Internacional

O segundo mandato de Lula é recebido com satisfação por governantes dos países latino-americanos, asiáticos, europeus e africanos. Para eles o presidente brasileiro representa uma garantia de estabilidade, capacidade de diálogo e moderação numa região marcada por tensões crescentes

Desde Havana até Buenos Aires, na noite do domingo 29 de outubro todas as chancelarias latino-americanas respiraram aliviadas. Ganhando triunfalmente as eleições com 60,8% dos votos, Lula afastou as inquietações despertadas na região pelos resultados do primeiro turno, quando o presidente brasileiro superou seu principal adversário, Geraldo Alckmin, por apenas 7 pontos percentuais. Kirchner, Chávez, Tabaré Vázquez foram entre os primeiros líderes a ligar para cumprimentar Lula. Nas horas seguintes, foi a vez dos primeiros ministros europeus, africanos, asiáticos, e de George W. Bush. Diferenças políticas e ideológicas à parte, para todos a reeleição do presidente brasileiro representa uma garantia de estabilidade, capacidade de diálogo e moderação numa região marcada por tensões crescentes. O Brasil, com sua especificidade lingüística, seu imenso tamanho territorial e seu fragmentado sistema partidário, é uma realidade de difícil compreensão para os países vizinhos. E poucos entenderam realmente os problemas enfrentados pelo Partido dos Trabalhadores desde meados de 2005, a amplitude dos programas sociais do governo, a queda de Lula nas pesquisas e, poucos meses depois, sua espetacular recuperação. Todos, no entanto, tinham claro que o equilíbrio da região – e, portanto, de seus respectivos governos – seria mais garantido com um segundo mandato de Lula.

No segundo turno, Lula ganhou com uma votação percentual semelhante à de 2002, mas com um discurso mais à esquerda e uma composição de seu eleitorado muito mais polarizada por classe social: foram os pobres que garantiram a reeleição, enquanto os setores mais ricos, em sua maioria, apoiaram o candidato tucano. Apesar de não haver ainda nenhuma evidência de que o voto popular em Lula esteja se transformando no embrião de uma maioria política de classe, o resultado do segundo turno parece confirmar uma tendência de fundo dos processos eleitorais dos últimos anos em toda a América Latina. Ganhando (Brasil, Argentina, Bolívia, Venezuela, Chile) ou perdendo (Peru, Colômbia, México) os candidatos de esquerda, desde 2002 todas as eleições realizadas na América Latina se transformaram num debate sobre como as massas podem fazer ouvir suas vozes e sobre o papel dos Estados nacionais na promoção do desenvolvimento econômico e da distribuição de renda. Voltaram com força à pauta temas como a rejeição às privatizações e o controle nacional dos recursos energéticos e naturais: uma inversão de rota de 180 graus em relação à hegemonia do pensamento único neoliberal que varreu o continente por mais de dez anos.

Nos Estados Unidos e em alguns países europeus, muitos parecem encarar essa evolução como uma ameaça – nos últimos dois anos se multiplicaram artigos na mídia, livros e seminários acadêmicos dedicados ao suposto retorno do “populismo” na América Latina –, mas também enxergam Lula como um contraponto aos excessos, não somente retóricos, de outros líderes. O mexicano Jorge Castañeda – um passado longínquo de comunista, um mais recente de chanceler do presidente conservador Vicente Fox e um presente de professor numa universidade de Nova York – teorizou, em artigo publicado em maio último na influente revista Foreign Affairs, a existência de duas esquerdas na América Latina: uma moderna, globalizada, que entende as razões da economia de mercado e das boas relações com os Estados Unidos; e outra atrasada, raivosa, nacionalista, antiamericana. Do primeiro grupo fariam parte Lula, o presidente uruguaio Tabaré Vázquez e a chilena Michelle Bachelet; o segundo seria integrado pelos bichos-papões de Washington: Fidel Castro, Hugo Chávez, Evo Morales, o peruano Ollanta Humala (derrotado em maio nas eleições presidenciais), o mexicano Andrés Manuel López Obrador (derrotado em agosto) e Daniel Ortega, que acaba de ser eleito presidente da Nicarágua. Kirchner também se integraria a este grupo, pela agressividade verbal contra os organismos financeiros internacionais e pelas políticas “populistas” dos peronistas. Apesar de ser quase caricatural, essa versão é levada a sério em muitos círculos internacionais.

O presidente Lula não é dado a arroubos verbais na política internacional, nem os aprecia. Mas o Brasil mostrou claramente sua escolha de campo e a inconsistência da teoria das duas esquerdas contrapostas, em várias ocasiões. Na reunião dos países das Américas, realizada em Mar del Plata em novembro de 2005, por exemplo, Chávez teve muitas oportunidades para discursos inflamados contra o “imperialismo norte-americano”, mas a posição de Lula foi determinante para decretar oficialmente o enterro da proposta de Área de Livre Comércio das Américas (Alca), defendida com unhas e dentes pela administração Bush. Meses depois, a Venezuela entrou oficialmente no Mercosul: uma decisão muito mais política que econômica, em contraposição à tentativa de Washington de isolar Chávez na região. Na noite da vitória, Lula fez questão de voltar ao assunto, lembrando que “hoje ninguém fala mais de Alca e todo mundo fala do Mercosul”. E poucos dias depois, falando a jornais europeus, fez um elogio explícito ao presidente venezuelano – “creio que Chávez seja um bem para a Venezuela, é o presidente que mais se preocupou com os pobres nos últimos trinta anos” −, ainda que ressaltando as diferenças na relação que os dois países mantêm com os Estados Unidos: “excelente” no caso do Brasil, extremamente tensa no caso do país vizinho.

A prioridade dada à integração sul-americana e às relações Sul-Sul, frente às relações comerciais tradicionais com a Europa e os Estados Unidos, não foi a única mudança da política externa brasileira. No governo Lula, o Brasil faz questão de tentar ser “mais generoso” com seus vizinhos, especialmente os mais pobres, uma postura que teria sem dúvida mudado em caso de vitória de Alckmin. O exemplo mais claro é o da Bolívia, depois do anúncio da nacionalização dos hidrocarbonetos, no último 1° de maio, seguida pela ocupação das instalações da Petrobras. A iniciativa de Morales foi uma provocação, já que o governo brasileiro não havia sido avisado com antecedência, mas não causou uma reação dura demais. Em privado, Lula ficou furioso, e fez chegar uma advertência clara a seu colega boliviano. Mas, em público, se mostrou compreensivo, sabendo, por um lado, que Morales estava enfrentando uma campanha eleitoral complicada (para as eleições da Assembléia Constituinte, no dia 2 de julho) e, por outro, que o Brasil não pode ter uma atitude hegemônica – ou, pior ainda, imperialista – frente a seus vizinhos. Por essa decisão, Lula e o chanceler Celso Amorim foram duramente atacados pelos setores conservadores e pela imprensa, que esperavam uma reação mais dura frente à “humilhação” sofrida, mas permitiram a Morales sair de cabeça erguida do episódio, desarmando um perigoso foco de tensão no instável e complexo quadro político boliviano.

Com a Argentina, a postura brasileira está sendo parecida. Com o objetivo de reconstruir o setor industrial nacional de seu país, devastado pelas políticas de abertura desenfreada nos anos 90, o governo de Néstor Kirchner vem violando regularmente partes dos acordos do Mercosul, anunciando medidas protecionistas contra os produtos brasileiros. Em outros tempos, isso teria provocado uma duríssima crise diplomática. O governo Lula, entretanto, apesar das pressões internas de alguns setores, decidiu fechar os olhos, evitando que Kirchner sofresse os ataques da oposição. O Brasil sabe que seu interesse estratégico de longo prazo é o fortalecimento do Mercosul, portanto adota a mesma postura seguida pela Alemanha e pela França durante os longos anos da construção da União Européia: os países mais ricos têm de pagar a conta pela integração.

Diante da explícita satisfação dos países vizinhos, a reação dos Estados Unidos à reeleição de Lula foi bem mais lacônica. Segundo os relatos, a conversação telefônica entre Bush e Lula teria sido muito cordial, mas um comunicado do Departamento de Estado, em atitude incomum, ao comentar a vitória de Lula, lembrou os escândalos de corrupção e a falta de maioria do PT no Congresso. Uma forma de sublinhar que Lula não receberá nenhum cheque em branco de Washington. Ao mesmo tempo, até os falcões da Casa Branca vêem Lula e o Brasil como fatores importantes de equilíbrio na região, diante dos arroubos de Chávez e do conflito sem fim na Colômbia.

Na Europa, a reeleição de Lula foi recebida com satisfação. De um lado, o Brasil é hoje reconhecido como um dos protagonistas da cena internacional e, como animador do G-20 (o grupo dos vinte países em desenvolvimento que reúnem 60% da população mundial), um ator central em todas as negociações na Organização Mundial do Comércio. De outro lado, a política externa independente do governo Lula está afinada com a reivindicação de um mundo multipolar defendida tradicionalmente pela França. O governo espanhol do socialista José Luis Rodríguez Zapatero e a coalizão de centro-esquerda liderada por Romano Prodi na Itália também têm ótimas relações com o governo Lula e posições convergentes em muitos temas da política internacional, da luta contra a fome à condenação da invasão norte-americana ao Iraque.

Giancarlo Summa é jornalista, especialista em América Latina, foi assessor de imprensa internacional das campanhas de Lula em 2002 e 2006.

Lamia Oualalou é jornalista, responsável pela cobertura da América Latina do jornal francês Le Figaro.