Cultura

A literatura brasileira perdeu em 19 de julho José Maria Cançado, aos 54 anos, vítima de problemas cardíacos. Aqui, a homenagem ao professor, militante político, amigo, escritor, crítico literário, dono de vasta produção publicada na imprensa do país

José Maria Cançado, o Zé, usava com freqüência, para identificar o lugar dos romances, uma expressão já presente no seu livro inaugural sobre Proust, por ele atribuída, se não me falha a memória, a Georg Lukács: era “a pátria do transcendental desabrigo”. Na dimensão existencial, nosso amigo foi muito fiel a essa dimensão da entrega e do abandono. Referindo-se a Proust, recolhe palavras de outro autor para dizer que “é mais moral deixar se perder e se consumir do que se conservar”. Uma tradição que tem sua síntese na tradição cristã: “Quem quiser salvar sua vida vai perdê-la; e quem perder sua vida pelo Reino de Deus vai encontrá-la”. Encontra também respaldo no melhor da música popular brasileira: “Quem acha vive se perdendo...”

Se a vida do Zé Maria foi num processo crescente, nos limites possíveis da liberdade conscientemente assumida, de desprendimento e de mergulho nos conflitos e contradições sociais do Brasil, de vivência radical das paixões, por outro lado ele jamais perdeu o chão de sua irrefreável vocação de intelectual e escritor. Jamais perdeu o abrigo da cultura, que conseguiu elevar à condição de uma autêntica Paidéia e, sobretudo nos últimos anos, foram suas sandálias e mocassins andantes encontrando a solidez do território, ainda que áspero, da pátria brasileira e partilhando, cada vez mais, a aventura caminhante do povo brasileiro.

Fascinante na vida do Zé Maria essas duas dimensões que dialeticamente se integravam e tornavam mais universal sua rica, generosa, mas também complexa personalidade, que, sem favor algum, vivia nas fronteiras, além do talento, da genialidade. O encontro dessas duas dimensões, e a construção de sua unidade, não se dava de forma pacífica e harmoniosa, era aos trancos, como ondas opostas, conflitantes. Ele, exposto ao tempo, vivia a árdua tarefa de integrar, a cada dia, os dois apelos, as duas vocações que lhe pegavam pelo mais fundo, direito e avesso, “avesso do avesso” do seu ser. Era o encontro de duas forças poderosas, cada uma por si já capaz de definir um destino e dar pleno sentido à vida: uma inteligência absolutamente singular e privilegiada, dissêmica, e uma sensibilidade humana e social, a capacidade de compartilhar com os pobres. Dizia ter feito uma opção de classe. Mais do que uma escolha ideológica, política, uma opção intelectual, por mais que estivessem presentes todos esses substratos na sua estupenda formação intelectual, era uma adesão da carne, do coração. Manifestava-se, aí, no encontro com o povo, toda a inquietação cristã do Zé Maria. Apesar de todos os batentes da vida, ficou-lhe sempre a figura amorosa de Jesus. “O inconsciente é o Cristo.”

José Maria amealhou na infância, na juventude, durante toda a vida, uma notável cultura literária e humanística. Tinha uma extraordinária capacidade de leitura e absorção, uma memória poderosa. Daí sua paixão, entre outros, por Proust e Pedro Nava. Também Drummond era um memorialista. Sua busca incansável do conhecimento não era fria e acadêmica. Sua conversa fácil com os clássicos da literatura e do pensamento universais, longe de afastá-lo, o repôs em face da realidade, dos desafios e das possibilidades do Brasil. Encontrou na cultura brasileira o espaço primordial e anunciador das conquistas de seu povo e de sua civilização. Essa refinada e universal compreensão do país levou-o de Proust a Carlos Drummond de Andrade e Pedro Nava. Nesses dois últimos livros, sobre Drummond e Nava, mais do que a biografia e o estudo sobre dois clássicos da literatura brasileira, está toda uma compreensão do processo histórico do país. Em Os Sapatos de Orfeu está todo o contexto histórico, cultural e político em que se desenvolvem a vida e a obra do grande poeta. É o Brasil político e cultural de quase todo o século 20. Nas Memórias Videntes do Brasil – A Obra de Pedro Nava, a abordagem é mais ousada, é uma leitura do Brasil que antecede ao próprio autor estudado e sua influência retrospectiva na formação da nacionalidade, os faróis da obra naviana iluminando nosso passado e clareando obras anteriores como a de Gilberto Freyre.

O Transplante É um Baião-de-dois é a manifestação madura do poeta “recém-inaugurado”, a vivência partilhada de um coração que bateu em outras emoções “vindo de outros dias e noites / e outras festas de São João”. É a experiência da UTI, sofrida, imprevisível (“Espero. Minha condição agora é pastoral”), mas sempre aberto, poeticamente aberto aos outros, coração público, aos pacientes, enfermeiros, enfermeiras, como “o enfermeiro Devanir que sabe que ali, no box a box da UTI, gente é para brilhar (...) o banho que dá Devanir / redesenha e areja saco, pitchula, pimbau, pintinho amarelinho / seio já anastomizado, árdua virilha, âmago e memória / dos pacientes e nelas deixa alguma coisa a marejar / É o programa mínimo de Devanir para a UTI. / Seu programa máximo descolaba e movem os astros”.

José Maria, de Proust a Devanir, traduzindo “O Princípio Esperança” de Ernest Block para os parceiros e amigos do Hospital Felício Rocho, último capítulo de sua grande aventura existencial.

Conheci José Maria nos anos 70. Não foi amizade à primeira vista. Ela foi se construindo aos poucos, encontros esporádicos, conversas cuidadosas de duas trajetórias diferentes. Sabia-o, naqueles tempos difíceis, redator do bravo jornal de resistência democrática do Diretório Central dos Estudantes, Gol a Gol – Se Pegá com o Pé É Dibra, prefaciador de livros como os contos de Não Passarás o Jordão, de Luiz Fernando Emediato, meu colega de ginásio em Bocaiúva. Publicava artigos de crítica em jornais e revistas. Além das questões políticas e sociais que então, e sempre, nos mobilizaram, Guimarães Rosa foi um dos primeiros eixos mais consistentes de nossas conversas mais definitivas. No contexto da obra rosiana começamos a tomar as primeiras cervejas, a esticar o papo noite adentro e a fantasiar sobre o ensaio que faríamos juntos sobre o Grande Sertão: Veredas. José Maria abriu-me os horizontes: Proust, Thomas Mann, Tolstoi, Konrad, uma leitura muito pessoal e aberta sobre Marx e Freud, Gramsci, Walter Benjamin, Simone Weil, Mário de Andrade, a música popular brasileira. Eram e sempre foram muito boas as trocas sobre cinema, futebol. Um dos nossos passatempos, com outros amigos, era escalar a seleção brasileira da nossa cultura e formação de todos os tempos.

Já naquele tempo, Zé Maria se revela o escritor com marca e registros próprios: não escreve parecido com ninguém. Seu estilo é próprio, pessoal, intransferível. Nas conversas e na escrita emerge a relação enamorada, erótica, apropriada das palavras. Estas estavam sempre disponíveis, prontas para a forte e inesquecível expressão verbal. Custava pouco a Zé aquilo que o mestre Aires da Mata-Machado Filho chamou de a busca do termo próprio. Os termos lhe acodiam prontos, amorosamente acolhidos, processados, celebrados. É um prazer lê-lo, era um prazer ouvi-lo. Só não foi a pura manifestação do verbo porque foi também a forte, sofrida, dilacerada manifestação da carne e dos sentimentos. Compartilhava a mística escarnada e sensual de Hélio Pellegrino que falava dos  amantes que se encontram para fazer florir os corpos e que tanta fé expandia no dogma da ressurreição da carne.

No início dos anos 80, estendemo-nos definitivamente a mão da amizade e estabelecemos a boa e larga prosa do mundo. Eram tempos de intensa militância política, sopravam, ainda que tímidos, os ventos da abertura democrática e os movimentos operários voltavam a marcar presença no cenário nacional. Estivemos juntos na construção do Partido dos Trabalhadores e na campanha de 82. Quando a emenda das Diretas caiu no Congresso Nacional ficou gravada em muitos olhos e corações sua expressão de perplexidade e sofrimento, captada no momento por um cinegrafista, quando acompanhávamos na Praça da Rodoviária a apuração dos votos.

Depois veio o tempo fecundo do Leia Livros. A vocação do jornalista, crítico e ensaísta lúcido, inteligente, culto, refinado, sempre em relação intensa e apaixonada com as palavras e os textos, se expande e consolida. Quando a rica experiência do Leia se extingue, deixando um vazio cultural no país, Zé Maria permanece um tempo em São Paulo, no Folhetim da Folha, e logo retorna a Belo Horizonte com o projeto do livro sobre Drummond, que o mobilizou por uns dois anos. No processo de elaboração da biografia historicamente contextualizada (agora felizmente reeditada com a merecida dignidade), descobre uma personalidade que o encantou: Otto Lara Rezende.

Em 1992, o primeiro grande susto: o enfarto prematuro aos 40 anos. Superou com garra e determinação, mas ficaram dores e seqüelas. Foi participante ativo em nossa campanha para a Prefeitura de Belo Horizonte. Fez algumas sugestões inesquecíveis: anteviu – as gravações para os programas de televisão eram feitas com antecedência – o Dia de Finados. Ponderou-me que, ao invés de pedir votos aos vivos, homenageasse os mortos que construí ram a grande capital dos mineiros: os trabalhadores, os emigrantes, as pessoas de bem que plantaram na cidade as sementes da solidariedade, da inclusão e da justiça social, os intelectuais, artistas, cientistas que expandiram nossos já belos horizontes. Fizemos um programa comovente. Wagner Tiso cedeu as músicas.

Na prefeitura foi nosso agitador cultural. Primeiro, como secretário- adjunto de Maria Antonieta na Secretaria Municipal de Cultura; depois, na assessoria direta do prefeito. Pensou e empolgou-se com os preparativos para as comemorações do centenário de Belo Horizonte, espalhando pela cidade textos e poemas por ela inspirados, como o clássico de Mário de Andrade. Dedicou- se às temporadas de poesia e à publicação da coleção que também recebeu o nome de “Temporada de Poesia”.

Voltamos a trabalhar juntos no Instituto Jacques Maritain, vinculado à Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Cuidava ele das publicações do Coração Informado, no qual foram divulgados textos preciosos de Jacques  Maritain (traduzido por Moacyr Laterza), Henrique de Lima Vaz, Dom José Maria Pires, Marcelo Perine, Juarez Guimarães. O Coração Informado estendeu-se a uma experiência de pequenos filmes – projeto desenvolvido em parceria com a professora Vera Victer, o Departamento de História da PUC sob a liderança da professora Carla Ferretti e a TV Horizonte – sobre pessoas e entidades que participaram da história de Belo Horizonte numa perspectiva emancipatória: Dazinho, Hélio Pellegrino, Sônia Viegas, os que lutam pelo direito à moradia, entre outros, estiveram presentes. Nesse período fez o doutorado e escreveu a tese – a obra sobre Pedro Nava e seu farol circular, prospectivo e retrospectivo sobre o Brasil. Tornou-se professor, ele que já fizera dos bares, das ruas e praças o espaço socrático de seu magistério.

Logo, para a dor dos familiares e amigos, o coração voltou a fraquejar. Depois de alguns meses de sofrimento e espera, veio o transplante e com ele este pequeno grande livro que entra tão bem na melhor tradição poética de Minas e do Brasil. Os resultados da cirurgia não foram os esperados: rejeição, “dores assassinas”, novas tentativas operatórias para aliviar a dor que também fracassaram. O hospital passou a ser uma segunda residência. Zé Maria viveu tudo isso com extraordinária força e entrega de si mesmo. Mais do que uma resignação, foi um confrontar-se consigo mesmo, com os limites e fragilidades da condição humana, com seus companheiros embarcados com ele no mesmo “Ita, Ita do Norte... com eles passamos por aldeias de Darcy, por anotações dos trópicos tristes de Levi, pelas partes de dentro do grande e pequeno envaginamento”. Aos amigos, sempre palavras de acolhimento, estímulo, a adesão incondicional aos pobres, a inteligência presente, compartilhada e luminosa até o fim. Cada vez mais forte o compromisso com a vida que sabia coletiva como o coração é público. As córneas de tantas e tão bem guardadas leituras foram doadas, “e minha córnea, eis minha córnea”. No gesto final a expressão plena da partilha. Foi, sem dúvida, o intelectual mais orgânico que conheci. Lia, estudava, apreendia tudo, escrevia muito, mas jamais deixou de cumprir o sagrado itinerário das ruas, jamais faltou ao encontro marcado com os vitimizados, sem pieguices ou paternalismos. Como Simone Weil, foi simplesmente se tornando um deles. Na doença, multiplicou a vida. O Baião-de-dois virou um Baião-de-muitos, o mergulho na dança e no sonho coletivos. Nostálgico de Deus, Zé Maria encontrou o melhor caminho para chegar a Ele: o segredo de Vicentina – “Ela habita desde muito uma terra completa”. Continuaremos conversando, Zé Maria.

Patrus Ananias é ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, foi prefeito de Belo Horizonte (1989-1992)