Política

Os institutos de pesquisa ainda devem uma explicação. Por que não conseguiram captar o crescimento do campo progressista e a consequente derrota do carlismo na Bahia?

A vitória de Jaques Wagner, eleito governador da Bahia no primeiro turno das eleições deste ano, foi uma estrondosa surpresa em todo o país e mesmo na Bahia, onde os diversos institutos de pesquisa indicavam uma vitória folgada do adversário, o governador Paulo Souto. Falava-se no máximo na hipótese de segundo turno. Wagner, nos diversos comícios que fez após 1º de outubro, discorria sobre as razões da surpreendente reviravolta – ao menos para aquilo que os institutos de pesquisa, a imprensa e parcelas daquele setor denominado formador de opinião apontavam.

Em primeiro lugar, diagnosticava Wagner, havia o evidente cansaço da população com os dezesseis anos ininterruptos de domínio político da corrente chefiada pelo senador Antonio Carlos Magalhães. Depois, havia a identificação dele, Wagner, com o governo Lula e com o próprio presidente, ambos muito fortes ante a população baiana. Em terceiro lugar, a existência de um Judiciário livre. As sentenças deixaram de ser dadas de acordo com os desejos do coronel-senador, como dantes. E, por último, o fato de o povo baiano querer desagravar o presidente, tantas vezes xingado pelo senador e por seu neto, este na Câmara, numa atitude que a população baiana evidentemente desaprova, como demonstrou.

O interessante a registrar é que Wagner, quando se dispôs a vir para a Bahia, em março deste ano, teve uma conversa com o presidente Lula, e este, sabendo de tudo o que se dizia da Bahia, sobre a alardeada força do senador-coronel, aconselhou-o a permanecer em Brasília até porque vinha desempenhando com grande capacidade o papel de principal articulador político do governo, e isso nos mais duros momentos da crise política.

Wagner não relutou: iria para a disputa até porque se dispunha a dar muito trabalho à força política comandada pelo coronel-senador, líder de uma das mais antigas oligarquias nordestinas. Com isso, obrigaria a oligarquia a se preocupar com a Bahia, e não com Lula e seu governo. Mas, mais do que isso, garantiu ao presidente que não havia hipótese de o PFL ganhar as eleições na Bahia, para a estupefação de um incrédulo Lula, que quase como um bondoso e relutante pai disse mais ou menos o seguinte: “Já que é o que você quer, então vá”.

Foi, viu e venceu. Lula, no comício realizado logo depois do primeiro turno em Salvador, relatou mais ou menos isso, acrescentando que poucos dias antes Wagner lhe reafirmara que venceria as eleições, contra todos os prognósticos das pesquisas, e Lula mais uma vez, no íntimo, duvidou. Errou novamente, e ele estava muito feliz no palanque ao dizer que errara. Os institutos de pesquisa até hoje devem uma explicação sobre a Bahia. E não foi uma vitória apertada – teve mais de 600 mil votos de frente. No segundo turno, Wagner tornou-se um símbolo para o PT.

Não foi, de fato, uma vitória qualquer. ACM, político que se consolidou no ventre da ditadura militar, domina a Bahia há quase quatro décadas, ressalvando-se os dois anos do governo Waldir Pires. Ele foi governador uma primeira vez, biônico, indicado pelos militares, entre 1971 e 1975. Uma segunda entre 1979 e 1983. Havia, ainda, sido prefeito de Salvador, entre 1967 e 1971. Para cargos majoritários, foi eleito apenas uma vez, em 1990, governando o estado entre 1991 e 1995. E de lá para cá fez sucessores.

Um longo domínio

Trata-se de um longo domínio de um autêntico filhote da ditadura, como dizia Brizola em tempos idos. Nos últimos dezesseis anos, tem contado com um impressionante sistema de comunicação, concedido a ele por ele mesmo quando ministro das Comunicações do governo Sarney. A Rede Bahia, retransmissora da Rede Globo, com emissoras em todas as regiões do estado, é uma poderosa máquina de propaganda do carlismo, e durante esses anos propagou uma visão tão idílica sobre a Bahia que conseguiu, nessa última fase, enganar até os principais líderes do próprio carlismo, que tinham certeza absoluta da vitória.

Como não vencer? Tudo ia bem, o governo era quase perfeito, o governador era bem avaliado, a televisão mostrava a terra da felicidade todos os dias, não havia jeito de não ganhar logo no primeiro turno. Era a verdade da TV. A mentira repetida pode enganar durante um bom tempo, mas chega um momento em que ela engana apenas os que a divulgam.

O povo da Bahia reagiu a essa máquina de propaganda, a essa usina ideológica de mentiras, de modo surpreendente para quem não acompanhava o que acontecia no mundo da política – esse mundo verdadeiramente capaz de produzir milagres, como diria Hannah Arendt.

Wagner foi o intérprete competente das esperanças e desejos do povo baiano. Essa história, para reduzi-la, começou em 2002, quando Wagner se dispôs a ser candidato a governador. Ali sim, quando começou a jornada, parecia uma aventura ou uma ousadia excessiva, pois os índices das pesquisas não lhe davam mais do que 2% ou 3% de preferência. No fim da jornada, chegou a quase 39% dos votos. Poucos dias antes do desenlace, ele aparecia com 18%, a evidenciar que não há acaso no comportamento dos institutos, ao menos na Bahia.
PT como liderança da oposição
A história dessa jornada, para contá-la melhor, se inicia em 1998, quando o PT lança o então vereador Zezéu Ribeiro como candidato a governador, chegando a 18% dos votos. Desde lá, o PT transforma-se no principal partido de oposição do estado, subtraindo essa condição dos partidos de centro. Com as eleições de 2002, afirma uma nova e significativa liderança: Wagner.

Ao falar do cansaço do povo com o carlismo, Wagner poderia acrescentar, se quisesse, que o cansaço se acumula há coisa de quatro décadas. O senador-coronel edificou um sistema político autoritário, fundado no mando unipessoal, clientelista, patrimonialista, e, como já se disse também, com a mídia televisiva sob controle. Os meios impressos que não rezassem pela cartilha dominante eram mantidos sob pressão, como ocorreu com o jornal A Tarde, nos últimos tempos, quase asfixiado economicamente pelo governo do estado, que se recusava a anunciar no mais importante veículo impresso da Bahia.

Nesta eleição vitoriosa, Wagner, com o PT, conseguiu agregar mais de dez partidos, entre os quais PCdoB, PSB, PMDB, PV, PPS, PMN, PTB, e atrair parte do PDT, à medida que lançou o ex-governador João Durval Carneiro como senador, também vitorioso graças à campanha de Wagner. O prefeito João Henrique Carneiro, do PDT, assim como o pai candidato, apoiou Wagner. Conseguiu atrair até uma parte do PSDB, mesmo que este, na Assembléia, não deixasse de criticar duramente o presidente Lula.

Este foi também um grande mérito, a habilidade para costurar uma frente ampla, que deu capilaridade à campanha, garantindo presença militante em todos os municípios. Apoiando-o, no entanto, não havia mais do que 70 prefeitos dos 417 do estado, o que dá razão de sobra ao que Wagner vem repetindo: a eleição dele é devida exclusivamente ao povo da Bahia. E mostra que prefeito não é decisivo em pleitos majoritários.

A Bahia e o desejo de mudança

A Bahia é um dos estados de maior exclusão social do país. A oligarquia carlista conseguiu transformá-lo no campeão absoluto das pessoas com fome. Obrigou o governo Lula a desenvolver ali o maior programa do Bolsa-Família de todo o país. Até a eleição de Wagner, mais de 1,2 milhão de famílias recebiam o benefício, atingindo boa parte dos 5 milhões de pessoas abaixo da linha de pobreza.

Nas eleições de 2002, o carlismo podia ter percebido o sinal vermelho. A população já dava sinais de cansaço. Já não acreditava tanto nas mentiras da televisão. O povo mandava um recado, com os mais de 38% de votos em Wagner, que percebeu ali qual era o movimento, qual o sentimento que começava a tomar conta da população. No início de 2005, encomendou uma pesquisa e naquele instante o governo Paulo Souto e o próprio governador desfrutavam de uma situação bastante favorável. Mas havia um dado impressionante, o qual deu, então, a confiança de que era possível desmontar o sistema político montado havia décadas: mais de 80% do povo almejava mudanças.

Esse anseio por uma reviravolta não havia ainda encontrado um intérprete, um político capaz de agregar, de unir as forças de oposição, dar um recado à população de que a disputa seria para valer. Só ocorrera isso em 1986, na memorável vitória de Waldir Pires. Depois, nunca mais. Só agora, vinte anos passados, Wagner tinha a chance de derrotar as forças carlistas. Detectou esse desejo de mudanças e não pôde responder a ele imediatamente devido à crise política que se iniciou em meados de 2005, quando então foi chamado pelo presidente para ser o principal articulador político do governo.

Tinha, no entanto, a convicção de que a crise seria contornada, especialmente por conta das políticas públicas do governo Lula, voltadas para os mais pobres, e pelo fato de que o governo nunca perdera o rumo, apesar do violento ataque da mídia e da oposição. E também pelo extraordinário carisma do presidente, talvez o caso mais forte na história brasileira de identificação entre um presidente e seu povo. Em março, desembarcou na Bahia disposto a valer-se daquele desejo de mudança, atender à esperança de mais de 80% da população. Soube fazê-lo, num duplo movimento: agregando um amplo leque de forças políticas e indo com muito vigor ao encontro do povo.

O olhar brilhante da esperança

Foi aqui, quando foi ao encontro do povo, que Wagner pôde perceber o quanto era forte aquele desejo. Ele olhava em torno nas caminhadas, nas carreatas, percebia o entusiasmo das pessoas nos comícios. Quando as pessoas mais velhas começam a querer abraçá-lo, quando as crianças passam a gritar seu nome, quando a juventude acena com entusiasmo, quando tantos o olham com olhos de esperança, ele passa a acreditar ainda mais firmemente na vitória. Convence-se de que não era apenas mais um pensamento desejoso, alguma coisa acontecera na alma do povo, alguma transformação importante. O povo apalpava a esperança que ele personificava.

Justiça seja feita: às vezes Wagner era um peregrino pregando no deserto. Não no que diz respeito ao povo, mas em relação a seus próprios pares. Poucos acreditavam, a sério, que ele tinha possibilidades de vencer. Foi sua obstinação e a resposta do povo que foram dando aos militantes do PT e dos outros partidos senão a certeza pelo menos alguma confiança de que era possível vencer.

Ele reafirmava, e parecia um visionário: “Nós vamos ganhar no primeiro turno”. A surpresa da vitória foi também da própria oposição. Por isso, ele pode dizer que deve sua eleição ao povo da Bahia, que derrotou não só o carlismo como a mídia televisiva e até a incredulidade de alguns políticos mais próximos. A mídia, com sua arrogância e seu partidarismo, foi derrotada não só no país como, de modo particular, na Bahia.

Com a vitória de Wagner, a discussão nos jornais girava em torno da questão se isso significava ou não o fim do carlismo. Aves agourentas chegam a vaticinar sua volta. A ninguém é dado o direito de ignorar que foi uma derrota histórica do carlismo. Isso é afirmado como reconhecimento de um processo que alçou uma nova liderança e um novo partido, o PT, que souberam articular a vitória soberba.

A vitória de Waldir Pires em 1986, extraordinária, vinha da maré montante da força do PMDB, sem que se desconheça a enorme capacidade de Waldir à época de também articular um amplo contingente de forças para derrotar Antonio Carlos Magalhães. Ele próprio, numa das viagens que fez com Wagner, dizia, antes do 1º de outubro, que a vitória dele, Waldir, era uma vitória anunciada. A de Wagner seria uma vitória não anunciada. Parece muito difícil que o carlismo, aquele que proclama que eleição se ganha com o dinheiro numa mão e o chicote na outra, retorne. E não há indicações de que seja um fenômeno meramente baiano. As oligarquias nordestinas perderam terreno de maneira fragorosa, vão-se constituindo em fantasmas do passado, para felicidade geral da Nação.

O coronelismo na oposição

Será a primeira vez na história que o coronel-senador atuará na oposição ao governo do estado e ao federal. Se houve ilusões no governo Lula de que ACM podia ser aliado em algum momento, se houve a visão de que as divergências com ele eram fruto de uma visão provinciana, e houve, todos esses falsos raciocínios se dissiparam em 2005, sobretudo com a eclosão da crise política. E foram enterrados, com pompa e circunstância, poucos dias antes de 1º de outubro deste ano, pelo presidente Lula. Em Feira de Santana, ao mesmo tempo em que fazia referências elogiosas ao filho dele, Luís Eduardo Magalhães, pela sua educação e civilidade, Lula criticava duramente o senador mal-educado, descortês, incapaz da convivência democrática. Então lembrou que o ex presidente Fernando Henrique chamava o coronel-senador de leão do Nordeste, mas para ele, Lula, não passava de um hamster.

A lembrança do rato de laboratório, feita pelo presidente, foi uma espécie de recado à Bahia: Lula não só queria Wagner governador como dizia que não havia quaisquer chances de alguma relação política com o chefe da oligarquia local. Há tempos o Planalto tinha consciência da impossibilidade de acerto com o coronel-senador, mas esse recado agora era dado em praça pública, que o recebeu em delírio. E o recado foi repetido em Salvador, também provocando a explosão do povo.

Essa condição − não haver mais nenhum governo a dar sustentação ao esquema montado durante décadas − muda o quadro político baiano e dá razão aos que afirmam que desta vez não há saída para o carlismo. Afinal, nisto todos os analistas concordam: o carlismo alimentou-se rigorosamente da máquina do Estado, seja da estadual, seja da federal, para reproduzir-se, além, claro, das prefeituras municipais.

Houve choro e ranger de dentes quando a notícia da vitória de Wagner explodiu. Aí os institutos de pesquisa não podiam mais tergiversar. Sabiam, os carlistas, que toda a máquina seria desmontada. “Faremos um governo republicano, mas nada do que foi montado para perseguir e excluir pessoas, para garantir privilégios, ficará de pé”, anunciou Wagner. Sem esse alimento, dificilmente o carlismo terá condições de se reproduzir, ao menos nos termos em que foi edificado.

Republicano e democrático

É evidente que a direita baiana ainda terá presença no estado, que ninguém se iluda. O que se diz é que dificilmente ela se articulará com os mesmos métodos. Para fazer a luta política, terá de se adequar à lógica de um governo republicano e democrático. Situação que nunca foi do agrado do coronel-senador. Tanto assim que nos últimos anos cometeu erro sobre erro, da fraude no Senado, que o obrigou a renunciar, ao grampo na Bahia, que o desmoralizou nacional e localmente.

Wagner sabe o tamanho da responsabilidade, a enormidade da tarefa. Como o sabem o PT e os demais partidos da frente que derrotou as forças comandadas pelo coronel-senador. A tarefa é reinaugurar a República na Bahia. Houve um tempo em que o Judiciário, o Executivo e o Legislativo estavam sob a jurisdição de um único homem. Com Wagner, esse tempo se acaba. É como instaurar o Estado de Direito.

Melhor ainda, trata-se de instaurar o Estado democrático, onde os cidadãos e cidadãs saibam que o governo lutará contra todos os privilégios, contra a exclusão social, contra os preconceitos de qualquer natureza. Será a favor do desenvolvimento com o pressuposto de que ele só tem sentido se distribuir renda. Capaz de retirar a Bahia da condição de campeã do número de pessoas com fome. Que permita o acesso amplo à educação de qualidade e à cultura, como à saúde. Que olhe para o campo com carinho, especialmente para a agricultura familiar. Este governo, republicano e democrático, é que representará o fim do carlismo. Foi por um governo assim que o povo livre da Bahia votou. Por isso se tem dito que o 1º de outubro de 2006 é uma espécie de novo 2 de Julho, a data de libertação da Bahia.

Emiliano José é jornalista e autor, entre outros livros, de Lamarca, o Capitão da Guerrilha e Carlos Marighella − O Inimigo Número Um da Ditadura Militar