Nacional

Se o caminho para combater o PCC passar pela truculência e/ou pela ilegalidade, corremos o risco de derrotar essa organização criminosa e lançar as bases de uma maior e mais forte

Conta a mitologia grega que Jasão, na busca pelo velocino de ouro, teve de negociar com o rei Eetes. Como condição para lhe dar o objeto o rei exigiu que Jasão semeasse a terra com dentes de dragão. Ele concordou, pensando que fosse uma tarefa fácil, mas teve uma surpresa. Assim que os dentes foram semeados, surgiu um exército de guerreiros que o atacou.

O ano de 2006 será lembrado como aquele em que o crime acuou o Estado. Numa situação sem precedentes no Brasil, uma organização criminosa, o Primeiro Comando da Capital (PCC), desencadeou a partir de maio uma série de atentados e rebeliões em presídios. Além de causar a morte de dezenas de agentes públicos, a maioria policiais ou agentes de segurança penitenciária, centenas de ônibus foram queimados, várias agências bancárias metralhadas, houve explosão de bombas em prédios públicos.

Não é hora ainda de fazer um relato dia a dia do ocorrido, inclusive porque a crise está em curso. É o momento certo, porém, para estudarmos as lições que ficaram desses dias negros. E a primeira, e mais evidente, é que houve um colapso do sistema estadual de segurança pública.

As polícias estaduais paulistas sempre tiveram uma atitude de cobrir o sol com a peneira. Em 1995, enquanto assessorava o relator da CPI sobre o crime organizado, ouvi um delegado geral afirmar categoricamente que “não existe crime organizado em São Paulo”. Mais recentemente um delegado, diretor de um importante departamento da Polícia Civil, afirmou que “o PCC tinha apenas um dente na boca e nós quebramos ele”1.

Essa atitude encontrou respaldo na posição do governo paulista de minimizar as crises e insistir na fala de que a luta contra o crime é longa, mas “estamos ganhando uma batalha por dia”.

Na realidade o que se pode constatar é que o governo está usando o mesmo raciocínio do Exército americano no Vietnã, baseando suas estimativas na contagem de corpos. Há quase quarenta anos, numa guerra que os americanos preferem esquecer, o noticiário oficial só relatava vitórias. Tantas baixas americanas, tantos inimigos abatidos e uma estimativa de um número muito maior de inimigos mortos por bombardeio. De vitória em vitória, os EUA acabaram por perder a guerra.

Ocorre que as estimativas feitas pela inteligência do Exército estavam muito acima dos números reais. Como fica claro após a leitura dos Papéis do Pentágono2 e vários relatos de ex-membros da CIA, os oficiais encarregados de produzir relatórios trabalhavam com duas premissas:

• Todo corpo encontrado e não identificado como “amigo” era considerado de vietcongue.
• Havia uma fórmula matemática que relacionava a quantidade de bombas com a de mortos.

Isso não só fez com que desconsiderassem os mortos civis, computando-os como vietcongues, como também inflacionou o número de baixas causadas ao inimigo. Alguns membros da inteligência e militares contestaram essas avaliações, mas foram transferidos e calados. Reservadamente lhes foi dito que deviam parar de “remar contra a maré”.

Resultado: a maioria do Congresso e do povo americano continuou acreditando que a guerra estava sendo vencida “uma batalha por dia”. Só acordaram quando houve, em 1968, a ofensiva do Tet3, que mostrou que a guerra estava longe de ser vencida, o que deu grande impulso às manifestações que acabaram por tirar os EUA dessa guerra inglória.

Nós não estamos numa guerra, é bom deixar isso claro. Nosso problema é, pelo menos por enquanto, de segurança pública, mas a forma como está sendo tratado é errada e pode levar a três cenários ruins. Do menos ruim para o pior, são eles:

1. Agravamento momentâneo da crise;
2. Estado crônico de insegurança;
3. Restrição às liberdades civis.

Outra conseqüência dessa visão míope é que o governo paulista, principalmente os responsáveis pela segurança pública, deixou de se preparar para as crises – afinal, a situação está sob controle, não?

Na verdade não está. Um breve histórico da sucessão de crises servirá para mostrar que o PCC sempre teve a iniciativa das ações e as respostas dos órgãos de segurança sempre foram ineficazes.

A história do PCC já foi relatada em vários periódicos, portanto não vou chover no molhado. Apenas lembrar a cronologia. A organização nasce em 1993, num presídio do interior paulista, como uma das inúmeras associações de presos que existem nas penitenciárias pelo mundo4 Muito de seu discurso imitava o do Comando Vermelho, os apelos à liberdade e justiça, o propalado companheirismo entre os presidiários etc. No final da década a organização já tinha uma presença forte no sistema penitenciário paulista. Um dos motivos disso é que a Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) cometeu um erro ao espalhar os membros do PCC que estavam concentrados no Carandiru.

Eles foram deixados em paz para se organizar até 2001, quando ocorreu o primeiro embate sério com o Estado. No mês de fevereiro o PCC desencadeou uma megarrebelião no sistema prisional paulista. Os órgãos de segurança do Estado foram pegos totalmente de surpresa. Devido ao tamanho do problema, 28 presídios ou Centros de Detenção Provisória (CDPs) nas mãos dos detentos, a Polícia Militar e a SAP demoraram vários dias para controlar a situação. Praticamente todo o efetivo móvel da PM foi utilizado na operação de retomada dos presídios.

Em 2003 começou o segundo embate. Primeiro a morte do juiz-corregedor de Presidente Prudente Antonio José Machado Dias, em 14 de março. No final do ano começam os ataques às bases da PM e delegacias de polícia. Nesses ataques morreram alguns policiais, mas logo após os primeiros casos a polícia tratou de se resguardar, mantendo a maior parte de seu efetivo dando segurança a suas próprias instalações.

O que o PCC aprendeu nesses dois embates. A primeira lição foi que as rebeliões levavam a polícia a cercar os presídios tirando todo o efetivo pesado das ruas. A segunda, que atacar a polícia fazia com que as  patrulhas de rotina fossem suspensas, pois toda a polícia territorial voltaria para as bases, deixando as ruas livres.

No terceiro embate, iniciado em maio deste ano, o PCC utilizou as lições aprendidas nos anos anteriores. A partir das 20 horas do dia 12 uma série de mensagens pedindo apoio e informando ataques começou a cruzar os ares através dos rádios da polícia. Horas depois, no decorrer daquela que seria uma longa madrugada, outras notícias davam conta de que estavam em curso rebeliões em dezenas de presídios paulistas.

Durante todo o fim de semana os organismos policiais ficam correndo de um lado para o outro, tentando simultaneamente se defender dos ataques e cercar os presídios para controlar as fugas. A polícia some das ruas. Com exceção de alguns bloqueios, todo o efetivo estava empregado nessas duas tarefas.

Ciente disso, nas primeiras horas da segunda-feira o PCC muda a tática e novamente surpreende os órgãos de segurança. Os criminosos passam a queimar ônibus e metralhar bancos. Sem muito critério, aparentemente de forma aleatória, os atentados ocorrem na capital, no interior e na Grande São Paulo.

Por toda a manhã e início da tarde a população fica refém de notícias desencontradas, sem saber o que realmente está acontecendo. Nenhum órgão governamental centralizou as notícias, tentou dissipar os boatos, ou mesmo respondeu às questões levantadas pela imprensa e pela população. No final do dia, em meio a um festival de boatos, se estabelece o pânico na capital. As empresas liberam os funcionários e todos correm para casa, causando um dos maiores congestionamentos da história paulistana.

Na quarta-feira as coisas começam a voltar ao normal. Uma comissão de policiais é enviada para o oeste do Estado para conversar com Marcola, um líder da organização criminosa preso há anos. Depois disso as rebeliões terminam em todos os presídios e os ataques na rua também cessam. A boataria, negada pelos que participaram da conversa, é que houve um acordo com o criminoso, que concordou em dar a ordem de parar os ataques. Isso, porém, é irrelevante. Tenha ou não sido feito um acordo, a mensagem que chegou à população carcerária é de que Marcola “é o homem”. Que até o Estado se curva aos desejos dele. Se o efeito esperado foi criar ou reforçar uma liderança, os responsáveis pela conversa não poderiam ter agido com maior eficiência.

Aí então a polícia começa a agir. Já na segunda-feira havia notícias de várias mortes de suspeitos, além de umas poucas prisões. No dia seguinte, com a situação quase sob controle, o padrão se manteve. O maior número de civis mortos em supostos confrontos entre criminosos e polícia ocorreu entre os dias 15 e 16. Nesses mesmos dias se registrou o maior número de vítimas que não tinham ligação com o PCC ou com os casos chamados de “resistência seguida de morte”. Ocorreram 74 mortes por arma de fogo no dia 15 e 68 no dia 16. A média do primeiro trimestre do ano foi de 18 por dia.

Algumas delas foram encaradas pela Justiça como execução por parte dos policiais e outras terminam por levar a população às ruas para protestar porque pessoas sem nenhum envolvimento criminal teriam sido mortas pela polícia em supostos confrontos. É o caso de um garoto que morreu no ponto do ônibus onde esperava a namorada.

Para tornar a situação mais complicada, os responsáveis pela segurança pública só começam a se manifestar publicamente quando o pior da crise já havia passado, e um deles ainda soltou uma pérola da sabedoria justificando as mortes. A frase, que deve ficar para a história, foi “a caçada continua”.

Por algum tempo a situação se acalma, talvez por conta da Copa do Mundo, mas semanas depois o PCC inova. Começa a atirar contra guardas penitenciários, uns poucos ataques por dia, que resultam em vários mortos. A situação se mantém tensa por semanas, com os guardas ameaçando entrar em greve se não garantissem sua segurança. Após semanas tensas a situação explode de novo. Em poucos dias são realizados cerca de 400 atentados, sendo o alvo preferencial os ônibus urbanos.

Mais uma parada de duas semanas para retomar o fôlego, e o PCC volta a atacar, utilizando as velhas táticas de queimar ônibus e agências bancárias, mas inovando num ponto: utilização de explosivos em prédios públicos. A sede do Ministério Público paulista e a Secretaria da Fazenda são dois dos alvos. Uma bomba que não explode é colocada no Poupa Tempo que fica embaixo da garagem do Deic. Carros do Deic são incendiados num estacionamento defronte ao organismo que deveria centralizar as ações contra o crime organizado.

Em 13 de agosto de 2006, estávamos em meio a outra crise. Como de costume, o PCC inovou e pegou a segurança com as calças na mão. Foi seqüestrado um jornalista da Rede Globo e a exigência dos seqüestradores foi  de que a emissora transmitisse um filme feito pelos criminosos com suas reivindicações. Até o momento em que escrevo o jornalista ainda não foi libertado. Em compensação, o boato é de que houve disputa entre policiais para ver quem comandaria as investigações.

Enquanto tudo isso ocorria, os órgãos de “inteligência” da Segurança Pública continuavam a não trocar informações e aceitavam os mais variados boatos como informação confiável. É o caso de algumas interceptações telefônicas em que foram mencionados ataques contra instalações elétricas. Segundo as conversas gravadas, isso aconteceria num determinado fim de semana. As polícias correram de um lado para outro sem que nada tenha acontecido. A falha dessa atitude foi aceitar qualquer conversa interceptada como planejamento de futuros crimes. Será que nunca alguém se perguntou se a pessoa que transmitia as supostas ordens tinha autoridade dentro da organização para fazê-lo? Será que não era um membro de último escalão jogando conversa fora? Ou, pior ainda, será que não foi uma contra-informação, levada aos telefones por criminosos que sabiam estar sendo grampeados?

Apesar de muito breve e necessariamente incompleta, a cronologia apresentada aqui permite discernir algumas coisas:

• O PCC tem uma estratégia em cada ação, e muda as táticas de acordo com a necessidade;
• A ação da Segurança Pública é sempre pós-fato e não mostra nenhuma estratégia;
• A ação do PCC, apesar dos problemas de comunicação da cúpula com as bases, é coordenada;
• A Secretaria de Segurança paulista ainda não conseguiu coordenar seus esforços.

E é essa falta de coordenação e estratégia que necessitamos corrigir, para que, pelo menos, os órgãos de segurança do Estado fiquem em pé de igualdade com a organização criminosa. Para que isso ocorra,  porém, é preciso que a Secretaria de Segurança resolva agir e efetivamente gerir a crise.

Nem sempre é conveniente copiar modelos estrangeiros, pois muitos não se adaptam à realidade brasileira. No caso em tela, porém, existe um precedente que mostrou resultados extremamente positivos numa situação mais complexa que a nossa. É o caso da Antimáfia italiana, que foi extremamente eficiente, reduzindo o poder da Máfia e colocando atrás das grades líderes fugitivos da Justiça havia décadas. Tudo isso foi possível através da atuação de um grupo de procuradores e policiais que empreenderam uma ação conjunta contra a Máfia. Todas as ações tiveram respaldo legal5 e ocorreram sob o comando dos magistrados.

A estrutura da Antimáfia era a mesma que já havia vencido a luta contra as Brigadas Vermelhas, que tinham uma forma de atuar muito parecida com a do PCC. A diferença entre ambas as organizações é que as Brigadas vinham das universidades, não dos presídios, por isso eram mais estruturadas ideologicamente.

Infelizmente essa opção não é possível aqui, tendo em vista que o poder do promotor de Justiça é muito menor do que na Itália. Nada impede, porém, que se crie um gabinete de crise composto de policiais, promotores, especialistas de outras áreas etc.

Por esse gabinete teria de passar toda e qualquer informação sobre o PCC, para analisar os dados esparsos que chegam. Porque, no final das contas, o objetivo é criar conhecimento sobre o  assunto PCC, de modo a contar com informações em tempo real, ou seja, que permitam antecipar os atentados ou pelo menos minimizar seus efeitos6.

Outra atribuição do gabinete seria montar um plano de atuação que contivesse os seguintes ingredientes:

• Objetivos de curto, de médio e de longo prazo, todos factíveis e não visionários;
• Estratégias realistas para alcançar cada um desses objetivos;
• Táticas necessárias e viáveis para implementar as estratégias;
• Apoio logístico para as ações empreendidas.

Feito esse plano, seguir de acordo com ele, só alterando as táticas quando se mostrarem insuficientes. O que não pode ocorrer é ser dada uma ordem de “caçada geral”, porque aí as coisas podem sair do controle. E sair do controle significa mortes desnecessárias e muitas vezes de inocentes. E cada uma dessas mortes tem um custo muito grande para o Estado. E o custo é aumentar a base de apoio do PCC, que vem crescendo na periferia, mesmo entre jovens considerados de boa índole. Segundo relato de professores de ensino médio, hoje em dia toda turma de alunos tem um ou dois, pelo menos, que consideram Marcola um líder.

O motivo disso me foi revelado há muito anos, quando eu ainda era policial, por um policial militar que detestava trabalho malfeito. Segundo ele, cada vez que um de seus colegas batia na cara de um adolescente, ou o humilhava de qualquer forma, crescia “o lado de lá”, ou seja, aumentava o contingente de possíveis criminosos. Imaginem então o que ocorre quando um jovem é morto pela polícia por engano. A probabilidade de seus amigos partirem para o antagonismo com o Estado, ou mesmo se voltarem para o crime, aumenta exponencialmente.

Nós já perdemos a primeira batalha pelos corações e mentes quando deixamos que a desigualdade se estabelecesse no país de forma tão gritante.

A segunda batalha também foi ganha pelo crime organizado quando, muitas vezes depois de um pequeno delito, nós enviamos os jovens para a Febem, o órgão que mais formou criminosos no mundo.

A terceira derrota da sociedade brasileira ocorreu quando trancafiamos e esquecemos os criminosos comuns, permitindo que fossem adotados pelo crime organizado. Em nenhum momento o Estado se preocupou em impor ordem nos presídios, sempre deixando os piores criminosos ditar as regras.

Não podemos perder mais batalhas. Se o caminho para combater o PCC passar pela truculência e/ou pela ilegalidade, corremos o risco de derrotar essa organização criminosa e lançar as bases de uma maior e mais forte.

Jasão sobreviveu aos guerreiros que surgiram dos dentes de dragão porque tinha Medéia, que lhe ensinou um truque mágico. Atirando uma pedra no meio dos guerreiros eles começariam a lutar entre si até se destruir. Como não é possível encontrar uma nova Medéia disposta a ajudar, e a mágica anda fora de moda, nós não podemos nos dar ao luxo de semear dentes de dragão.

Guaracy Mingardi é doutor em Ciência Política, diretor científico do Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para Prevenção de Delito e Tratamento do Delinqüente (Ilanud), assessor do procurador-geral de Justiça de São Paulo