Sociedade

Nenhum evento envolve porções tão grandes da humanidade com tanta intensidade como a Copa do Mundo, igualmente haitianos famintos e alemães saudáveis, italianos de ultradireita e esquerdistas franceses

Dois tempos de 45, 11 contra 11, 64 vezes. Trinta e dois oponentes. Milhares de espectadores nos estádios, bilhões pela TV. Cinco semanas a cada quatro anos.

A Copa do Mundo é um evento como poucos – não, como nenhum outro na história contemporânea. Nada envolve porções tão grandes da humanidade com tanta intensidade. O calendário mundial tem suas convenções – Natal, Ano-Novo, Ramadã, Hosh Hashanah, Carnaval, Ação de Graças. Algumas, respeitamos por convicção. Outras, por hábito ou pelo contexto em que nos encontramos – quantos comemoram o Natal apenas porque é festa na empresa, entre amigos, na família? De um jeito ou de outro, há diferenças que se impõem e mobilizações desencontradas – o Ano-Novo não é o mesmo em toda parte... Não é o caso da Copa do Mundo.

Cristãos, muçulmanos, judeus e budistas, ateus e esoteristas, neoliberais e comunistas, banqueiros e operários, poetas e economistas, europeus e africanos, roqueiros e sambistas, publicitários e agricultores, mineradores e ecoativistas, fumantes e vegetarianistas, vastos contingentes de quase todos os segmentos identificáveis sobre a Terra param para ver um torneio de futebol.

Para alguns, isso é sinal dos tempos de degeneração. Ou um pretexto imbecil para abrirmos mão das preocupações e atividades que realmente importam; um subterfúgio dos poderosos para desmobilizar as massas, diluir a indignação com a vida “real” e afrouxar as fibras da nossa resistência.

Será?

A seguir comento dois momentos marcantes do futebol nestes primeiros anos do século 21. O primeiro, que só acompanhei pela TV, é um exemplo impressionante do fascínio que a seleção brasileira de futebol exerce fora do Brasil (ultimamente, mais fora do que dentro). O segundo eu vivi intensamente – a própria Copa do Mundo, tão decepcionante para os brasileiros de nascimento e os brasileiros honorários espalhados pelo mundo. Um evento marcante e surpreendente por mobilizar esforços tão gigantescos por causa e em torno de um mero jogo de futebol – ao mesmo tempo em que é muito mais que futebol.

Primeiro tempo: “E depois morrer”

“Esse é o mais belo presente que já recebi nesta vida.”

O jovem – vinte e muitos ou trinta e poucos anos – haitiano faz aniversário no dia em que a seleção brasileira vai jogar na capital de seu país e acaba de comprar seus ingressos. Operação difícil, arriscada, com grande potencial de fracasso, mas ele triunfa. Assistindo ao documentário O Dia em Que o Brasil Esteve Aqui, não sei se choro de compaixão (pelo tamanho da expectativa dele e a imensa frustração de quem vai ficar de fora) ou regozijo (com o êxtase de quem conseguiu).

Desejados como um prato de comida – metáfora gasta sobre como um jogador deve ir à bola, mas descrição literal de como as camisas distribuídas pelos soldados brasileiros foram disputadas pelos haitianos famintos –, os ingressos são um presente inestimável para dezenas de milhares deles, e é comovente a capacidade do futebol de produzir alegria.

Segundo um torcedor (ou “fã”, palavra usada normalmente em outros idiomas que se aplica perfeitamente aqui), há um ditado popular no Haiti: “Ver o Brasil jogar e depois morrer”. Outro ainda se ressente do fato de nunca ter visto o Haiti na Copa (“Isso me dói”), mas o país celebra o Brasil como se fosse seu. As ruas da capital ficaram lotadas quando conquistamos a Copa América – bandeiras do Brasil e festa, muita festa, para a “nossa seleção”.

Não foi à toa que o presidente do país disse, por ocasião do envio de tropas para a “Força de Paz” da ONU: “Em vez de mandar soldados, melhor seria que o Brasil mandasse jogadores”. Mas um intelectual haitiano vê o amor com amargura: “O poder suave (“soft power”, no original) desta paixão é mais perigoso do que o poder duro das armas”. Mais perigoso por quê? Em 98, foi especialmente marcante para mim a imagem de um menino paquistanês chorando convulsivamente em uma rua qualquer de Islamabad, arrasado com a derrota do Brasil na final da Copa. Não consta que o Paquistão esteja mais submisso aos interesses brasileiros por causa da paixão de seus cidadãos por nosso futebol. Nem que a população do Haiti tenha sofrido mais com os males que a afligem por gostar de ver o Brasil jogar, ou que estivesse mais na iminência de resolver seus problemas se não gostasse. Enfim, o Brasil jogou em Porto Príncipe, fez seis gols, mas o goleiro terá até o fim da vida (ele o diz) orgulho de sua defesa corajosa, atirando-se aos pés de Ronaldo, retratada com destaque nos jornais do dia seguinte. E quem viu Ronaldinho desfilando habilidade e presença de espírito por aquele campo forrado à última hora de grama artificial poderá morrer em paz. (Quem dera morrer lá não fosse tão fácil e tão pouco pacífico; quem dera a paz fosse duradoura e sem tantas mortes. Mas o futebol já foi responsável por mais de um cessar-fogo.)

Intervalo: “Does football rule the world?

Foi esse o tema de um Congresso Internacional de Parlamentares realizado em Berlim no mês de maio deste ano pela Fundação Friedrich Ebert, ligada ao Partido Social-Democrata alemão (mas financiada diretamente pelo governo, como as demais fundações). A idéia era discutir o impacto do futebol e de um grande evento como a Copa na política, economia e sociedade de modo geral.

Rule” pode ser traduzido como dominar, reger, determinar. “O Futebol rege o mundo?” “Sim”, responde com seriedade fingida o ministro do Interior da Alemanha, Wolfgang Schäuble. Depois fala sério de verdade: “Não... Mas faz sua contribuição para que (o mundo) seja melhor”. E futebol e cinema se encontram outra vez (embora levem a fama de andar sempre meio distantes um do outro): o “Milagre de Berna”, retratado em filme recém-lançado, foi citado inúmeras vezes por palestrantes como um marco na história do país. Nove anos depois do fim da Segunda Guerra, o fato de serem campeões do mundo equivaleu a reabilitarem-se como nação. A reabilitar as próprias palavras “nação” e “nacional”. Como já escrevi na Folha de S.Paulo, “o povo alemão pôde se sentir reconfortado e esperançoso na sua capacidade de construir em vez de destruir, na possibilidade de ser festejado, e não desprezado”.

O ministro ousou dizer também (e assumiu que era ousadia) que a revolução húngara de 1956 também guardou uma relação com a derrota da “imbatível” Hungria naquela final. O que é um perigo, porque sugere que a revolta contra a opressão poderia não ter acontecido caso o povo se contentasse com o título... Quem sabe o orgulho do time não teria precipitado a coragem para reagir, e a revolução teria acontecido antes? Em se tratando de especulação, pode-se cogitar tanto uma tendência quanto a outra.

É fato indiscutível que governantes (e não apenas eles) procuram se apropriar das conquistas esportivas. O que é discutível é o quanto são bem-sucedidos. Os brasileiros que desconheciam, não acreditavam ou aprovavam os crimes cometidos pela ditadura militar continuaram inertes durante e depois da Copa de 70; os inconformados, rebeldes e engajados continuaram na luta. Nenhum brasileiro jamais atribuiu a conquista do Tri ao presidente Médici... Na Argentina, onde a Junta Militar de fato agiu para facilitar a realização da Copa e a conquista do título em 1978, o general Videla também não ficou com as láureas pela conquista.

A respeito desse assunto, Ezequiel Moores, jornalista argentino que trabalha para a agência italiana Ansa e também palestrou no evento, conta: “Havia pessoas com capuz na cabeça e correntes nos pés, a 700 metros de distância de onde a Argentina jogava. Uma vergonha, um horror. Mas elas contam que, quando ouviam a comemoração de um gol, tinham um minuto de alívio. Eu fui contra a Copa; deixei de ser... O regime militar ganhou respaldo depois da vitória? Não. A população continuou desgostosa com o governo”.

O ministro Schäuble compartilha da preocupação com possíveis abusos na relação (inevitável e nem sempre indesejável) entre política e futebol: “Ele é bonito demais para ser explorado para finalidades escusas... Se as virtudes de integração social fossem incorporadas à política, isso, sim, seria desejável. O trabalho em equipe; a disciplina, a lealdade, a disposição para agir e seguir as regras que precisamos ter em uma sociedade livre”.

Segundo tempo: “A time to make friends

Como vários palestrantes afirmaram no Congresso em Berlim, “fazer amigos” era a principal preocupação dos organizadores da Copa de 2006. Enquanto não tinham grandes ambições para sua seleção (que mais uma vez os surpreendeu favoravelmente), nutriam outras expectativas. “Não a de demonstrar para o mundo como somos bons organizadores, mas sim expressar gratidão pela reunificação alemã”, disse Peter Struck, líder do Partido Social-Democrata no Parlamento. “Nós devemos a reunificação aos amigos internacionais que se dispuseram a dar uma chance para a Alemanha. Que nos deram a chance de nos provarmos um país democrático, que respeita a integridade humana”, continuou. “Claro que queremos que a Copa seja a mais organizada possível, mas queremos ainda mais mostrar que as pessoas na Alemanha podem ser boas amigas.”

Os dois objetivos foram plenamente conquistados. Não é possível organizar nada dessa magnitude sem que haja problemas, mas a incidência deles foi impressionantemente pequena. Houve, por exemplo, um choque entre alemães e ingleses nas ruas de Stuttgart, com cadeiras arremessadas e tumulto generalizado. Mas quem acompanhou o comportamento de boa parte da torcida inglesa sabe o quanto um tumulto é pouco perto do que poderia ter acontecido... (Um episódio pequeno mas exemplar: no hotel em que fiquei hospedada em Bad Soden, balneário sossegadíssimo nos arredores de Frankfurt, havia seis ou sete ingleses, com idade entre 30 e 50 anos. Depois de alguns copos de cerveja na madrugada, depredaram o banheiro do hotel. Por nada.)

Mas mesmo com todo o cuidado, todo o rigor necessário diante de um número incontável de ameaças, havia uma flexibilidade, uma disposição para negociar e analisar caso a caso. Mais de uma vez a equipe da ESPN-Brasil, da qual fiz parte, chegava de improviso a uma  praça pública e montava uma estrutura com potencial para certo grau de confusão: uma trave de gol. Nunca fomos impedidos de fazê-lo. No máximo, o segurança consultava algum superior que invariavelmente  permitia, estabelecendo apenas um limite de tempo. Descobrimos uma norma informal que é o contrário da que normalmente vigora no Brasil: não havendo uma proibição explícita para o que se pretende fazer,  presume-se que é permitido. E eles é que são rígidos...

Além dos estádios maravilhosos, da infra-estrutura impressionante (o alcance e a eficiência do transporte coletivo chegam a ser deprimentes, pela distância que nos separa desse patamar), havia um clima caloroso e feliz. Um sentimento de prazer  apenas por estar ali que passava muito longe da competitividade acirrada que muitas vezes extrapola o jogo e se transforma em batalha real, quase em guerra entre facções – da qual o futebol deveria ser metáfora ou mesmo antídoto. Nas ruas das cidades, visitantes do mundo todo gostavam de reconhecer uns nos outros o gosto pelo mesmo esporte, e as áreas públicas reservadas para a exibição dos jogos em telões eram a realização do sonho de muitos: multidões reunidas em torno de um interesse; torcedores de países e times diferentes comemorando alternadamente, sem que a tristeza de um transforme a alegria do outro em perigo.

Enquanto esteve no páreo, o Brasil foi o maior catalisador de admiração e carinho, na Alemanha como no Haiti. Mas se a admiração dos últimos é compreensível – somos o “transporte coletivo organizado” do futebol deles – a adoração dos alemães é mais surpreendente. Eles também fazem parte da elite; também colecionam títulos. Mas nos admiram humildemente. E deram incrível demonstração dessa mesma humildade com a alegria e orgulho com que comemoram o terceiro lugar na Copa – diante do Portão de Brandemburgo, cenário de conquistas bélicas mas também de júbilo pacifista (como esquecer a festa da derrubada do Muro?), centenas de milhares de pessoas (falou-se em 1 milhão) homenagearam os jogadores.

Essa alegria quase inexplicável iguala haitianos famintos a alemães saudáveis; italianos de ultradireita a esquerdistas franceses. Mais que o Natal, mais que o Ano-Novo. Quem dera houvesse outros denominadores comuns; quem dera alguns extremos jamais existissem, e ninguém perdesse de goleada em itens como liberdade e desenvolvimento, não houvesse tanta distância no ranking da garantia de direitos. Mas não é o futebol que faz mal, muito menos a alegria é o que agrava o quadro. Alegria faz bem, faz o mundo rodar mais bonito. Fim da Copa, fim de jogo, continuamos perseguindo outras conquistas, enquanto nos distraímos aqui e ali com mais uma partida.

Soninha Francine é jornalista, vereadora pelo PT em São Paulo e integra o Conselho de Redação de Teoria e Debate