promoção da igualdade, ao mesmo tempo em que define, no Plano Nacional, as diretrizes que doravante passarão a nortear os debates em torno das estratégias e ações governamentais voltadas para as mulheres. Este, seu maior mérito.

No contexto das conferências e da Conferência Nacional de Políticas para Mulheres, em particular, a primeira questão que se coloca é sobre a possibilidade, ou não, de o Estado efetivar mudanças estruturais com vistas à superação das desigualdades econômicas, políticas e sociais vividas pelas mulheres em sua diversidade. Considerando que são as disputas entre os vários projetos políticos que definem, em tese, o campo das possibilidades e alcance das ações estatais – e levando em conta tanto o conjunto de forças que forma (em um dado momento histórico) a direção ou o governo como os sujeitos políticos que atuam nessa disputa a partir da sociedade civil –, tal possibilidade estará dada desde que haja uma aliança ou articulação entre os sujeitos políticos da sociedade civil que buscam as mudanças estruturais com os sujeitos, ou parte dos sujeitos, que mantêm a hegemonia do aparelho estatal. Uma difícil aliança.

Uma segunda questão desse contexto refere-se à possibilidade, ou não, de efetivar uma ação não setorial em políticas públicas. A setorialização tem sido um problema, talvez mesmo um obstáculo, à ação transformadora. Ela aparta os sujeitos sociais e suas lutas e isola as políticas sociais da política de desenvolvimento levada a cabo pelos ministérios da área econômica. É sempre necessário, por isso, afirmar que políticas públicas para mulheres não são sinônimo de meia dúzia de programas voltados para mulheres. Essa seria uma visão minimalista de tais políticas, muito ao gosto de governos descomprometidos com a transformação social ou que, limitados por ausência de recursos, reduzem os conceitos ao tamanho de suas possibilidades.

Análises feministas recentes,2 coincidem ao apontar a dissociação entre política econômica e política social, e a subordinação desta àquela, como um dos problemas a serem enfrentados pela luta feminista nas políticas públicas. As políticas para mulheres precisam ser pensadas no marco da indivisibilidade. Consideramos as políticas para mulheres como parte das políticas sociais e indissociáveis das políticas econômicas: ambas devem estar a serviço do bem-estar, da igualdade e da justiça social. E foi exatamente a idéia de “diretrizes” o caminho que permitiu ao movimento feminista avançar para além do que estava posto para a I CNPM. Garantiu as condições necessárias para que as conquistas dessa conferência, as diretrizes da política nacional para mulheres, não fiquem localizadas temporalmente na duração de um dado mandato, mas demarquem os princípios, valores e conteúdos da ação estatal com vistas à superação da desigualdade de gênero, à transformação da vida das mulheres, bem como ampliem a legitimidade do movimento feminista como sujeito político.

Nas disputas pelas diretrizes de políticas para mulheres fixou-se, na I CNPM, a proposta de um feminismo antineoliberal, anti-racista e não-homofóbico. Os princípios aprovados na conferência para nortear as políticas para mulheres consideram a igualdade e as ações afirmativas, com respeito e atenção à diversidade de situa­ções, experiências e formas de inserção social de todas as mulheres. A autonomia das mulheres foi outro princípio definido como norteador, assim como a universalidade e a participação.

Porém, o momento de realização da I CNPM, assim como de outras conferências que se seguiram, era desfavorável. Realizadas, em sua maioria, após a elaboração do Plano Plurianual 2003-2007 e tratando basicamente da dimensão social das políticas públicas, as conferências no governo Lula não reorientaram substantivamente a ação governamental nem a política de ajuste fiscal – o que termina por reduzir significativamente seus impactos de curto prazo, por força dos parcos investimentos adicionais que geraram. A Secretaria Especial de Políticas para Mulheres e o CNDM, em que pesem importantes programas e iniciativas, por exemplo, no campo legislativo, não poderiam e não puderam implementar boa parte das diretrizes da I CNPM ou traduzi-las num plano abrangente porque simplesmente não tinham recursos para tal.3

Foi também desfavorável a crise na política a partir de meados de 2005. Não só pela paralisação da chamada máquina estatal, mas, e principalmente, pelo impacto desagregador sobre o campo feminista democrático popular, que seria a base para a necessária pressão pela implementação das diretrizes nos planos estaduais e municipais, cujos contextos políticos também foram atingidos pela crise. Uma conferência importante em suas deliberações, mas realizada num contexto pós-Plano Plurianual, com forte ajuste fiscal e seguida por uma crise política nacional. Esses foram os marcos colocados para os desdobramentos.

Por fim, é importante sublinhar que estamos tratando de uma conferência realizada no limite de um Estado ainda patriarcal, racista e classista, cujo governo e Parlamento estão fortemente influenciados pelo crescente poder político do fundamentalismo religioso. Num Estado assim, os espaços públicos de participação (como as conferências) acabam se constituindo como institucionalidades paralelas: conservadas à margem e com difícil interlocução com o resto do aparato estatal. Superar esse isolamento é o desafio a ser enfrentado na II Conferência Nacional de Políticas para Mulheres (prevista para 2007), se quisermos um Estado mais democrático.

Silvia Maria Sampaio Camurça é soció­loga, educadora do SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia e atualmente integra a secretaria executiva colegiada da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB)