Cultura

Um diálogo cultural que vem se dando nos mais diversos cantos do país

Fortalecer entidades comunitárias que trabalhem na área cultural, com foco na preservação, história e recriação de manifestações populares genuinamente brasileiras. Esse é, resumidamente, o objetivo dos Pontos de Cultura, que integram o Programa Cultura Viva do Ministério da Cultura. Em todo o Brasil, já foram conveniadas 440 entidades. Cada uma delas pode receber até R$ 185 mil num período de três anos, além de equipamentos, apoio e incentivos.

Um fator importante na implantação dos Pontos de Cultura é a mediação na relação entre Estado e sociedade, por meio do reconhecimento e da agregação de agentes culturais e mestres do saber “que articulam e impulsionam um conjunto de ações em suas comunidades, e destas entre si” – ações nas rádios e TVs comunitárias, terreiros de candomblé, associações de hip-hop, de maracatu, capoeira, de contadores de histórias, cultura indígena e tantos outros pontos espalhados por todos os cantos do país.

Na clara e abrangente definição do ministro da Cultura, Gilberto Gil, os Pontos de Cultura são “espaços de abertura para a criatividade popular e para as novas linguagens (...), para a ousadia e a aventura (...) espaços da memória e da invenção”. Como eles são numerosos, representando muitas realidades diferentes, optamos, para esta reportagem, por dar voz a alguns deles em registros diversos. É uma forma de transmitir, mesmo que tenuemente, um pouco desse grande diálogo cultural que vem se formando nos múltiplos brasis dos becos, aldeias e quebradas, das praças, centros e periferias.

São eles: o Centro Integrado de Desenvolvimento Social (Cids) de Vargem Grande (RJ), ligado ao reforço escolar, mas também a oficinas de informática, áudio e vídeo; a Fábrica do Futuro, de Cataguases (MG), cujo trabalho envolve jovens, televisão e informática; o Cinema de Animação, de Olinda (PE), que prepara com seus alunos um longa-metragem baseado nas gravuras de cordel; a Biblioteca do Fórum Social Mundial, criada no espaço do famoso encontro de jovens ativistas por um mundo globalizado, mas sem dominadores; e a Associação Piauiense de Hip Hop, que abriga o Movimento Nacional de Hip-Hop e tem um programa de distribuição comunitária de livros (mais informações: http://www.cultura.gov.br/index.php).

Cids de Vargem Grande (RJ)
http://www.cids.telemidia.puc-rio.br

O Centro Integrado de Desenvolvimento Social (Cids) de Vargem Grande começou há quinze anos, em 1991, com o objetivo de integrar a escola pública e a família, a comunidade e o mundo do trabalho. A idéia era montar um centro voltado para o reforço escolar de crianças e adolescentes num local nem rural, nem urbano. Vargem Grande, comunidade até pouco tempo atrás agrícola que fica a uma hora e meia do centro do Rio de Janeiro, prestou-se perfeitamente à empreitada. A carência lá era grande – muito por conta da especulação imobiliária, que tirou dos agricultores sua fonte de renda. Ficaram sem trabalho e sem sustento, originando um tecido de comunidades de baixa infra-estrutura e baixo poder aquisitivo.

Mas foi justamente essa origem diferenciada que possibilitou um trabalho que dialogasse com outras comunidades. Com a ausência de tráfico de drogas e, conseqüentemente, de rivalidades entre comandos que impediriam intercâmbios, o Cids tornou-se uma referência importante na região. “É como se fosse a Suíça”, diz Luiz Fernando Gomes Soares, professor de informática da PUC do Rio e um dos fundadores e principais coordenadores do Cids.

O terreno foi cedido por frei Gaspar, com a condição de que “fizessem um bom trabalho”. E o bom trabalho foi feito: desde que o Cids se instalou em Vargem Grande a porcentagem de crianças na escola pública subiu de 30% para 100%. Atualmente 180 crianças e jovens, entre 4 e 20 anos, passam diariamente pelo Cids, onde têm duas horas de reforço escolar e pelo menos duas horas entre esporte (foram campeões brasileiros de aeróbica) e cursos profissionalizantes – como de edição de áudio, de vídeo, de informática –, com professores como o antropólogo Hermano Vianna e o produtor Chico Neves, entre outros.

Como ressalta Luiz Fernando, “o forte nosso é não deixar as crianças irem para a rua”. O trabalho é voluntário, feito, no começo, por professores e profissionais das áreas de humanas e informática. Hoje quem dá as aulas são alunos formados no próprio Cids, motivo de orgulho compreensível para seus fundadores, que buscam auto-suficiência para o futuro – além da verba que recebem todo mês (cerca de R$ 5 mil) do Ministério da Cultura, uma fonte de renda importante vem da ONG alemã Fundação João XXIII.

Outro motivo de orgulho do Cids de Vargem Grande é seu estúdio multimídia, montado com os melhores equipamentos do mercado, graças a doações de empresas e da PUC-Rio. É utilizado por todas as comunidades vizinhas – recentemente os jovens que tocam o estúdio gravaram um CD de uma banda de reggae de Belford Roxo, Maria Preta. A biblioteca, “que não é muito boa”, ainda assim é a melhor da região. O próximo objetivo é que fique aberta 24 horas por dia, com acesso à internet.

Baseado em entrevista com Luiz Fernando Gomes Soares

Fábrica do Futuro Cataguases (MG)
www.fabricadofuturo.org.br

A Fábrica do Futuro tem como finalidade implantar um programa de desenvolvimento local que alie cultura, comunicação e cidadania, a partir da formação integral, da capacitação profissional e da geração de trabalho e renda, sobretudo com jovens de 16 a 24 anos. O Ponto de Cultura está instalado em uma área de 300 metros quadrados, com núcleo de gestão, salas de oficinas, telecentro, estúdios de gravação, edição e desenvolvimento de projetos.

O programa, estruturado como um arranjo produtivo e criativo local, será capaz de criar, produzir e difundir conteúdo audiovisual em suporte digital, através de pesquisa e uso de tecnologias abertas e livres, que atenda a rede de ensino, rádios e televisões, educativas e comunitárias, e também veículos de comunicação públicos e privados, o setor empresarial e publicitário, da cidade e da região.

Num país de extensões continentais, uma pequena cidade do interior, ao reunir suas tradições à experimentação de processos inovadores, poderá, certamente, servir de referência concreta para outras cidades e para propostas de descentralização e interiorização de políticas públicas no Brasil.

Entre as principais ações desenvolvidas no setor audiovisual, de 2002 para cá, estão, além de seminários, oficinas e fóruns, a inauguração do Telecentro Cultural Comunitário, que oferece acesso grátis à internet para mais de 1.600 pessoas por mês; e a produção do programa-piloto de TV experimental Geração Digitaligada, realizado por uma equipe de sessenta jovens, cinco profissionais e a participação de mais de setecentos jovens, de vários municípios da região. O programa é um canal de difusão e visibilidade de experiências bem-sucedidas com a juventude, em todo o país, que pode ser exibido em telas de TVs, telecentros, cinemas, teatros, escolas, ruas, muros, rádios e na internet.

Em setembro de 2005, fomos selecionados novamente pelo Programa Cultura Viva, por meio do qual nosso Ponto de Cultura, a partir de 2006, irá ampliar e multiplicar sua experiência para várias cidades da região, entre elas, Juiz de Fora, Muriaé, Santos Dumont, Rio Pomba, Ubá, Volta Grande, Miraí, Além Paraíba, São João Nepomuceno, Leopoldina, Guarani e Tocantins. A meta principal é formar a Rede Geração Digitaligada, por meio de núcleos regionais implantados a partir do trabalho em rede com jovens criadores e produtores de mídias dessas cidades.

Ainda em 2005, promovemos outras importantes iniciativas, contando com diversos parceiros: com a Secretaria de Ciências e Tecnologia para implantação do Programa Centro de Vocações Tecnológicas (CVT); com a Prefeitura Municipal para implantação de mais cinco telecentros comunitários em bairros pólos da cidade; com a Secretaria de Estado da Cultura, através do “Programa Filme Minas”, para a produção da revista multimídia Zinema; e com o Ministério do Trabalho na seleção de 65 jovens para o Programa Agente Cultura Viva – eles participaram de oficinas de metareciclagem, teatro de bonecos, artesanato reciclado, desenho e pintura.

Em outras áreas, desenvolvemos o Programa Arquitetura Pública, uma expe­riência inovadora no país com a residência, na cidade, de turmas de alunos da Escola de Arquitetura da UFMG que desenvolvem diagnósticos, projetos arquitetônicos e assessoria especializada para a população de baixa renda da cidade e da região; a Escola de Cidadania, em parceria com o Instituto Cidade de Juiz de Fora e com o apoio da Câmara e da Prefeitura Municipal, viabilizando um curso intensivo de formação e capacitação para lideranças jovens e comunitárias; e o Projeto Amigos do Futuro, realizado em parceria com a Cia. Brasileira de Alumínio, o Instituto Votorantim e a ONG Ação e Cidadania, com o objetivo de fazer um diagnóstico participativo, que envolva toda a rede de ensino público, do município e da região.

César Piva, presidente e gestor cultural

Cinema de Animação Olinda (PE)
[email protected]

As oficinas do Cinema de Animação são voltadas para a produção de pequenos filmes em desenho animado, com a temática da Educação Patrimonial, ou seja, educação para preservação do patrimônio arquitetônico e urbano de Olinda, o casario, as igrejas e as ruas de pedras. Os trinta alunos (com previsão de cinqüenta) vêm das escolas da rede pública de Olinda, quase todos moradores no entorno do sítio histórico, uma ilha cercada de bairros populares e várias favelas. Eles participam de todo o processo, desde a criação e desenvolvimento das idéias até estudo e pesquisa dos personagens.

Em todos os filmetes produzidos nas oficinas, feitos de forma artesanal, em papel ofício e em mesa de luz, buscamos a estética do estilo regional, tanto no grafismo, pesquisando a xilogravura, do cordel, o traço de Bajado, as gravuras de Samico, as iluminuras de Ariano Suassuna, quanto na musicalidade, inspirada em Naná Vasconcelos, Chico Science, Alceu Valença, no maracatu, no coco, na ciranda etc.

A previsão é de que terminemos um longa-metragem no final de junho. Chamado A Saga dos Colonizadores, vai contar a história da colonização de Pernambuco em quatro partes. Os personagens são figuras da cultura local, como O Homem da Meia-Noite, A Mulher do Dia, O Menino da Tarde e O Mamulengo Titidá. Os alunos visitaram museus, a maternidade dos bonecos gigantes de Silvio Botelho, a exposição de Bajado, assistiram a diversos filmes e vídeos sobre os personagens, tiveram aulas de planos de filmagem, prepararam o roteiro e o storyboard, fizeram diversos exercícios para a compreensão da técnica da imagem em movimento, filipetas e tiras de zoétropos (aparelhos de ilusão de ótica para a recriação dos movimentos), além de seqüências de animações e aulas de educação patrimonial com um especialista.

O nosso projeto funciona há muito tempo – sempre fomos “ponto de cultura”, somente não tínhamos esse nome. Quando realizamos esse mesmo projeto em Igarassu, quase todos os alunos que concluíram o curso entraram para o mercado de trabalho como desenhistas em produtoras, editoras de livros, agências etc. O mesmo deverá acontecer em Olinda, principalmente agora, com o apoio do Ministério da Cultura. A aprovação do Ponto de Cultura foi muito importante, pois o projeto estava parado. A verba mensal permite o funcionamento do projeto, garante equipamentos, fundamentais para a finalização dos produtos audiovisuais produzidos com os alunos, e os recursos do Agente Jovem proporcionam uma renda para a família dos alunos e noção de cidadania para o jovem. O impacto na comunidade será sentido aos poucos, pois nosso projeto trata de conscientização e formação, e os resultados esperados virão com o tempo.

Lula Gonzaga, coordenador

Biblioteca do Fórum Social Mundial  Porto Alegre (RS)
www.mosaicodelivros.blogspot.com

Iniciada em outubro de 2001, a Biblioteca Social Mundial é uma campanha do Coletivo Mosaico que trabalha em favor do livro e da leitura com base no copyleft, promovendo a diversidade cultural, o conhecimento compartilhado e a consciência crítica. O objetivo é constituir, a partir das edições do Fórum Social Mundial, um grande acervo de obras importantes que esteja à disposição da população mundial, através de uma biblioteca física, em Porto Alegre, cidade onde o Fórum Social Mundial começou, e de uma biblioteca virtual na internet.

O Coletivo Mosaico é um grupo de porto-alegrenses que conta com a colaboração de ativistas de países como Brasil, Índia, Espanha, França, Alemanha, Grécia, Inglaterra, Canadá, além do Movimento Paulo Freire e do Acampamento Intercontinental da Juventude. Na edição do primeiro Fórum Mundial de Educação, em Porto Alegre, foram recebidas as primeiras obras do Mosaico de Livros, em torno de uma obra fundamental: Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire, peça fundadora do Mosaico. De lá para cá, nas quatro edições do FSM em Porto Alegre e nas que se realizaram em Mumbai, na Índia, e, mais recentemente, em Caracas, na Venezuela, o Coletivo Mosaico vem montando um acervo que hoje chega a 6 mil títulos e, a partir deste ano, constituiu-se em um Ponto de Cultura.

Integrante do Mosaico de Livros, a fotógrafa porto-alegrense Ana Paula Stock conta: “Em Caracas, recebemos pelo menos mais uma centena de livros (...) que em breve estarão expostos para visitação e empréstimo”. Ana Paula informa que, apesar de situada em Porto Alegre, a biblioteca possibilitará, em breve, que seu material seja consultado em todo o mundo. “O que está publicado em copyleft vamos disponibilizar completamente, e o restante como referência bibliográfica”, revela. A biblioteca funciona com base em três eixos: a fixação da memória do FSM, o discurso pela diversidade cultural e a atenção aos povos de países menos desenvolvidos para a importância da leitura.

Como Ponto de Cultura, o Mosaico de Livros dará prosseguimento a suas ações, mantendo em Porto Alegre uma série de atividades, seminários e oficinas sobre os temas do Fórum – com destaque para softwares livres e economia solidária – nas comunidades carentes da Grande Porto Alegre.

A biblioteca realiza ainda intervenções artísticas. É o caso da exposição fotográfica Janelas para a Índia, que já passou, além de Porto Alegre, por Espanha, Inglaterra, França, Alemanha e Venezuela. As fotografias de Ana Paula Stock foram feitas em Mumbai, Agra, Udaipur e Jaipur, na Índia, durante e após a realização do IV FSM, em 2004. No início de 2006 a exposição de 200 fotos-cartazes foi montada em três países simultaneamente. Parte das fotos foram expostas no Acampamento Binacional do Chuí – entre o Uruguai e o Brasil –, no Bar Pinacoteca, em Porto Alegre; no Café da Rua 8, em Brasília; e na Tenda do Mercosul, em Caracas.

Baseado em entrevista com Ana Paula Stock, coordenadora

Questão Ideológica Piauí
[email protected]

O movimento hip-hop organizado no Piauí teve início em 1994. Foi quando surgiram grupos como o Questão Ideológica (Q.I.), que vêm fortalecendo a luta contra o preconceito que sofre o movimento hip-hop. O Q.I. nasceu no Conjunto Mocambinho, zona norte de Teresina, criado por dançarinos de smurf-dance, rappers, dançarinos de break, pichadores e ex-membros de gangues de rua. Nasceu a partir do contato com o Movimento Hip Hop Organizado do Maranhão e do Ceará, que ajudaram a organizar os/as militantes e praticantes da cultura no Piauí.

Em 2004 o Q.I. ocupou uma escola pública em Teresina abandonada pelo poder público havia mais de dez anos. Era um local usado por jovens ociosos como ponto de drogas e prostituição, num bairro relativamente violento da zona sul da capital piauiense. Hoje sede própria do Q.I., a antiga escola transformou-se num espaço popular e virou um dos Pontos de Cultura do Nordeste. A parceria com o Ministério da Cultura possibilitou que se pudesse trabalhar mais ainda os cincos elementos da cultura hip-hop no combate ao racismo, à violência e à desigualdade, sobretudo com a doação de um estúdio para nosso espaço cultural, onde trabalhamos na produção de bandas locais. O espaço oferece ainda dois telecentros totalmente livres para a comunidade, além de um curso de metareciclagem de computadores usados. O Ponto de Cultura é uma forma alternativa de trabalhar a cultura dos movimentos junto com a cultura do software livre (Linux), projeto que promete levar a 70% das cidades mais carentes do país a cultura digital.

Nos últimos anos, o Brasil assumiu papel de destaque no contexto internacional do software livre. O governo federal apresentou um posicionamento público de defesa da adoção de software livre em diversos projetos. O Piauí assumiu o papel de divulgar a cultura do software livre através do projeto Ponto de Cultura. Assim, foi o primeiro estado a realizar o Encontro de Conhecimentos Livres dos Pontos de Cultura, evento de capacitação que envolveu a comunidade e também pessoas de diversos estados do Nordeste e integrantes de vários pontos. Esse encontro foi o pontapé inicial para a organização dos Pontos de Cultura no estado.

O Piauí inicialmente aprovou mais de 15 Pontos de Cultura no estado e na segunda etapa do edital foram aprovados mais alguns projetos. Diante desse novo quadro da cultura digital, empresas, órgãos públicos, escolas e movimentos sociais converteram o modelo de software privado para o software livre através da política cultural implantada pelos Pontos de Cultura.

Recentemente, através da articulação de seus representantes e de movimentos institucionais, sociais e governamentais, foi criado o Comitê Estadual de Inclusão Digital, que trabalha com a recepção e distribuição de doações de computadores usados de órgãos conveniados entre os telecentros dos diversos Pontos de Cultura espalhados no estado do Piauí, garantindo o acesso a pessoas de baixa renda que ainda não conhecem a cultura digital.

Jhonata de Oliveira, assessor de Comunicação

Daniel Benevides é jornalista, assessor de Comunicação da vereadora Soninha (PT-SP)