Nacional

Entrevista com Ricardo Berzoini

O PT realizou nos dias 28, 29 e 30 de abril, o 13º Encontro Nacional. Nesta entrevista, Ricardo Berzoini, seu presidente eleito em 2005, faz um balanço do que foi o encontro e aponta os principais desafios que o partido enfrentará nas eleições gerais

Seguramente, nenhuma instituição partidária na história do Brasil sofreu tamanhos ataques como o Partido dos Trabalhadores, ao longo dos últimos doze meses. O PT sobreviveu à crise? Qual é a perspectiva do partido neste momento?
Sobreviveu, sem dúvida, com uma vantagem política. Com certeza quem quiser extrair dessa crise ensinamentos para fortalecer a vida partidária poderá extraí-los de maneira extraordinária. Ela mostrou, na verdade, que o PT viveu uma crise de crescimento, pois o partido cresceu vigorosamente e incorporou de maneira desigual em sua vida hábitos da política tradicional brasileira. E, ao incorporar esses hábitos, alguns ajustados à cultura petista, outros não, e ao não criar controles para coibir certos comportamentos, o PT se expôs a riscos grandes e desnecessários. Mas, mesmo sendo enxovalhado e tratado de maneira sectarizada pela mídia e pelos adversários, o partido soube reagir, ainda está em processo de reação, de embate sobre a versão da crise, sobre a abrangência da crise. A instituição partidária, junto com sua interface governamental, conseguiu enfrentar com dignidade o ataque, chegando à situação pré-eleitoral num quadro bastante favorável.

A Fundação Perseu Abramo entregou ao partido os resultados de uma pesquisa sobre a imagem do PT frente à opinião pública brasileira. Entre outros dados, chama a atenção o fato de que 53% dos entrevistados não têm nenhuma preferência partidária e 23% afirmam sua preferência pelo PT, e apenas 9% pelo PMDB, 7% pelo PSDB e 4% pelo PFL. A que pode ser atribuída essa força que o PT revela, apesar da crise?
Exatamente a uma percepção de parte do eleitorado, parte da população brasileira, de que o PT é um partido de homens e mulheres, tem seus problemas, tem seus acertos, mas é a instituição mais representativa das lutas populares. Ou seja, mesmo tendo suas contradições políticas, organizativas, o PT está aberto à participação da sociedade, tem atividade partidária permanentemente, e visível e se dirige à população não só em época de eleição. Ele tem raízes nos movimentos sindical e social, e praticamente todo brasileiro conhece um petista que está na luta, que participa, que faz um discurso em defesa de seus valores. Portanto, as pessoas entendem que o PT é o partido que as representa. Não de maneira perfeita, idealizada, mas de maneira real, humana, adequada a quem está na política. Quem está na política se relaciona com todos os tipos de política, e muitas vezes erra e acerta em função desse relacionamento. O próprio PT, ao assumir os desafios de disputar a hegemonia da sociedade, também tem de ter mecanismos de sustentação dessa atividade política, que no geral são bons mecanismos, mas às vezes não são tão bons assim. A sociedade, na sua maioria, não tem preferência partidária, como mostra a pesquisa. Mais da metade não tem preferência por nenhum partido, mas, entre aqueles que reconhecem nos partidos uma importância de representação, nós temos um número muito satisfatório.

Há dois marcos, desde que se desencadeou a crise, que serão referência desse momento para a trajetória do PT: a realização do PED, a mobilização da militância naquele momento, e o 13º Encontro Nacional, realizado em abril. Qual sua avaliação dos resultados do Encontro?
O PED faz parte do mesmo processo do Encontro, são dois elementos do mesmo processo separados por alguns meses. A crise surpreendeu muita gente, alguns não se surpreenderam, mas se colocaram em crise pelas repercussões políticas que vivenciamos em 2005, que ainda continuam, só que em menor proporção. Na eleição da direção, houve uma disputa muito acirrada, mas concluída com um pacto político interno que elegeu uma Executiva por consenso, mostrando o partido em busca de um grau de unidade maior e compreendendo a conjuntura política que estava colocada – um embate entre a chamada direita e a esquerda brasileiras. Quando preparamos o Encontro foi com base nesse pacto de unidade, ou seja, houve um chamamento para que todos contribuíssem para a construção de textos unificados, em vez de termos teses correntes. Isso tudo criou um ambiente de confiança interna, porque ninguém procurou exercer nenhum tipo de maioria artificial ou fazer alianças táticas para derrotar o terceiro.

Como militante do PT, sempre achei muito ruim para a dinâmica interna que os encontros do partido começassem com as minorias sofrendo uma derrota, que ocorre com a votação da tese-guia. Todo o esforço subseqüente era tentar introduzir na tese vencedora as teses derrotadas na primeira votação.
Agora fazemos melhor: um documento já bastante consensuado anteriormente, resultado de um esforço de convencimento interno para aproximar posições. Quando chegam ao Encontro, os delegados e/ou as correntes políticas podem tentar melhorar aquele documento referência segundo seu ponto de vista. Em muitos casos, mesmo na hora de fazer emendas, novamente nos esforçamos para construir emendas consensuais ou amplamente majoritárias. Isso dá um grau de confiabilidade às relações, que nos permite sonhar com uma nova dinâmica daqui para a frente tanto no partido quanto no movimento sindical. Nos congressos da CUT, encontros e congressos do PT, tivemos quase sempre no primeiro dia um momento que era praticamente uma guerra. Desta vez fizemos um debate amplo, todo mundo teve espaço para expor seu ponto de vista, mas com o texto unificado. Isso evitou que a guerra dos crachás fosse mais importante do que a guerra das idéias.

O Encontro debateu as diretrizes do programa de governo, a conjuntura e a tática, e a construção partidária. Houve um grau de unidade bastante expressivo inicialmente, mas não é possível falar a mesma coisa no que toca à política de alianças e à construção partidária. A que atribuir essas diferenças?
Houve uma ampla maioria construída em torno da idéia de que não deveríamos fazer naquele momento uma deliberação terminativa e deveríamos tratar a política de alianças a partir das possibilidades reais; ao invés de fazer um enunciado teórico conceitual, fizemos um debate sobre o que é política de aliança e delegamos ao diretório tomar as decisões finais. Isso porque eu não creio que seja conveniente neste momento fechar ou escancarar portas. No tópico construção partidária há uma polêmica especialmente com um agrupamento, a Democracia Socialista, que defendia e vem defendendo há várias reuniões que retomemos a mensalidade partidária como critério de finanças. Não há unanimidade contra essa tese. Entre aqueles que votaram contra há uma visão de que deve ser discutida junto com a reestruturação do partido como um todo. As finanças fazem parte de um todo da política e se relacionam com outras decisões. Por isso houve certo tensionamento, uma discussão um pouco filosófica, mas de aplicação prática sobre como sustentar financeiramente o partido.

No fundo a discussão está envolta ainda na questão da crise. Há, na minha opinião muito pessoal, um pouco o enfrentamento, de um lado, do que seria uma situação ideal, um partido dos trabalhadores financiado por seus afiliados, pela estrutura e pelas atividades do partido, e, de outro, a vida real da política brasileira, em que para ser competitivo e ter estatura política nacional é preciso haver ainda o financiamento privado, pois não há financiamento público institucional. Por trás disso há um debate um pouco moralista: um setor defende o financiamento da base do partido e outro defende um relacionamento com empresários. Eu, pessoalmente, adoraria que tivesse financiamento só público ou só da base do partido, ou misto dos dois, e não tivéssemos o setor privado participando do financiamento eleitoral. Mas isso ainda é uma batalha a ser travada na sociedade e na política brasileiras.

Então essa discussão pautará o partido para a necessidade do debate da reforma política de caráter republicano, financiamento público de campanha, a questão da própria representação... O tema geral da reforma política, a seu juízo, volta à agenda do partido no Congresso?
Volta. A reforma política é uma agenda fundamental para o partido e para o país. Se depender de mim será um tema forte da campanha eleitoral de 2006. O PT e o nosso candidato devem ter esse tema como uma das agendas prioritárias, mas, ao mesmo tempo, devemos ter consciência de qual é a capacidade real de autofinanciamento do partido. Nós defendemos o fundo partidário porque acreditamos que a democracia deve ser financiada pelo Estado e o partido deve ter um financiamento da contribuição de suas bases. O fundamental é não tratar essa questão do ponto de vista moralista, pois isso divide o partido.

No que a política de alianças, tal como foi definida, guarda coerência com a proposta de diretrizes do programa em torno da qual houve unidade?
Guarda, sim. Precisamos lembrar que o Brasil é um país com a estrutura política em transformação e nós não podemos ter uma visão apenas de ideais políticos – é preciso lidar muito com a realidade. O governo Lula é uma frente de centro- squerda que busca governar o país a partir de um programa de centro-esquerda, que foi apresentado à sociedade e tem até algumas limitações, que fazem com que muitos dentro do PT assumam posição crítica. Então, dentro do processo político, fazer a travessia de um ponto a outro é um esforço enorme que não está sob sua absoluta governabilidade. O PT não pode ter a ilusão de que suas decisões atribuem plena governabilidade à sua direção, não adianta ter um visão formalista da política. É preciso ter sempre a perspectiva de que, ao longo do caminho, situações contraditórias vão se colocar para o partido e a direção terá de ter a capacidade de lidar com essas contradições de forma adulta, serena, firme, compatível com a base do pensamento petista, mas percebendo que há escolhas a serem feitas que nem sempre são as melhores.

Portanto, quando você fala de coerência entre programa e política de alianças, podemos dizer que não houve grandes crises programáticas no governo Lula, tivemos crise de incapacidade de formular propostas que pudessem ter amplo apoio popular construídas a partir da realidade objetiva do país. De um lado, construímos eixos imaginários que se traduziram em políticas concretas, que são hoje a grande base de sustentação do governo. Por exemplo, o combate à miséria como um eixo forte do governo e a democratização de oportunidades se consolidaram como referências objetivas. De outro lado, ainda que possa haver muitas divergências no partido, a idéia de que nosso governo foi capaz de fazer um processo de estabilização da economia qualitativamente superior ao do governo passado também é forte. São dois elementos fortes que às vezes se contradizem. Muitos tentam nos puxar para a contradição dizendo, por exemplo, que a política de combate à miséria torna exponencial o crescimento do gasto público, e portanto põe em risco a estabilidade. Mas a nossa sabedoria político-partidária, conscientes de que o PT é minoria na sociedade, é justamente produzir a síntese entre três ou quatro idéias-força que possam se traduzir num programa capaz de ter apoio dentro e fora do PT.

O presidente Lula, no discurso de abertura do Encontro, se referiu a um problema clássico da atividade política brasileira: o fato de que “o país não tem grande tradição de partidos nacionais”. Os partidos no Brasil têm rostos diferenciados, regionais. Um grande partido, como o PMDB, não tem tido possibilidade concreta sequer de lançar candidatos nacionais nos últimos pleitos, e os que foram lançados não tiveram êxito correspondente ao enraizamento do partido nos municípios e nos estados. O PT passa a viver esse tipo de problema? Ou seja, o partido tem condições de traduzir seu projeto nacional regionalmente?
O PT também é muito heterogêneo nacionalmente. Se olharmos para as seções regionais do partido, veremos que muitas vezes o tipo de cultura e história política é muito diferenciado, o que acarreta uma diferenciação também no partido – claro que em muito menor grau do que em outros. PT sempre teve um peso muito forte da sua visão nacional e as questões estaduais e municipais são muitas vezes ajustadas a uma política nacional. O desafio é conviver com o mundo partidário fracionado, em que, com exceção do PSDB – que também tem uma estrutura nacional forte, embora menos ideológica que a do PT –, quase todos os demais partidos se assentam na junção nacional de lideranças e estruturas regionais. E sem fidelidade partidária isso fica ainda mais complicado, pois o partido se fragiliza quando, no meio de um mandato parlamentar ou executivo, pode se esfarelar se não atender a certos compromissos, tanto no plano regional quanto no nacional.

Você foi escolhido para coordenar a campanha presidencial, em nome do partido. Quais são os pontos de unidade programática que o Partido dos Trabalhadores apresentará aos possíveis aliados nas eleições de 2006?
Quem está no governo tem evidentemente uma situação diferenciada, porque tem como base para o programa a trajetória desenvolvida no primeiro mandato. Então, como horizonte para esse programa há o preenchimento das insuficiências e o aprofundamento das políticas mais aprovadas pela população e mais meritórias do ponto de vista dos objetivos do governo. A figura do presidente Lula é o principal fiador de um compromisso social e político do governo. A maneira como se comportou ao longo de todo o governo é um cacife forte para o PT e para os aliados mais próximos. A partir da experiência do primeiro governo Lula temos de apresentar propostas que combinem medidas que possam acelerar o crescimento no curto prazo com maior distribuição de renda. Não basta crescer. Estrategicamente, dois setores sobressaem, até porque têm impacto no social: educação, que tem de ser objeto de um programa abrangente para permitir um salto de qualidade que possa traduzir algumas décadas em apenas quatro anos, e a superação da situação habitacional brasileira. Nós temos elementos no Brasil, como o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, o Fundo de Amparo ao Trabalhador, e instrumentos como a Caixa Econômica Federal que estão hoje subutilizados no combate a essa tremenda mazela que é o fato de que grande parte da população ainda mora mal.

Você incluiria as políticas de integração continental do governo Lula nesse conjunto de propostas?
Sem dúvida. O governo teve uma atuação notável em termos de política externa e pode aprofundá-la, mesmo enfrentando situações como agora com a Bolívia, que de certa forma aguça algumas contradições, pois o continente americano é fragmentado politicamente, culturalmente e, sobretudo, em termos de infra-estrutura, até por suas características geográficas. Durante muito tempo o isolamento foi favorecido pela situação política e pela situação geográfica. Um trabalho de integrar física, política e culturalmente, em especial, a América do Sul deve ter destaque até para enfrentarmos o debate com aqueles que sempre olharam as relações externas do país apenas com a Europa e os Estados Unidos – que devem ser fortalecidas, evidentemente –, desprezando uma política de relacionamento com os países do nosso continente.
O 3º Congresso do partido, convocado para 2007, concluirá esse processo iniciado no 13º Encontro com o PT revigorado?
Creio que sim, porque o partido, tendo vivido esse momento crítico, deve tirar algumas lições. Em primeiro lugar, a de que o fato de existir maioria não pode excluir o diálogo interno; em segundo lugar, acredito que o 3º Congresso se dará já com a definição do resultado eleitoral de 2006 e, portanto, permitirá analisar o fechamento de um ciclo. Como acreditamos que Lula será reeleito, isso permitirá projetar o partido para o segundo mandato e além dele. Na hipótese de Lula não ser reeleito, teremos o balanço de uma experiência federal importante para o país e para o PT. De qualquer maneira, o 3º Congresso será um divisor de águas no partido e nos permitirá fazer uma análise muito aprofundada da crise que vivemos em 2005.

A pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo sobre a imagem do PT, no que trata do processo interno de apuração das responsabilidades pelos fatos revelados em 2005, conclui que as medidas tomadas pelo partido foram corretas mas insuficientes. Que caminho o partido seguirá para concluir esse processo?
Se acreditamos de fato que a gênese de tudo está no sistema de financiamento eleitoral – pois no Brasil há um problema gravíssimo de financiamento político que contaminou todos os partidos, inclusive o PT –, devemos nos debruçar sobre o processo, mais do que individualizar responsabilidades. Não que sejam excludentes, mas individualizar responsabilidades não evitará que essa situação se repita. O PT precisa ter uma estratégia econômico-financeira capaz de reduzir, enquanto perdurar o financiamento privado, sua dependência desse tipo de financiamento. Em segundo lugar, o PT precisa liderar a mobilização nacional por uma reforma política que extirpe, de uma vez por todas, o financiamento privado da política; o financiamento público de campanha deve ser tema prioritário, e não apenas retórica para enfrentar a crise.

A eleição majoritária do presidente não guarda coerência com a composição que o sustentará no Congresso Nacional. Como o PT pretende equacionar o problema da governabilidade num eventual próximo governo?
Sou parlamentarista, mas sei que presido um partido que tem uma decisão pelo presidencialismo. É preciso retomar esse debate no PT: qual é a forma de governo que defendemos? Mas no presidencialismo é possível avançar com relação à representação parlamentar. Por exemplo, com o voto em lista partidária, com o financiamento público de campanha, fidelidade partidária rigorosíssima, além do fim das coligações proporcionais que quase sempre são oportunistas, apenas para aumentar a chance de eleição, sem coerência programática. Também precisamos que o Parlamento dê aos cidadãos visibilidade de como se processam suas propostas. A maior dificuldade para acompanhar a política, além da banalização e da mediocrização da mídia, é o fato de o Parlamento funcionar de forma praticamente incompreensível para o cidadão comum, que tem dificuldade de acompanhar como seu representante parlamentar atua. De outro lado, um funcionamento mais racional do Parlamento significa também uma redução drástica do número de medidas provisórias.

A mídia liberal-conservadora tem atuado como competidora dos partidos políticos desde a derrota da ditadura e do retorno da democracia representativa. Isso ficou visível tanto no processo da crise de 2005 como, recentemente, nas eleições prévias do PT ao governo do estado de São Paulo, que mobilizou quase 70 mil eleitores petistas. Que papel essa mídia cumpre no processo político da democracia brasileira hoje?
A mídia investe no descredenciamento da política porque, quanto mais fraca estiver esta, mais fortes estarão o poder econômico e os próprios meios de comunicação. Isso vale para todos os partidos. Em relação ao PT, há nitidamente um preconceito dos principais jornais. Mesmo nas situações mais favoráveis politicamente, a mídia tenta minimizar e reduzir as conquistas do partido. O que mais chama a atenção é que nesse processo os principais meios de comunicação não permitem que os consumidores de notícias possam compreender a natureza da luta político-parlamentar e as inconsistências do próprio sistema político. Se a mídia quisesse dar uma contribuição decisiva poderia levantar a discussão pela reforma política profunda do nosso país. No entanto, prefere ridicularizar o Parlamento, banalizar a corrupção, tratar os partidos como fossem quadrilhas e estabelecer quase sempre um distanciamento, uma ojeriza do cidadão à política. Cumpre um papel planejado, não é acidental, é o desejo de não deixar que a política se traduza num instrumento fundamental da democracia brasileira.

Hamilton Pereira é presidente da Fundação Perseu Abramo