Internacional

A situação política do México não será mais a mesma. A reivindicação de López Obrador e do PRD para recontar os votos pôs em xeque o sistema eleitoral mexicano, que proporcionou e proporciona fraudes escandalosas

A disputa pela Presidência dos Estados Unidos do México iniciou-se na prática quase dois anos antes do dia da eleição, em 2 de julho. A busca pelos votos foi muito acirrada, particularmente a competição entre o candidato do Partido de la Acción Nacional (PAN), Felipe Calderón Hinojosa, e o da coalizão formada pelo Partido de la Revolución Democrática (PRD), pelo Partido del Trabajo (PT) e pelo Partido de la Convergencia (PC), Andrés Manoel López Obrador. Segundo alguns institutos de pesquisa mexicanos, chegaram a alternar a ocupação do primeiro lugar na preferência popular, embora o segundo tenha estado à frente na maior parte do tempo.

A popularidade de López Obrador adveio do seu bom desempenho à frente do governo da capital do país, Cidade do México, e do desgaste dos partidos adversários – o Partido de la Revolución Institucional (PRI) devido a sua história de corrupção e métodos violentos de ação política e o PAN pelo seu governo nacional de gestão neoliberal e ineficiente. Além disso, ele optou por fazer uma campanha de contatos pessoais e diretos com a população, visitando o país todo de automóvel.

No entanto, López Obrador enfrentou, pela direita, uma campanha suja, caluniosa e anticomunista, apoiada pela maior parte dos meios de comunicação, bem como pelo poder econômico e pela máquina do governo. Particularmente nos últimos meses, não faltaram investimentos governamentais nos estados onde o PRD se situava melhor nas pesquisas e o próprio presidente da República se engajou diretamente na campanha defendendo que “se cambie el caballero pero no el caballo”(“Que se troque o cavaleiro, mas não o cavalo”).

Pela esquerda, representada pelo Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) e por outros agrupamentos, o candidato do PRD enfrentou uma campanha que pregava o voto nulo e a afirmação de que todos os candidatos eram “farinha do mesmo saco”. O EZLN e o subcomandante Marcos promoveram uma marcha por todo o país e seus integrantes acamparam na capital quase dois meses antes da eleição. Essa mobilização nacional, denominada “La otra campaña”, visava aproveitar a campanha eleitoral para chamar a atenção para os problemas econômicos, políticos e sociais do México e ao mesmo tempo criticava os três candidatos principais. Porém, o efeito da crítica recaía principalmente sobre López Obrador, uma vez que o EZLN fazia questão de destacar que não apoiava o PRD.

Outros fatores ainda pesaram para que ele perdesse a vantagem que tinha sobre Calderón, por vários meses segui dos. O fato de ter se lançado candidato com muita antecedência lhe deu uma boa vantagem inicial, pois pôde sair à frente na campanha eleitoral, mas também o expôs a ataques mais prolongados.

No final do ano passado, Vicente Fox e o presidente Hugo Chávez, da Venezuela, trocaram uma série de insultos devido a uma disputa entre as respectivas companhias de petróleo, Pemex e PDVSA, pela construção de uma refinaria na América Central. A imprensa mexicana tratou o ocorrido como uma ingerência externa em assuntos mexicanos e criou a versão de que López Obrador era apoiado por Chávez.

Apesar de o candidato do PRD ter aceitado de antemão participar do segundo debate televisivo entre os candidatos e não do primeiro, sua ausência neste foi criticada pela mídia como oportunismo e falta de consideração com os telespectadores. Uma cadeira vazia deixada para López Obrador, ao lado dos outros debatedores, relembrava isso a todo momento. Além disso, nos dias seguintes foi anunciado aos quatro  ventos que Calderón vencera o debate.

Por último, quando prefeito da Cidade do México, ele extinguiu o departamento de relações internacionais da prefeitura, afirmando que não viajaria ao exterior e que toda a dedicação da administração seria voltada para os assuntos locais. Isso o inibiu como candidato presidencial de apresentar-se como um estadista no exterior, particularmente entre os governos dos países com os quais o México tem maior proximidade, bem como de fazer campanha, pois os mexicanos que residem fora têm direito a voto. Aparentemente, os eleitores que hoje moram nos EUA e compareceram às urnas em grande número tinham maior simpatia pelo candidato do PAN, e isso não foi enfrentado adequadamente.

Assim, López Obrador e Felipe Calderón chegaram à eleição em situação de empate técnico. Como no México o voto não é obrigatório, avaliava-se que um alto comparecimento do eleitorado beneficiaria o candidato do PRD. A participação do eleitorado de fato foi maior que na eleição passada, mas até o momento tudo foi feito para dar a vitória a Calderón.

Há vários indícios de manipulação dos votos em seu favor, por  meio de alteração de listas, votos de falecidos, votos comprados, entre outros métodos, sobretudo nos estados governados pelo PAN. Essas irregularidades foram combinadas com uma sofisticada tentativa em nível nacional para encobri-las por meio do sistema de totalização de votos. Este é coordenado pelo Instituto Federal Eleitoral (IFE), somando os resultados apresentados nas atas de cada urna, elaboradas nas apurações em cada junta eleitoral, uma vez que não existe uma contagem centralizada de votos.

No dia seguinte à eleição, houve um anúncio informal de que Calderón havia vencido por uma diferença de aproximadamente 1%, resultado logo aceito pelos três outros candidatos presidenciais – Roberto Madrazo, da coalizão PRI-Partido Verde (PV), e os de dois partidos nanicos. No entanto, diante dos questionamentos do PRD, apareceram as atas de quase 11 mil urnas que representavam perto de 3,4 milhões de votos e, “por uma falha”, não haviam sido incluídas na contagem. A soma desses votos levou mais um dia e, no final, ainda favorecia o candidato do PAN, mas com 35,89% dos votos, contra 35,31% para López Obrador, uma diferença de apenas 0,58%, ou 243.934 votos, num total de 41,1 milhões.

Ou seja, utilizou-se um erro classificado de “humano e de boa fé” e que foi rapidamente corrigido sem alterar o resultado final para disfarçar a verdadeira fraude embutida nas urnas. Essa correção foi argumento suficiente para os meios de comunicação, o setor empresarial do México e o presidente Bush darem a eleição como vencida por Calderón.

O PRD apelou do resultado ao Tribunal Eleitoral do Poder Judiciário da Federação (Trife), solicitando a recontagem centralizada de todos os votos, a única forma que ainda possibilitaria definir o real resultado e reconhecer a validade da eleição ou anulá-la. Suas reclamações concretas referem-se a irregularidades em aproximadamente 50 mil urnas, quase a metade das 132 mil que funcionaram na eleição.

O pleito está sendo apoiado por grandes mobilizações populares, que começaram no dia 16 de julho, quando um número significativo de mexicanos atendeu ao chamado do PRD para participar da “resistência civil" e marchou pela capital, terminando com uma concentração de mais de 1 milhão de pessoas no Zócalo, a praça central da cidade. Posteriormente houve novas mobilizações, bem como bloqueios da avenida principal da capital, e desde o final de julho há um grande acampamento de apoiadores do PRD no centro. Em outros locais também foram registradas manifestações, como na frente da Embaixada espanhola, quando o primeiro-ministro José Luis Zapatero enviou cumprimentos a Calderón “por sua eleição”.

A decisão tomada no início de agosto pelos sete juízes que compõem o Trife foi determinar a recontagem dos votos de 12 mil urnas, 9% do total e apenas um quinto daquelas questionadas pelo PRD. Mesmo terminada a verificação dessas urnas, no dia 13 de agosto, não houve nenhum pronunciamento oficial do tribunal. Embora várias irregularidades fossem confirmadas, tais como a coleta de votos de eleitores que não constavam das listas e a existência de mais votos em algumas urnas do que o número de eleitores, os rumores informais davam conta de que o resultado final seria pouco afetado.

Independentemente do resultado dessas ações, a eleição confirmou uma profunda alteração no quadro político partidário do México.

Nascido do processo político desencadeado pela revolução mexicana entre 1910 e 1918, o PRI implementou uma forte política de desenvolvimento nacional e foi responsável pela introdução do modelo de substituição de importações. No entanto, sua concepção de Estado, consolidada durante o governo do general Lázaro Cárdenas (1934-1940), interligava instituições como sindicatos, partidos, organizações de camponeses com o governo, tirando-lhes a autonomia, mas possibilitando que o PRI governasse o país ininterruptamente por quase 80 anos. Nos anos 1980, porém, tornou-se explícito que o partido vinha sofrendo uma mutação ideológica em relação ao passado, e foi de sua responsabilidade a implantação do projeto neoliberal no país. Em 2000 perdeu as eleições presidenciais para Vicente Fox, do PAN, e agora seu candidato chegou em terceiro lugar.

O PAN tem origem no “movimiento cristero” da década de 1920 – reação da Igreja Católica contra o PRI, que pretendia usar suas terras para fazer reforma agrária – e se juntou ao agrupamento fascista “Camisas Doradas”, oriundo dos grandes proprietários de terra da década de 1930. Esse partido sempre representou as forças sociais mais conservadoras do México, mas foi o que em 2000 conseguiu capitanear o desgaste do PRI e o desejo de mudança do povo mexicano. Entretanto, elegeu como presidente Vicente Fox, um ex-executivo da Coca-Cola, que apenas reforçou as políticas neoliberais em vigor.

O PRD é uma dissidência do PRI que surgiu em oposição às mudanças ideológicas que se expressaram a partir dos anos 1980. No PRI existia o método do “dedazo” para a cúpula partidária apontar o candidato à sucessão. Para a eleição de 1988 o apontado foi Carlos Salinas de Gortari. Porém, preterido internamente, Cuauhtémoc Cárdenas, filho do ex-presidente Lázaro Cárdenas e defensor de posições ideológicas próximas às tradições nacionalistas do PRI, candidatou-se por um pequeno partido, mas perdeu devido a uma fraude escandalosa. Após a eleição, o PRD foi fundado.

Na atual eleição, confirmou-se a decadência do PRI e o PRD tornou-se uma alternativa real de poder, polarizando pela esquerda com o PAN e o PRI. A coalizão PRD-PT-PC aumentou seu número de cadeiras na Câmara de Deputados de 19,4% para 28,99%, enquanto o PRI caiu de 39,8% para 28,21%. O PAN, por sua vez, cresceu de 29,6% para 33,39%. Outros partidos menores somaram 9,41%. No Senado, o PAN obteve 33,54%; o PRD, 29,69%; e o PRI, 28,07%.

Dos 31 estados mexicanos e o distrito federal, os dois candidatos principais ganharam em 16 deles cada um, mas no Estado do México, onde o PRI sempre venceu, o resultado foi 2,3 milhões de votos para López Obrador, 1,7 milhão para Calderón e 989 mil para Madrazo. Na Cidade do México, o PRD só não conseguiu eleger quatro membros da Assembléia Estadual e elegeu 14 dos 16 executivos distritais.

A situação política do México não será mais a mesma. As principais representações de esquerda e direita hoje são respectivamente o PRD e o PAN. A reivindicação de López Obrador e do PRD para recontar todos os votos pôs em xeque o sistema eleitoral mexicano, que proporcionou fraudes escandalosas no passado e, embora reformado após a “eleição” de Salinas de Gortari, ainda possibilita a ocorrência das atuais irregularidades. Formalmente não há impedimento para a recontagem de todos os votos, porém o desfecho dessa luta pela ética na política mexicana ainda é desconhecido.

Kjeld Jakobsen é consultor em Relações Internacionais e presidente do Instituto Observatório Social