Nacional

A experiência de Alckmin no governo do estado o credencia para voltar a submeter os interesses do país às vontades do mercado e o realinhamento do Brasil à agenda neoliberal

O PSDB emergiu como força dirigente do liberalismo em 1989, quando Mário Covas, em seu lançamento como candidato à Presidência, pronunciou seu discurso sugestivamente intitulado “Choque de capitalismo”. Numa política que aliava a aplicação do ideário neoliberal e a truculência no trato com os movimentos sociais, o PSDB encobriu sob o verniz de uma “intelectualidade progressista”, supostamente representada por FHC, e do “patrimônio ético e humano”, pretensamente encarnado por Mário Covas, um projeto que viria a desmontar o país e o estado de São Paulo.

Pode-se argumentar que, em razão de um histórico de gestões irresponsáveis a que foram submetidas as instituições financeiras e bancárias paulistas durante largo período, as finanças estaduais estavam comprometidas. Nesse quadro crítico, a necessidade de um ajuste fiscal tornou-se obsessão, a ponto de o governo federal, também sob comando do PSDB, ancorar a estabilização da moeda mediante a perversa conjugação de câmbio sobrevalorizado e taxas de juros estratosféricas.

Os resultados nefastos dessas escolhas são amplamente conhecidos e não convém repeti-los. Queremos chamar a atenção para a omissão do governo paulista. Ao invés de defender os interesses de São Paulo, o governo Covas/Alckmin aceitou letargicamente os constrangimentos a que era submetido pelas macropolíticas econômicas implementadas pelo governo FHC. Por isso, foi em São Paulo que a ação tucana se mostrou mais devastadora. Aqui se somou uma concepção neoliberal do papel do Estado com uma submissão dos interesses de São Paulo aos do governo central de FHC.

As negociações envolvendo a transferência do Banespa para a União arrastaram-se durante longos seis anos e nesse espaço de tempo predominou a ótica fiscalista, em detrimento dos interesses de São Paulo. Esse fato se manifesta na subavaliação da instituição para efeito de privatização – sob a perspectiva de alcançar um ágio maior por ocasião do leilão de venda – e mesmo nos créditos do governo paulista a título de abatimento da dívida paulista. Originalmente, todo o valor auferido com a privatização do Banespa seria deduzido da dívida de São Paulo. No entanto, o acordo entre os governos paulista e federal, pactuado em 1999, reduziu essa estimativa para R$ 2,07 bilhões. Resultado: como a instituição foi arrematada por R$ 7,05 bilhões, São Paulo abriu mão da bagatela de R$ 4,98 bilhões em favor da União.

Outra manifestação pública da subserviência do governo paulista foi evidenciada na guerra fiscal travada entre estados para atrair investimentos privados e incentivos federais. De um lado, a passividade do governo FHC nessa questão é explicável: os governos estaduais promotores dessa autêntica guerra contra o interesse público pertenciam à sua base de sustentação, razão pela qual a União não só fez vistas grossas como também liberou créditos indecentes. De outro lado, o governo de São Paulo, o principal prejudicado, não foi além da retórica, ou seja, não ensejou um movimento de contestação, não incidiu sobre o Executivo, não operou no Congresso Nacional, nem tampouco articulou com o setor privado, enfim, não exerceu sua liderança para redefinir o pacto federativo, assistindo de braços cruzados à fuga de empresas e de novos investimentos. Na verdade, o estado de São Paulo aceitou passivamente a lógica da guerra fiscal e acabou perdendo com ela.

Tal comportamento omisso mostra a ausência de políticas de fomento do governo estadual, uma espécie de renúncia ao papel do Estado e uma apologia da auto-regulação de mercado que trouxeram gigantescos estragos à economia paulista. Os dados mais recentes indicam, por exemplo, que a taxa de desemprego na Região Metropolitana de São Paulo gira em torno de 20% da População Economicamente Ativa, o que representa mais de 1,7 milhão de desempregados. A obsessão dos governos tucanos pelo ajuste fiscal e uma desastrada política de estabilização determinaram estragos extraordinários ao setor produtivo, em detrimento também das unidades federativas subnacionais. Esse percurso foi confirmado pela adoção da “Lei Kandir”, ou ainda pela instituição do Fundo Social de Emergência, depois Fundo de Estabilização Fiscal, os quais atingiram duramente as finanças estaduais, sem que o governo paulista se pronunciasse afirmativamente sobre as perdas a que era submetido.

No entanto, a conseqüência mais nociva dessa política se deu no baixo crescimento econômico de São Paulo, com taxas abaixo da média do país, o endividamento do estado chegando a seu limite e os investimentos sociais quase nulos. Na verdade, tais problemas estruturais evidenciam a ausência de macropolíticas de desenvolvimento. No bojo da superação do paradigma autárquico de substituição de importações, no qual o Estado foi um financiador-chave, o pensamento econômico liderado pelo PSDB propugnou por um modelo que apostava todas as suas fichas na auto-regulação privada – enfim, uma ótica fiscalista à qual subjazia uma espécie de fundamentalismo de mercado. Nessas condições, seriam prescindíveis o controle social e, mais concretamente, políticas industriais, de comércio exterior e de apoio às micro e pequenas empresas. Na outra ponta dessa balança assimétrica, porém, não faltariam formas de proteção ao sistema financeiro – o principal beneficiário desse modelo anti-republicano.

O estado de São Paulo pagou um preço demasiado alto por essa sucessão de desacertos, os quais se refletiram fortemente em sua dinâmica econômica e em seu tecido social. Embora continue sendo a mais importante unidade da Federação, São Paulo subsidiou grande parte dos desatinos tucanos da era FHC.

O Programa Estadual de Desestatização (PED) criado em 1996 pelo então governador, Mário Covas, e coordenado por Geraldo Alckmin, seu vice, seguiu essa lógica. Os recursos obtidos nas diversas privatizações não se refletiram em melhorias na qualidade de vida da população, ao contrário, criou-se uma situação de desemprego elevado e aprofundou-se a precarização das relações do trabalho. A proliferação dos pedágios e os aumentos excessivos nas contas de luz são apenas dois exemplos das conseqüências desse programa, cujo verdadeiro objetivo era a transferência de lucro e riqueza para os setores privados.

Entre 1997 e 2000 foram entregues à iniciativa privada seis empresas do setor elétrico, uma de gás canalizado, dezoito unidades da Ceagesp, do transporte ferroviário, além de outras empresas e de outras concessões públicas. Em todo o período esse processo já transferiu R$ 34,4 bilhões, em valores nominais, do patrimônio público paulista, representando 51,6% da atual dívida pública. Em 2005 já atinge o montante de R$ 138 bilhões. No processo de federalização e privatização do Banespa o governo renunciou a quase R$ 5 bilhões. Na Nossa Caixa, único banco estatal paulista, o governo Alckmin vem implementando uma nova forma de privatização, criando empresas subsidiárias privadas dentro do banco e alienando parte de seu capital a grupos estrangeiros. Em outubro de 2004 foi vendida boa parte das ações da Sabesp.

O estado de São Paulo representa parcela importante da população e do PIB brasileiros, com cerca de 40 milhões de habitantes. Nele está concentrada boa parte dos centros produtivos, tecnológicos e financeiros do país. No entanto, mesmo com esse potencial econômico, seu quadro social vem passando por uma progressiva deterioração, expressa na gritante desigualdade regional.

O governo estadual tem investido apenas 3,7% do Orçamento nos últimos três anos, enquanto paga praticamente o dobro só em juros e encargos da dívida. As grandes obras da gestão Alckmin são, na verdade, ou investimentos privados de concessionários de serviços públicos, como as rodovias, ou financiamentos da iniciativa privada cuja dívida ficará sob responsabilidade dos próximos governadores, como é a obra para o aumento da calha do Rio Tietê.

O fracasso do modelo

As políticas públicas desenvolvidas pelo governo do PSDB em São Paulo tiveram ao menos duas características comuns: em primeiro lugar, de maneira geral, estiveram muito longe de atingir o princípio da universalização de direitos, distinguindo-se ainda pela baixa qualidade dos serviços prestados à população; depois, contaram com baixíssima participação e controle social tanto em sua concepção como propriamente na fase de implementação, conformando assim um paradigma, sobretudo, centralista e pouco ou quase nada participativo.

Um exemplo desse modelo pode ser comprovado no caso da energia elétrica. O processo de privatização desse setor foi comandado diretamente pela União sob os argumentos de buscar investimentos privados, instituir algum nível de competitividade e, assim supostamente, otimizar os serviços prestados. De 1994 a 2001 os aumentos de tarifas para a faixa de consumo de 31 a 100 kWh mensais somaram 342,6%, ao passo que nesse mesmo período a inflação ficou no patamar de 92,06%. O “apagão” de 2001 e o racionamento de energia imposto foram a síntese do fracasso dessa política, com conseqüências como a formação de cartéis, a baixa qualidade na prestação do serviço e tarifas aviltantes, além da inexistência de mecanismos de controle social sobre permissionários e concessionários.

A situação se repetiu, tanto na argumentação como nos resultados, com os outros setores privatizados. Da mesma forma, entregaram-se as rodovias paulistas e as telecomunicações a agências de regulação que, tal como foram concebidas, ficaram incapacitadas para exercer a fiscalização e o controle do serviço prestado. Ao contrário, tais esferas se revelaram prisioneiras dos interesses das empresas concessionárias.

O modelo de supervalorização do mercado e do sucateamento da máquina pública acabou por trazer prejuízos gravíssimos para a população em áreas que deveriam ser consideradas estratégicas. A educação, que deveria ser objeto de um investimento maior, sobretudo pelo fato de São Paulo concentrar algumas das mais expressivas instituições científicas e educacionais do país, está comprometida. Parcelas extraordinárias de crianças e jovens estão fora das escolas e a péssima qualidade do ensino continua provocando efeitos devastadores no desenvolvimento social, cultural e econômico do estado. A municipalização da educação não foi acompanhada do repasse de verbas para proporcionar a universalização da educação infantil, mas sim de um movimento de desvalorização dos Conselhos de Escola, na tentativa de esconder a falta de investimentos.

Na área da saúde, o governo Alckmin está produzindo uma situação cada vez mais paradoxal e com riscos elevados à saúde pública, não repassando o previsto por lei aos municípios. O governo estadual cada vez mais se desresponsabiliza ante a formulação de políticas públicas e a gestão do sistema. Na contramão disso, a saúde no estado de São Paulo vem sendo crescentemente financiada por recursos federais – para gestão do SUS estadual os recursos vinculados federais evoluíram de R$ 383 mil em 2003 para R$ 2,457 milhões em 2006. Enquanto isso, o governo estadual não produz nenhuma estratégia para o setor, mantendo políticas incapazes de resolver as dificuldades no acesso ao atendimento especializado, a baixa capacidade de consultas ambulatoriais, a escassez e má gestão dos leitos do SUS e a insuficiência da política de medicamentos, em decorrência de seus baixos gastos.

Na verdade, o governo de São Paulo não enfrenta os problemas. Nesses anos de gestão tucana o estado buscou sempre transferir responsabilidades. No caso da educação, repassou aos municípios essa atribuição e, no caso da saúde, a responsabilidade pela manutenção dos serviços é da União.

O déficit habitacional no estado de São Paulo é de 1,2 milhão de moradias. Deve-se acrescentar a esse número os domicílios considerados inadequados, sem infra-estrutura básica e em adensamentos urbanos excessivos. Ou seja, o déficit habitacional absoluto do Estado é de aproximadamente 3,7 milhões de moradias. Desde 2000 o governo não vem cumprindo a lei estadual que destina 1% do ICMS a moradias populares. Os recursos não aplicados já chegam a R$ 548 milhões, o que explica o fato de apenas 18% das 390 mil unidades previstas para o período de 2000 a 2004 terem sido construídas. No ano passado o governo do estado entregou apenas 14 mil unidades. Apesar de o déficit da Grande São Paulo representar 46,62% do total do estado, somente 284 das 10.455 novas moradias anunciadas recentemente pelo governador serão construídas nas cidades da Região Metropolitana de São Paulo.

Na segurança pública, a marca do governo Alckmin é a falta de investimentos nas atividades de prevenção e investigação. Prova disso é que neste ano se reduziram 26% dos recursos do orçamento desse setor, que contribuíram para o aumento da criminalidade. Foi no governo do PSDB que se registrou o crescimento do crime organizado. Nesse período surgiu o Primeiro Comando da Capital (PCC) – organização que controla os presídios paulistas, que conduziu o maior motim sincronizado da história, que expôs a população à fragilidade e à omissão do governo Alckmin frente ao crescente aumento da criminalidade.

A Febem é o maior símbolo do fracasso da forma de gestão implantada pelos tucanos. Estão sob responsabilidade do estado 19.089 adolescentes, dos quais 6.300 em regime fechado, um projeto herdado do regime militar, para o qual os doze anos de governos tucanos não produziram nenhuma política alternativa. Ao mesmo tempo em que insiste em soluções com a Febem, mostrando-se incapaz de formular uma resposta ao problema, o governo Alckmin descumpre sistematicamente o ECA. Os números comprovam essa incapacidade: de 2000 a 2005 foram 151 rebeliões, 67 tumultos, 599 fugas, com 4.327 fugitivos e 7 mortes, além de casos de estupro e tortura.

Apesar da importância econômica do agronegócio e da agricultura familiar, a dotação orçamentária da Secretaria de Agricultura teve um decréscimo nominal de 0,94% em 2006, acentuando sua trajetória de queda em relação ao Orçamento do estado – passou de 0,92% em 2002 para 0,70% em 2006. Enquanto isso, a regularização fundiária tem tido um enfoque estritamente urbano – apenas 10% dos títulos emitidos são da área rural –, a arrecadação de terras devolutas para assentamentos está quase paralisada e o Instituto de Terras do Estado de São Paulo enfrenta sérios problemas na negociação com seus funcionários e técnicos.

Desse ponto de vista, a situação não poderia ser pior. Durante os anos de gestão do PSDB, a negociação salarial é sinônimo de greve, uma vez que o governo sempre oferece reajustes baixos, que não repõem nem de longe as perdas salariais acumuladas. Foram demitidos mais de 195 mil servidores estaduais, apesar do aumento da demanda por serviços em aparelhos públicos, como na saúde e na educação. O processo de terceirização foi o maior de toda a história do Estado de São Paulo e representou a perda da qualidade da prestação dos serviços públicos. Os gastos com a terceirização, atualmente, representam quase 9% sobre a despesa total, considerando o Orçamento do estado, que tem previsão de R$ 80 bilhões para o ano de 2006.

Até mesmo a área cultural não escapou. Há algum tempo vem sendo sucateada com suas ações terceirizadas, demitindo trabalhadores, com contratos irregulares reprovados pelo Tribunal de Contas e uma blindagem do governo contra a aprovação de um fundo estadual de cultura, que contemple os produtores e as manifestações culturais no estado.

Os diagnósticos particulares de cada área evidenciam o quadro produzido pelo desmonte do Estado, nos últimos doze anos, e seu impacto sobre as políticas sociais. Um governo sem planejamento, sem controle social, sem transparência em suas ações e exclusivamente subordinado às demandas do mercado.

A passividade e a submissão

O ex-governador de São Paulo, num seminário em fevereiro deste ano na Casa das Garças – reduto neoliberal e porta-voz da direita econômica –, demonstrou a obsessão tucana em satisfazer o mercado ao apresentar uma série de gráficos cujo denominador comum e núcleo definitivo é o ajuste fiscal. Para o PSDB, o papel do governante resume-se a regularizar as finanças da máquina pública, nem que para isso tenha de impor sacrifícios, desmantelar o Estado e precarizar as relações de trabalho e de produção. Eis o resultado e a síntese desses doze anos de governo tucano no estado de São Paulo. E é isso que está sendo apresentado como a base conceitual para a construção do programa de governo de Geraldo Alckmin.

Não seria de todo errado supor que a escolha do governador de São Paulo, com seu perfil de direita e conservador, tenha se dado em função de que o programa a ser defendido na campanha eleitoral será também um programa cujo núcleo é o que eles chamam de “choque de gestão”. Já existem condições de averiguar quais são os principais pontos desse “choque”. “Reforma trabalhista radical, com corte de encargos e direitos; privatização de todos os bancos estaduais; fusão dos Ministérios da Agricultura e do Desenvolvimento Agrário; adoção da política do déficit nominal zero; redução de despesas constitucionalmente obrigatórias em áreas como saúde e educação; menor peso ao Mercosul e retomada das negociações da Área de Livre Comércio das Américas (Alca): essas são algumas das idéias defendidas pelo grupo que vem se reunindo com Alckmin, com o objetivo de desenhar o esboço de um eventual programa de governo”, aponta um levantamento feito por Marco Aurélio Weissheimer, da Agência Carta Maior. Em entrevista concedida ao jornal O Globo (15 de janeiro de 2006), ao ser indagado se pretendia retomar a política de privatizações implementada pelo governo FHC, Alckmin respondeu positivamente e citou os bancos estaduais entre suas prioridades. “A maioria já foi privatizada, mas deveriam ser todos. Tem muita coisa que pode avançar. Susep, sistema de seguros, tem muita coisa que se pode privatizar”, respondeu. Perguntado se os Correios estariam nessa lista de empresas privatizáveis, o governador paulista foi mais cauteloso, mas não descartou a possibilidade.

E nada mais adequado para a implantação desse programa do que um político que se notabilizou por se apresentar como um gerente. A passividade política é condição necessária para a retomada e para a radicalização do neoliberalismo em um país como o Brasil. A experiência de Alckmin no governo de São Paulo o credencia para se apresentar como uma liderança adequada para voltar a submeter os interesses do país às vontades do mercado e para o realinhamento do Brasil à agenda neoliberal.

A disputa eleitoral deste ano será decidida nesta dimensão: entre aqueles que desejam continuar trilhando o caminho da soberania, do desenvolvimento e da justiça social e aqueles que viram seus objetivos sendo interrompidos pelo governo Lula e desejam retornar ao caminho da estagnação, da injustiça e da submissão total às necessidades do mercado e aos interesses privados.

Referências:

Resolução do 16º Encontro Estadual do PT São Paulo

Programa de Governo Estadual do PT – 2002 (www.pt-sp.org.br)

Dossiê Desmonte Tucano 1: A privatização do estado de São Paulo, de Eduardo Marques e José Alex Rego Soares (www.ptalesp.org.br)

Paulo Frateschi é presidente estadual do PT de São Paulo