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No PT ainda não havíamos enfrentado a necessidade de fazer um diagnóstico profundo das doenças que minaram sua saúde ideológica e política nem de ter de receitar remédios que, mesmo amargos, podem salvá-lo

As inflexões conjunturais, apontando a recuperação dos índices de preferência eleitoral de Lula e do próprio PT, a partir do início de 2006, parecem estar enfraquecendo a decisão, do PT e de seus membros no governo, de exercitarem a autocrítica sobre as razões que nos levaram a mergulhar na maior crise política da história petista.

Embalados pela sensação de que o pior já passou, alguns companheiros, a exemplo do ex-ministro-chefe da Casa Civil e ex-presidente do PT, José Dirceu, continuam dizendo que a crise se deve apenas à decisão do PFL e do PSDB de destruir o PT, desestabilizar o governo e impedir a reeleição de Lula, através da vitimização de algumas altas lideranças partidárias. Afirmam que jamais teriam sido coniventes com ações ilícitas, nem haveria prova alguma de que o governo e ministros hajam participado de atos de corrupção. A questão do caixa dois no PT, um exemplo claro da hipocrisia dos partidos da burguesia, estaria resolvida, pelo partido estar respondendo por isso na Justiça.

Também afirmam que, não havendo nenhuma prova que incrimine tais lideranças, o PT não poderia ter sido tão tímido em enfrentar a crise. Poderia ter mobilizado a militância e a opinião pública para enfrentarem a ofensiva do PSDB e do PFL, em vez de adotado a estratégia de desmobilizar a si e à sua base social e de fugir do debate político e ideológico. A única coisa que atenuaria essa postura do PT é que ele e o governo foram abatidos por uma verdadeira tragédia, que causou choque, perplexidade e decepção na militância.

Esses dirigentes e ex-dirigentes reconhecem haver pecado pelo conservadorismo quando se encontravam na direção do PT, não tendo travado o debate político e ideológico com a direita nem mobilizado a sociedade para esse debate. Apesar disso, reiteram que sua política de alianças estava correta, por causa da correlação de forças desfavorável na Câmara e no país, e por não haverem feito aliança com base em nada ilícito. Apenas sugerem que, nesse aspecto, seu erro teria sido não consolidar a aliança com o PMDB.

Para eles, se o PT não tiver, em 2006, a mesma votação de 2002, isso nada terá a ver com os problemas e a crise que envolveram o partido e o governo. O fundamental agora seria conformar um núcleo para dirigir o processo político-eleitoral e conduzir o governo, assim como aproveitar as condições ainda favoráveis para eleger governadores e reeleger Lula. O resto seria passado.

Essa avaliação da crise, de suas conseqüências imediatas e futuras, e de ausência de uma autocrítica séria, pode eventualmente deixar que algumas consciências durmam o sono dos desavisados. Mas ela é extremamente perigosa para um partido político como o PT, a não ser que a militância petista tenha decidido mudar sua natureza.

A crise ainda não passou

Esses companheiros parecem não se dar conta de que a crise ainda não passou. Há demonstrações cabais de que a direita, tendo à frente o PSDB e o PFL, está travando uma guerra de longa duração contra o PT e o governo popular. Temos os acontecimentos envolvendo o ex-ministro Palocci. Temos ainda as ações continuadas, políticas e judiciais, que visam demonstrar que o PT se deixou envolver por uma quadrilha, que praticava não apenas o caixa dois, mas também fazia tráfico de influência e outras atividades delinqüentes. Só isso já seria suficiente para mostrar que a frigideira anti-PT continuará fervendo.

É verdade que a direita fracassou em sua expectativa desesperada de impor uma batalha decisiva, ao PT e a Lula, antes das eleições de 2006. Também é verdade que ela depositou novas esperanças em travar tal batalha em outubro deste ano, mas a inesperada recuperação de Lula e do PT tornou muito problemático o resultado das próximas eleições presidenciais. Diante dessa indefinição, ela agora trabalha, na pior das hipóteses, com a meta de tornar o segundo mandato de Lula um inferno e reaver o governo em 2010.

Nessas condições, considerando que a direita possui uma base econômica e social que não foi quebrada, e detém enormes recursos materiais e humanos para jogar em combate, é conveniente e plausível, para o PT, supor que o pior ainda não passou. Está por vir. E, se o PT e o governo não tirarem todas as lições da crise e mantiverem sua avaliação nos limites da política de alianças, correm o perigo de sair destroçados dessa guerra.

Os companheiros otimistas também parecem não avaliar em toda a extensão sua própria conclusão de que uma tragédia se abateu sobre nós. Se isso é verdade, e se uma tragédia do mesmo tipo pode se abater novamente sobre o PT, não se deve, nem se deverá, apenas ao desejo do inimigo em nos derrotar ou destruir. Em política, como em quase tudo, não basta o desejo, ou a vontade. É preciso que haja determinadas condições que permitam, ou facilitem, a materialização desse desejo ou vontade.

A pergunta que não cala

O que devemos nos perguntar é: que condições eram essas que permitiram, ao PSDB e ao PFL, com toda a sua hipocrisia, enrolados em mil e uma falcatruas, aparentemente sem moral alguma para atacar quem quer que seja, carimbar o PT como um partido corrupto e o governo Lula como o mais corrupto da história? Por que nossos parlamentares, calejados de inúmeras batalhas contra as injustiças e as imoralidades dos representantes políticos da burguesia, não tiveram voz para questionar com que moral os ACMs, e outros conhecidos traficantes de votos e favores, atacavam o PT pelos desvios de alguns de seus dirigentes?

Responder a isso é essencial. Não podemos nos contentar com o fato de que, apesar de todo o bombardeio sofrido, Lula está bem cotado para a reeleição, e o PT permanece como o partido de maior preferência popular. Precisamos levar em conta que muitos daqueles que conti­nuam apostando no PT e em Lula não mais o fazem positivamente. O fazem negativamente, porque acham que a alternativa é pior, podendo trazer de volta a marca dos oito anos desastrosos de FHC. Ou um aventureiro, embalado pelos ventos de uma terceira via. Desdenhar essa situação, ou considerar que ela é momentânea, significa desconsiderar que a tragédia que se abateu sobre o PT deixou um espinho venenoso encravado em seu corpo.

O PT já não é considerado diferente dos demais, por grandes parcelas da população. Já não é tido como defensor intransigente dos pobres e da justiça, como antigamente. Já não combateria a corrupção, como fazia. E teria mudado para pior. Esse espinho da desconfiança sobre a natureza petista, se não for devidamente extraído, pode apodrecer paulatinamente o partido. Pode desagregá-lo ou transformá-lo em seu contrário, inviabilizando-o para enfrentar os desafios futuros, ainda mais diante dos planos de guerra de longa duração da direita.

Assim, retornando à pergunta que não cala: se ninguém, no PT e no governo, participou de nenhuma ação corrupta; se o caso Waldomiro Diniz aconteceu no governo Garotinho, não no governo Lula; se não havia provas contra ninguém no PT e no governo, apesar das intensas investigações, como é que a oposição direitista conseguiu montar uma crise de tal envergadura, quase paralisando o governo e deixando inertes o PT e sua antiga direção? Como, diante de uma pretensa farsa monumental, e apesar da convocação para o PT mobilizar suas bases sociais e enfrentá-la, a bancada parlamentar e a antiga direção petista ficaram totalmente acuadas e a militância paralisada?

Responder a isso com o argumento da tragédia que se abateu sobre a militância petista, tornando-a perplexa e decepcionada, portanto incapaz de enfrentar a ofensiva política e ideológica da direita, é o mesmo que explicar a tragédia pelas suas conseqüências, não pelas suas causas, o que é um absurdo. Na verdade, é preciso reconhecer francamente que a direita detectou indícios fortes de que alguns dirigentes petistas estavam traficando influência, em articulação com, ou além das alianças espúrias relacionadas com caixa dois. E, diante de uma oportunidade desse tipo, a direita não seria direita se a deixasse passar, se não a aproveitasse, tanto para golpear tais dirigentes quanto para desestabilizar o governo e destruir o PT.

PT, a vítima principal

Não adianta, pois, clamar que se trata de um festival de hipocrisia, Ou que caixa dois e corrupção sempre foram marcas dos partidos e governos da burguesia. O PT, ou alguns de seus dirigentes, não tinham, e não têm, por seus valores ideológicos, por sua história, por seus compromissos e promessas, o direito de fazer igual, de imitá-los. Para os petistas, isso não pode ser apenas uma questão de legalidade ou ilegalidade, ou de moralidade ou imoralidade. É, acima de tudo, uma questão política e ideológica. Ao transgredi-la, alguns dirigentes abriram flancos enormes nas defesas do PT, permitindo os ataques da direita. No limite, fizeram o partido passar a ser considerado igual a todos os demais, o que é uma tragédia inominável.

Numa situação dessas, e diante de uma tragédia de tal monta, qual o papel político de seus principais dirigentes, mesmo que não houvessem praticado as irregularidades ou as delinqüências de que eram acusados? Eles tinham de considerar que o centro da defesa era, como continua sendo, não sua figura, sua personalidade, sua honra, mas o PT, o coletivo, a militância. O PT era e é a principal vítima da ofensiva da direita, não qualquer dos dirigentes, individualmente envolvidos.

Assim, para esvaziar tal ofensiva contra o PT, esses dirigentes deveriam ter se afastado voluntária e imediatamente de seus postos, solicitado uma investigação interna profunda e completa, e assumido a responsabilidade política pela crise. Essa era a condição prévia para esvaziar os ataques da direita e possibilitar ao PT mobilizar-se e enfrentar a ofensiva política e ideológica do PSDB e PFL. Não foi isso, porém, o que tais dirigentes fizeram. Eles não só se recusaram a admitir a crise e sua responsabilidade como criaram todo tipo de dificuldade para impedir as investigações internas, a pretexto de que os processos externos ao PT não haviam sido concluídos.

A situação que tentaram forçar o PT a aceitar é tão absurda que, para ser coerentes com ela, agora deveriam aceitar o afastamento, tanto dos deputados petistas cassados quanto dos dirigentes e militantes denunciados pelas CPIs. Na prática, eles propiciaram que a palavra final sobre os casos fosse dada pelos representantes da burguesia no Congresso, deixando o PT com a pecha de não tomar medidas contra seus membros, quando estes cometem irregularidades. Esqueceram que o argumento de que os outros partidos fazem o mesmo só seria válido se o PT fosse igual a eles.

Portanto, ao contrário do que pensam esses companheiros, a crise não pode ser explicada pela disposição da direita, do mesmo modo que a tragédia não pode ser explicada pela própria tragédia. E, se a atual direção do PT permanecer enredada nesses argumentos, ela certamente não ajudará o PT a acertar suas contas com as causas que permitiram à direita tal ofensiva. Desse modo, não preparará a militância para as próximas batalhas que lhe serão impostas, nem para evitar ou enfrentar novas tragédias. Em política, como em tudo mais, é sempre melhor estar preparado para o pior.

Autocrítica e momento atual

É evidente que a reorganização da direção do PT e da própria militância petista é essencial neste momento, seja para conduzir a ação do governo, seja para enfrentar a batalha política e ideológica em que já se transformaram as eleições de 2006. Esses aspectos táticos ganharam dimensão estratégica, por jogarem papel decisivo no futuro do governo popular, do PT, e da esquerda como um todo, apesar de uma parte dela não ter consciência disso.

Uma derrota eleitoral para a direita, em outubro, teria conseqüências negativas de longa duração, tanto sobre os avanços econômicos, sociais e políticos, internos e externos, alcançados pelo governo Lula nestes quase quatro anos de mandato quanto sobre a atual tendência de vitórias da esquerda na América Latina. Portanto, garantir a reeleição de Lula deve tornar-se o centro das preocupações do PT e de seus aliados de esquerda e de centro. O que demandará esforços concentrados para elaborar um novo programa de governo, uma política de alianças articulada a esse programa e a adoção de métodos adequados de campanha e de organização.

Nessas condições, a avaliação profunda da crise terá de ser postergada. Ela exige um processo intenso, de elaboração, discussão e busca da verdade. Na história do PT ainda não havíamos enfrentado a necessidade de realizar um diagnóstico em profundidade das doenças que minaram sua saúde ideológica (aqui incluída a ética) e política nem de ter de receitar os remédios, mesmo amargos, que podem evitar sua morte e salvá-lo.

Para uma avaliação desse tipo não bastará reconhecer o conservadorismo político, ou outros erros ideológicos e políticos, praticados pela antiga direção. Também não bastará convocar um ou dois congressos. Nem apenas realizar um debate pela imprensa do partido. É essencial esclarecer em que consistiu tal conservadorismo. Determinar em que se fundamentava a interpretação sobre a correlação desfavorável de forças sociais e políticas no país e nas instituições parlamentares. Esclarecer por que teria sido errado não consolidar a aliança com o PMDB. Ou aliar-se ao PSDB, como sugeriam outros companheiros. Deixar claro por que foi posta de lado a sugestão de acertar as contas com a destruição praticada pelo governo FHC no país. E por que a direção e a própria militância do PT aceitaram tão tranqüilamente a utilização de métodos de propaganda e de arrecadação de fundos próprios dos partidos burgueses, abandonando o instrumento e a marca da mobilização da militância como principais.

É fundamental, ainda, esclarecer as questões concretas que um governo democrático e popular enfrenta no contexto de uma realidade política e jurídica imposta pelas classes dominantes para perpetuar sua hegemonia e seu domínio. Responder como fazer a reforma política; como obter recursos para os investimentos estatais, de caráter produtivo e social; como definir as políticas de juros e de inflação; e como resolver o problema da dívida pública. Determinar as táticas para enfrentar os desequilíbrios entre as rentabilidades dos setores financeiro, industrial e agrícola, e entre as rentabilidades das corporações empresariais e das médias, pequenas e microempresas. E para solucionar os problemas de desemprego, redistribuição da renda, moradia, saúde e educação, todos eles relacionados com a violência que grassa nas grandes e médias cidades brasileiras, e também no campo.

Essa pauta mínima para a avaliação da crise não pode ser debatida no curto espaço de alguns meses, ainda mais tendo pela frente uma tarefa tão fundamental como a reeleição de Lula, e a eleição de vários governadores e de uma bancada expressiva de deputados e senadores. O problema com que defrontamos, para conquistar resultados favoráveis nas eleições de outubro de 2006, consiste em que essa tarefa não avançará como deve se, ao mesmo tempo, não houver um acordo mínimo sobre a avaliação da crise e da tragédia que se abateram sobre o PT.

Se alguns companheiros que tiveram responsabilidade e envolvimento direto naqueles acontecimentos continuarem proclamando aos quatro ventos que nada devem, dando sua própria versão canhestra sobre o que ocorreu, e falando ou dando a entender que falam em nome do PT em quaisquer circunstâncias, estarão fornecendo munição pesada para que a direita nos ataque. Seria conveniente que eles se munissem de um mínimo de espírito autocrítico. E se convencessem de que sua contribuição, para a recuperação e a vitória eleitoral do PT, está condicionada pelo fato de que eles são hoje os pontos e os alvos mais fracos e vulneráveis de nosso partido. Sejam ou não inocentes.

Wladimir Pomar é presidente do Instituto de Cooperação Internacional (Icooi) e membro do Conselho de Redação de Teoria e Debate