Cultura

A reapresentação da minissérie A Casa das Sete Mulheres traz à tona questionamentos e curiosidades sobre episódios e personagens da Revolução Farroupilha

Quem era essa gente? Eles eram assim mesmo? Alguns lutavam por causas, não apenas por interesses? Quando da primeira apresentação da minissérie A Casa das Sete Mulheres, pela Rede Globo, reapresentada a partir de agosto, essas eram as perguntas que muitas pessoas me dirigiam, espantadas com a natureza de personagens que viam. Como diz o título, as protagonistas da minissérie são femininas. Mas a maior parte das perguntas a mim dirigidas quando da primeira apresentação dizia respeito aos homens e suas batalhas.

A minissérie se passa durante a Revolução Farroupilha (1835-1845), a maior e mais longa guerra civil brasileira, que começou durante o período regencial de nossa história e terminou no Segundo Reinado, sob o império de d. Pedro II.

Como sou gaúcho, e escrevi sobre a revolta, amigos e conhecidos me traziam aquelas perguntas que tinham algo de perplexidade, mas mais que tudo revelavam o amplo desconhecimento que grassa sobre muito de nossa história e suas particularidades. O general Netto era tão ousado assim? E Bento Gonçalves, tão nobre? Esse Teixeira Nunes comandou mesmo brigadas de ex-escravos, do lado dos revoltosos? E esse italiano, Giuseppe Garibaldi, era assim tão romântico?

Muitas perguntas se referiam também à história de Anita, que se uniu a Garibaldi quando os revoltosos tomaram Laguna, em Santa Catarina, em busca de um porto de mar, em 1839. Anita é uma das figuras mais atraentes e  apaixonantes dessa história toda. Casada com um sapateiro bronco em Laguna (isso é história, não é só minissérie), com familiares seus envolvidos com os revoltosos republicanos, Anita terminou se apaixonando pelo revolucionário italiano, que, além da beleza física, era cercado pela aura do exílio e da perseguição. Durante muito tempo este foi seu lugar neste panteão da história: “heroína por amor”, dizia-se dela; “A mulher do general” foi título de romance epistolar escrito sobre ela por uma de suas bisnetas. Hoje se sabe que não foi bem assim, ou melhor, que não foi só isso. Anita se apaixonou também pela causa da liberdade, romanticamente concebida naqueles tempos. Lutou com Garibaldi nas batalhas farroupilhas. Foi presa por duas vezes, e nas duas vezes conseguiu fugir. Na segunda vez levava, na fuga, um filho de quinze dias.

Juntos, eles lutaram com os farroupilhas até 1841. Depois, instigados por emissários de Giuseppe Mazzini, o líder da sociedade secreta (naquela altura não mais tão secreta) “Jovem Itália” desde seu exílio em Londres, foram para  Montevidéu. Lá Garibaldi liderou a Legião Italiana na luta pela independência do Uruguai.

Em 1848, Garibaldi retornou à Itália, com Anita e mais três filhos. Ambos lutaram pela unificação do país e lá ela morreu, em 1849, durante a fuga dos garibaldinos da Roma sitiada pelos franceses, austríacos e partidários do poder terreno do papa.

Vamos por partes. A Revolução Farroupilha, ou Guerra dos Farrapos, começou em 1835, quando tropas rebeldes, comandadas por Bento Gonçalves, tomaram Porto Alegre e depuseram o presidente da província. A luta foi se  alastrando pelo estado inteiro, com episódios dramáticos. No ano seguinte, em 1836, o general Antonio de Sousa Netto proclamou a República Riograndense, separando o Rio Grande do Sul do Brasil, mas guardando a possibilidade de reunir-se ao restante do país caso as demais províncias aderissem ao sistema republicano e constituíssem uma federação.

Bento Gonçalves foi preso nesse ano e remetido ao Rio de Janeiro, onde na prisão conheceu Garibaldi, que aderiu à revolução e rumou para o sul com outros italianos. Além dele, dois outros se notabilizaram: o Conde Tito Lívio Zambeccari, que foi feito prisioneiro e voltou para a Itália depois de anistiado, e o galante Luigi Rossetti, que se tornou um dos principais escritores do diário oficial dos revoltosos, O Povo, e morreu em combate. Foi ele quem apresentou Garibaldi a Bento Gonçalves, ainda no Rio de Janeiro.

Como era costume nessas guerras, os revoltosos recrutaram escravos, a quem prometiam a liberdade. O coronel Teixeira Nunes comandou duas brigadas de Lanceiros Negros, como eram conhecidos, e elas tornaram-se o terror dos imperiais. Em 1839 os farroupilhas, comandados por Garibaldi e Davi Canabarro, transportaram dois barcos por terra, da Lagoa dos Patos até o mar, e com um deles (o outro naufragou) atacaram Laguna, onde o italiano conheceu a jovem Anita. Derrotados ao final do ano, os revoltosos retornaram ao Rio Grande do Sul, onde a luta continuava.

Depois de dez anos de batalha, o fôlego dos rebeldes esgotou-se. Seguindo a tradição tão brasileira da conciliação pelo alto, os imperiais, comandados por Caxias, propuseram uma paz que foi considerada honrosa pela maioria. Durante o processo de negociação o coronel Teixeira Nunes, que era odiado mais que todos, além de Netto, foi perseguido e morto. Segundo algumas versões, ele morreu diretamente em combate, atingido por uma lança; segundo outras, depois disso, ainda com vida, ele foi degolado por um oficial “caramuru”, apelido que se dava aos imperiais. Netto recusou-se a permanecer no Brasil. Foi para o Uruguai, deixando para trás uma frase que fez fortuna: “Vou para o Uruguai. Lá é uma república. E o meu sombrero (chapéu) perdeu o costume de fazer barretadas para imperador”, ou algo assim, de acordo com a legenda regional.

As perguntas a mim dirigidas mostravam certa perplexidade das pessoas ao tomarem conhecimento dessa história e desses personagens. É que não estamos acostumados, na maior parte da história do Brasil, a veia povoada por combatentes ousados, alguns deles verdadeiros idealistas. Nas escolas antigas ensinava-se um respeito quase religioso por figuras pátrias sobre as quais decorávamos algumas coisas. Depois, nossa história passou por um descrédito generalizado, em que só se viam galhofas, traições e até palhaçadas, ou massacres vergonhosos, como o de Canudos.

Para ilustrar tais afirmações, posso dizer que nos meus tempos de infância lia-se a história do ponto de vista de Caxias; depois, acostumamo-nos a aprendê-la do ponto de vista do Chalaça, o companheiro de farras de d. Pedro I. Algo começa a mudar: protagonistas de lutas populares, como Zumbi, como Frei Caneca, começam a ser valorizados mais sistematicamente. Mas esse é ainda um movimento novo, que não atingiu a amplitude que merece. Na ponta dessa valorização está a releitura do episódio de Canudos.

Assim, a história contada na minissérie da Globo (e com a glamourização inevitável dos personagens) surpreende a maior parte do Brasil, e provoca certo encanto.

A minissérie é uma adaptação, por Maria Adelaide Amaral e Walter Negrão, com direção de Jayme Monjardim e Marcos Scechtman, do romance homônimo de Letícia Wierzchowski. A relativa novidade do romance e da adaptação é contar a história da guerra a partir do ponto de vista das sete mulheres que moram na casa de Bento Gonçalves, em sua estância perto do rio Camaquã. Entre essas mulheres, sobressaem Dona Caetana (escrevia-se Cayetana), a uruguaia que era esposa de Bento e a matriarca da casa, vivida por Eliana Giardini, e Manuela, sobrinha do general, interpretada por Camila Morgado. Na vida real (e na ficção) a jovem (que existiu de fato) teve um envolvimento amoroso com Garibaldi, antes de ele ir para Santa Catarina e conhecer Anita. Mandada para a cidade de Pelotas, nunca se casou, e até a morte era  conhecida como “a noiva de Garibaldi”.

A Revolução Farroupilha é hoje objeto de culto no Rio Grande do Sul, e foi e é também motivo de polêmicas por vezes veementes. Discute-se sobre o papel dos escravos, se eles foram de fato incorporados aos revoltosos ou se eram só usados, sobre o caráter republicano da revolta, sobre os motivos da guerra, se eram apenas econômicos ou se havia razões também políticas. O certo é que os farroupilhas tinham muitas facções. Se os estancieiros (grandes proprietários de terra) conseguiram manter a hegemonia entre eles, só os seus motivos econômicos (obter vantagens para a produção de charque) não são suficientes para explicar uma guerra que mobilizou, de ambos os lados, 20 mil combatentes durante dez anos e tornou-se a pedra fundamental da identidade cultural dos gaúchos. Como lembra CLR James em seu clássico Os Jacobinos Negros, sobre a revolução haitiana, “there are periods in human history when money is not enough”.

Disse anteriormente que o ponto de vista do romance de Letícia Wierzchowski é relativamente novo porque, por paradoxal que pareça, o ponto de vista feminino é constitutivo do principal clássico romanesco sobre a formação histórica do sul do Brasil, no período em questão, O Continente, de Erico Verissimo. O personagem que formou o cartão-postal do romance foi o simpático e desbragado Capitão Rodrigo Cambará. Estouvado, beberrão, mulherengo,  o personagem de Erico é uma síntese de pelo menos “três gaúchos”, ou de seus perfis: o livre, herdeiro dos tempos em que não havia cerca nem fronteiras delimitadas; o militarizado, reduzido a recruta ou oficial de caserna nas guerras civis ou de fronteira; e o manietado, atado ao trabalho explorador ou incerto (por conta própria), em meio às estâncias guerreiras que iam se transformando em fazendas lucrativas, classificação que devo à intervenção de Paulo Emílio Salles Gomes em banca de doutorado.

Mas esse perfil de “macho desabrido”, a quem desagrada morrer na cama, é emoldurado pelas figuras femininas de Ana Terra e de sua neta Bibiana Terra Cambará – que esposa o Capitão e a ele sobrevive –, firmes ancoradouros num território então tomado pelas guerras e estrepolias. Só para ficarmos nos 100 anos do século 19, destes o Rio Grande do Sul passou 46 em guerra, e os outros 54 chorando os mortos da última e se preparando para a próxima. Os homens morriam cedo – e as mulheres é que permaneciam: essa tradição foi fixada em várias ficções sobre esses tempos formadores.

Assim como despertou entusiasmos  e surpresas, a minissérie levantou críticas. As mais veementes dirigiam-se à inevitável glamourização da história, com a inevitável ascensão a primeiro plano das intrigas passionais. Diante disso, pode-se argumentar: a César o que é de César, à Globo o que é da Globo. Maria Adelaide Amaral e Walter Negrão conseguiram de qualquer modo preservar uma visão balanceada dos revoltosos farroupilhas e de suas contradições políticas e econômicas, bem como dos imperiais, além de terem preservado a aura romântica de vários dos personagens, o que, afinal, correspondia ao “espírito do tempo”. Um dos personagens mais bem construídos nesse sentido foi o do italiano Luigi Rossetti, que, de resto, está mesmo a merecer uma ampla biografia em nossas letras. Libertário, sua pregação radical despertou o desagrado dos farroupilhas mais conservadores, e ele acabou sendo alijado de seu posto no jornal O Povo, quando foi enviado com Garibaldi e Davi Canabarro para a expedição em Santa Catarina. Foi dos primeiros a pregar que a luta devia cessar e ser substituída por uma campanha republicana e abolicionista que abrangesse todo o Brasil.

Outra crítica levantada é a da mistura das paisagens. As locações das filmagens misturam os penhascos e abismos característicos do chamado “Planalto da Neve”, a nordeste do estado, com as coxilhas e planícies da região central e do extremo sul. É verdade: mas o ganho fotográfico é evidente, e as furnas e precipícios, afinal, têm algo de metáfora das paixões e ódios que despertam nesses momentos agônicos da história e vincam para sempre a memória coletiva e as raízes de uma formação cultural.

Feitas as contas, considero o saldo da minissérie bastante positivo. Apresenta episódio central da formação brasileira nos primórdios do país e o faz despertando curiosidade sobre o momento histórico e os personagens que o viveram, falando tanto de contradições econômicas quanto de sonhos, ideais e devaneios. Um aspecto não desprezível é que a minissérie ressalta a importância da dimensão política nos acontecimentos.

Essa dimensão pode ser observada de diferentes ângulos, e sob as mais diferentes apreciações. Do ponto de vista dos italianos, por exemplo, a revolução no sul do Brasil era parte de uma luta que se estendia à Europa, a de uma internacional republicana que se batia contra monarquias e impérios. A casa imperial luso-brasileira era aliada, por casamento e interesses, à casa de Habsburgo, do Império Austro- Húngaro, que dominava o norte da Itália. Lutar contra o Império do Rio de Janeiro era também lutar pela independência da Itália.

Pode-se dizer: politicamente, esse era o lado mais frágil das facções que compunham a frente farroupilha. É verdade, tanto que pela segunda metade da guerra já não havia italianos entre os revoltosos. Mas ainda assim essa presença teve um alcance histórico notável, fundamental para consolidar a memória desse episódio já no período imediatamente posterior à guerra.

Vemos ecos desses condottieris italianos, ainda que pelo lado negativo, por exemplo, no personagem Loredano, vilão de O Guarani, de José de Alencar, publicado em 1857. E tão logo foram publicadas na Europa, as Memórias de Garibaldi, assinadas por Alexandre Dumas, foram traduzidas na imprensa (inclusive no Rio de Janeiro) e em livro, despertando polêmicas e versões sobre os acontecimentos.

Também as lutas entre farroupilhas e imperiais, e as desavenças internas, podem ser analisadas do ponto de vista do enfrentamento entre facções da maçonaria, uma minoritária mas ativa, “vermelha”, republicana e abolicionista, e outra “azul”, monarquista e contemporizadora, que acabou predominando. Igualmente, pode-se observar o enfrentamento como esteio da contradição entre a centralização autoritária na política, de que o Rio Grande do Sul se tornou um dos celeiros nacionais, e a concepção de um pacto federativo que cedesse ampla autonomia às províncias e sobretudo a suas oligarquias, de que também o estado sulino se tornou celeiro.

As camadas médias – ainda completamente pulverizadas e pouco numerosas – não estiveram ausentes do episódio, como atestam figuras curiosas como o Padre Chagas e Pedro Boticário, fundamentais na primeira tomada de  Porto Alegre pelos revoltosos. Finalmente lá estavam também os “de baixo”, a peonada a depender dos chefes políticos, a escravaria liberta para servir às tropas, modelo do que seria usual na Guerra do Paraguai. Bem olhada, a minissérie e seus episódios são manancial atraente para discussões ainda reveladoras sobre a história do Brasil, em escolas e fora delas, e numa época em que a idéia de “política” passa por tanta desvalorização em nosso país, o que só favorece a despolitização e o predomínio de quem já domina.

Flávio Aguiar é professor de Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo, autor de Anita, prêmio Jabuti em 2000

O que mais ler

É indispensável que se leia O Continente, primeiro dos três romances de Erico Verissimo que compõem a trilogia O Tempo e o Vento (Companhia das Letras). Há também muitas biografias e romances disponíveis sobre o duo Giuseppe e Anita Garibaldi, inclusive as Memórias dele, trabalhadas por Alexandre Dumas (LPM). Também há os romances de Tabajara Ruas, Netto Perde Sua Alma (Record) e Os Varões Assinalados (Mercado Aberto). O romance de Letícia Wierzchowski está publicado pela Record. Last, but not least, há meu romance Anita, publicado pela Boitempo Editorial (F.A.).