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A provável reeleição de Lula abre caminho para a realização plena do programa democrático

Escrever sobre eleições às suas vésperas é sempre uma aventura racional: os filósofos mais argutos da política inscreveram definitivamente em sua ordem o imprevisível, o fortuito, o inesperado e até o irrazoável. A boa previsão em política deve acolher, em espaço nobre, o incerto.

Afirmado isso, parece muito provável hoje a vitória de Lula nas eleições presidenciais de 2006. Há, de fato, uma lógica relacional e comunicante em urso: a força de Lula nutre a tibieza de Alckmin.

Três impasses rondam, desde o início, a candidatura do PSDB-PFL: a nacionalização de sua candidatura (em particular no Nordeste), a disputa com Lula entre os leitores pauperizados, que formam a maioria, a dificuldade em polarizar em torno de si as forças de centro-esquerda em um eventual segundo turno. São impasses em um sentido rigoroso do termo, uma vez que são cada vez menos objeto da ação do candidato e cada vez mais agem, circunstanciam, condicionam a candidatura Alckmin.

Mas seria injusto atribuir a Alckmin tais impasses. Estes, de fato, o precedem, vêm de antes mesmo do lançamento da candidatura de Serra em 2002 e começaram a se manifestar mais claramente já no início do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso. Trata-se do ciclo de ilusão/desilusão com o projeto neoliberal no Brasil, do processo de sua deslegitimação social, de suas derrotas na cultura e na inteligência nacional, de sua capacidade de se estabelecer até como o centro estável de uma coalizão das classes dominantes, de ser capaz de interrogar de forma luminosa o futuro do país.

Utilizou-se o conceito gramsciano de transformismo para caracterizar o fundamento político da candidatura Serra em 2002: aquela estratégia que a própria inteligência do candidato nomeou muito corretamente de continuidade sem continuísmo”, que o levou a trocar a prioridade aliancista do PFL para o PMDB, no sentido de disputar de novo o “centro” e pretender rivalizar com Lula em seu próprio terreno, o da crise social do aís e do compromisso na criação de empregos com carteira de trabalho. De lá para cá, o barco da transição de paradigmas, mesmo navegando em águas revoltas e às vezes incertas, não cessou de navegar. O programa do neoliberalismo e toda a sua parafernália de diretrizes parece hoje, mais do que em 2002, passadismo. Alckmin, um conservador em um partido liberal, não foi capaz ainda de construir claramente sua identidade política e de capitalizar uma vontade nacional. Poder-se-ia falar aqui de “amorfismo”, de um conteúdo sem forma e de uma forma sem conteúdo, de uma candidatura que até agora tem tropeçado em sua própria sombra.

A imagem e sua força

As figuras da formação do povo brasileiro – o índio, o branco, o negro – foram chamadas para apresentar o programa de Lula em rede nacional. Fala-se em revolucionar a educação, em transformá-la em uma prioridade estratégica no segundo mandato, de abrir-lhe todo o seu potencial cultural de democratização e de criação de futuros possíveis. O mote da música tema, um baião de não deixar ninguém ficar sentado, exalta a “força do povo”. Estaríamos, pois, vivendo um momento Darcy Ribeiro de nossa experiência política de redescoberta e transformação do Brasil?

“Mais fortes são os poderes do povo”, dizia o personagem no filme de Glauber. Só que agora, arrematava lucidamente o escritor José Maria Cançado, recém-falecido, outra voz póstuma a nos falar, é ele mesmo, povo, quem diz. Diz para si mesmo, para todos, para o grande Outro que sempre tramou roubar-lhe a fala e o direito a ter voz própria.

Em geral, de A a Z, todos os analistas de pesquisas treinados no trato refinado das pesquisas quantitativas e qualitativas captaram a insondável, a intransponível, a resistente adesão popular que continuou a proteger a figura histórica de Lula no momento mais difícil de sua vida política, recompôs o solo de sua legitimidade pública e impulsionou a ascensão de sua candidatura nas eleições de 2006. Mais que todas as outras eleições presidenciais anteriores, a conjuntura de 2006 foi marcada por essa assimetria de adesão à candidatura Lula quanto mais se ia do cume da pirâmide social até suas bases mais profundas.

Teria havido uma inversão no circuito tradicional dos formadores de opinião: o caminho ao revés dos círculos mais instruídos para os menos instruídos, dos mais ricos e afortunados para os sem-posse, do Centro-Sul para o Nordeste. Divididas as classes médias em um sentido amplo, polarizada no topo e na base, a pirâmide social teria rachado no plano horizontal de uma forma muito mais nítida do que antes. E um movimento de opinião, de baixo para cima, do conceito do vivido para a vida livre do conceito, sem preconceito, foi afirmando uma tendência.

Um seminário de mídia, organizado por um jornal protagonista da convergência dos meios de comunicação contra a figura histórica de Lula e do PT, reuniu-se para decifrar a dissociação entre a informação dirigida e a formação de opinião dos brasileiros. Inconsciência, apatia, ignorância, império da racionalidade dos estômagos saciados contra os valores mais nobres da política?

A consciência popular é uma consciência trágica, nos interpela Marilena Chaui. “Eles sabem, mas não sabem que sabem.” E, portanto, são como personagens de uma vida cujo destino lhes escapa. Mas agora, diz-nos a filósofa, parece que estão começando a “saber que sabem”.

Sentido social do voto e sentido geográfico, nacional, do voto: voto nordestino, severino, sertanejo, de todos os sertões brasileiros, inclusive os da cidade grande. 2006 e o início dos anos 60: a questão nordestina. É e lá que a “onda Lula” veio, o epicentro de sua força expansiva. Pura imaginação de um lugar que desde Euclides da Cunha fustiga a consciência litorânea, ilustrada mas cosmopolita do Brasil? Baião, xote, xaxado: música tema dos candidatos na sensibilidade dos sertões. Pura coincidência?

Há, decerto, a voz dissonante da candidatura do PSOL-PSTU-PCB. Mas ela, também, mesmo em sua identidade sectária de esquerda, repete a pirâmide, só que invertida: quanto mais povo, mais difícil de fazer penetrar a mensagem aguda do anti-Lula.

Derrota dos preconceitos

Seria deixar de ler o que vem escrito em outra língua que não a de um código estritamente racionalista e acadêmico entender uma certa desdramatização da disputa presidencial em 2006 até o momento como indício certo de uma despolitização.

Há nessa desdramatização, nessa incapacidade de dar vida e conseqüência a uma polarização política e ideológica por parte das forças do neoliberalismo brasileiro, muitas vitórias da cultura política democrática e popular. Em 2006 estão vindo abaixo muitos preconceitos, conceitos afirmados antes da experiência e contra a prova dela, reiterados apenas pela força inercial.

O primeiro preconceito é aquele que opõe os gastos públicos em programas sociais universalistas e distributivos aos investimentos na economia. À esquerda e à direita, os candidatos alternativos a Lula deixaram de lado discursos e argumentos contra os programas de inclusão social. Ora, a qualidade da vida social de um povo e, em particular, seu acesso pleno à educação e ao conhecimento são fundamentos para um crescimento sustentado na economia moderna.

O segundo preconceito é aquele que afirmava que o aumento dos gastos do Estado com políticas sociais distributivas e universalistas ameaça o equilíbrio fiscal. Não conseguiu adesão o discurso que acusava o governo Lula de praticar uma “farra fiscal”. É preciso lembrar que o processo acelerado de endividamento do Estado brasileiro nos anos 90 se deu em um quadro de restrição e estreitamento das políticas sociais. Em um contexto de elevação das receitas com um crescimento mais acelerado da economia, com a criação de uma massa de empregos formais que permitirá a redução do déficit previdenciário e com um gasto qualitativamente menor com juros da dívida pública, é possível, através de uma gestão eficiente e democraticamente controlada, expandir, aprofundar e dar novo alcance às políticas sociais.

O terceiro preconceito é o da apologia do mercado desregulado, da privatização, da terceirização, das políticas sociais restritas e focadas como caminho para o desenvolvimento. Esses discursos, sintetizados no chamado “choque de gestão”, perderam capacidade de ocupar a agenda nestas eleições. Ao reverso, vai se legitimando a noção da necessidade de uma forte e pactuada regulação da vida econômica, da necessidade do controle social de um Estado fortalecido em suas responsabilidades republicanas.

O quarto preconceito é a estigmatização como “populista”, “caudilhesca” e perigosa para a democracia do avanço da participação e dos direitos populares. O elitismo que concebe o pobre como incapaz para a vida política, como depositário passivo e manipulável de mensagens que lhe são enviadas, está sofrendo uma derrota histórica nestas eleições. Ao contrário, o caminho que se abre é o do alargamento da base social da democracia brasileira, da expansão da cidadania ativa na vida do país.

O quinto preconceito neoliberal, de fundo udenista, é pretender impugnar a vida democrática por meio do antipluralismo, da desqualificação odiosa do adversário, da falsa moralização da vida pública. A “cruzada neo-udenista” apartou-se do clamor público pela elevação ética da política brasileira, pelo aprimoramento da qualidade de suas instituições representativas, eleitorais e partidárias, pelo combate mais vigoroso e implacável à corrupção sistêmica. Ao posicionar-se, de forma nítida e à frente de todos os outros, pela urgência e prioridade da reforma política, a candidatura Lula iniciou o restabelecimento de um diálogo fundamental com a consciência democrática indignada dos brasileiros e, ao mesmo tempo, fechou o caminho para a pura instrumentalização eleitoral do clamor público pela ética.

Força criadora da imaginação

Quando o ministro da Fazenda, Guido Mantega, em entrevista ao jornal Valor Econômico e à revista IstoÉ , afirma a meta de levar a taxa de juros Selic a um patamar de 5% reais ao ano, ao mesmo plano da taxa de juros de longo prazo hoje já praticada pelo BNDES, ele está cometendo uma heresia em relação aos dogmas neoliberais e, ao mesmo tempo, apontando uma nova dinâmica de crédito e investimento público para a economia brasileira. Os neoliberais brasileiros procuraram naturalizar a noção de uma taxa de equilíbrio de um patamar mínimo de 10% reais ao ano para a economia. Essa redução seria, na verdade, fundamental para avançar na desfinanceirização.

Quando o ministro Luiz Dulci, da Secretaria-Geral da Presidência, em entrevistas ao jornal Folha de S.Paulo e à revista IstoÉ, argumenta firmemente em favor de um novo conceito de governabilidade e da prioridade para a democracia brasileira de uma reforma política que instaure a fidelidade partidária e o financiamento público exclusivo das campanhas eleitorais, ele está incidindo sobre outro impasse decisivo vivido pelo governo Lula.

Vai assim se formando, a partir da reflexão sobre a experiência vivida, uma nova agenda para o país. É a formação pública dessa nova agenda que pode acelerar a mudança da correlação de forças no Congresso Nacional, nos governos estaduais e maximizar a vitória de Lula.

É tudo ao contrário do que se afirmou sobre a relação entre o programa histórico e o programa de governo. Os primeiros anos do governo Lula levaram ao ponto máximo a tensão entre o programa histórico do PT e as ações de governo. É como se as forças do governo e do próprio partido tivessem sido fortemente polarizadas pelo realismo político, por uma pragmática de governo adaptada e até receptiva a forças políticas e ideológicas que vinham em sentido contrário ao sentido histórico de sua identidade. Em uma medida importante, este último ano de governo iniciou uma dinâmica de aproximação mais nítida entre as opções de governo, o seu discurso público e o sentido histórico dos programas transformadores do PT e do PCdoB.

Um possível segundo mandato para o governo Lula certamente permitiria aprofundar essa dinâmica virtuosa. À condição de entender o programa histórico do PT como um programa aberto às sínteses novas de uma experiência inédita de mútua configuração entre os valores da democracia e os valores do socialismo.

“A gente tem é que sonhar, senão as coisas não acontecem”, diz, em bela entrevista à revista Caros Amigos , o “anjo comunista” e maior arquiteto brasileiro, Oscar Niemeyer. A imaginação da terra nova, do Brasil após o neoliberalismo, insufla a navegação da travessia.

Juarez Guimarães é cientista político, professor na UFMG, editor do Periscópio, boletim eletrônico da Fundação Perseu Abramo