Política

"Sem se entregar", assim viveu e morreu este devoto do povo brasileiro

“The record shows, I took the blows
And I did it my way!”
Versão de Paul Anka, interpretada por Frank Sinatra

Nos tumultuosos e apaixonados anos 60 do século passado, o pensamento dominante nas nossas esquerdas baseava-se na teoria da etapa “nacional-democrática” da revolução brasileira. Apesar da autoridade intelectual de algumas vozes discordantes, a maioria dos partidos e movimentos de massa centrava a luta política no combate ao imperialismo e ao latifúndio, como os principais obstáculos à democratização da sociedade e à autonomia das decisões internas. Era a etapa indispensável à criação das condições para rupturas em direção ao socialismo.

Tais objetivos eram considerados viáveis porque havia poderosas forças sociais e políticas interessadas nesse embate: o proletariado urbano; as massas rurais (despertando de letargia secular); segmentos importantes das classes médias (especialmente a burocracia do Estado, incluindo a militar); a burguesia nacional.

A estratégia foi montada em torno das “reformas de base” – transformações estruturais na agricultura, na terra urbana, no regime bancário, na tributação – todas voltadas para fortalecer o poder do Estado brasileiro no mercado capitalista.

Os trágicos acontecimentos de abril de 1964 encarregaram-se de demonstrar o equívoco da tese. Hoje, é fácil convencer-se disso. Mas, há quarenta anos, ela não era assim tão evidente, pois as posições defendidas por vários industriais de peso davam a impressão de que havia uma contradição insanável entre os setores nacionais e os setores multinacionais do capitalismo brasileiro. E a esquerda ansiava por conquistar o poder político e, a partir dele, fazer as reformas estruturais que permitiriam ao Estado brasileiro comandar a fase seguinte, do desenvolvimento industrial.

Deve-se lembrar que, tendo realizado com êxito um processo de industrialização por substituição de importações de bens de consumo, a economia precisava avançar, na direção das indústrias de bens intermediários e de bens de base. Esse novo patamar requeria maiores escalas de produção e maior volume de capital. Quem colocasse esse capital obviamente passaria a comandar o desenvolvimento econômico do país. Daí o braço-de-ferro entre o Estado (até então o mais importante investidor) e as multinacionais, já bem ancoradas no país, desde o Plano de Metas do governo JK. No começo dos anos 60, o adiamento dessa decisão já adquiria e política.

Entre os industriais que acreditavam na aliança da burguesia nacional com o Estado brasileiro, destacava-se a figura do então presidente do Sindicato das Indústrias de Fiação e Tecelagem do Estado de São Paulo e diretor da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, Fernando Gasparian.

Jovem, dinâmico, ex-líder estudantil (presidente do Centro Acadêmico Horacio Lane e da União Estadual dos Estudantes), combatente da primeira hora na campanha da Petrobras, ele encarnava a figura do capitão de indústria pronto para enfrentar o imperialismo.

O clima era de entusiasmo: “No ano 2000 o Brasil estaria entre as nações desenvolvidas do mundo”. A profecia era de Jacques Lambert e ninguém a punha em dúvida.

Mas Fernando não era um entusiasta apenas de discurso. No Sindicato da Fiação e Tecelagem, promoveu a primeira pesquisa abrangente acerca do nível tecnológico daquele ramo industrial; em Jundiaí, onde dirigia uma das fábricas de sua família, fundou um jornal progressista; em Varginha (MG) construiu uma indústria para fabricação de leite em pó, depois de convencer sua família, que havia tido um bom lucro com as operações do ano, a fazer esse grande investimento, para ajudar o Brasil a reduzir sua pauta de importações, onerada pela falta de fabricação desse produto no país. Assim que a Nestlé soube disso, construiu uma fábrica semelhante na mesma bacia leiteira, a fim de mover guerra de preços contra a fábrica brasileira.

Junto com sua companheira, Dalva – ela também, por direito próprio, ativa militante política –, Fernando usava sua vida social para fazer a ponte entre a jovem intelectualidade da esquerda que então despontava na política brasileira e os industriais que se opunham à entrega das riquezas do país aos capitais estrangeiros. Progressistas, trabalhistas, socialistas, comunistas de diversos matizes, cristãos de esquerda, industriais nacionalistas eram assíduos freqüentadores dos opíparos lanches que o casal oferecia aos amigos nas noites de sábado. Nesses serões, falava-se de vários assuntos, mas principalmente de política. Ali se montaram várias operações exitosas, articularam-se várias candidaturas – tudo sempre voltado para o fortalecimento da causa da Nação contra o imperialismo.

A luta nacionalista aproximou-o do governador Carvalho Pinto, outro político conservador cuja carreira havia sido construída na defesa dos interesses da Prefeitura de São Paulo contra a empresa canadense Light, concessionária dos serviços de energia elétrica da cidade. Ficaram amigos e, quando Carvalho Pinto desapropriou a Companhia Paulista de Estradas de Ferro, precisava de pesos pesados para assegurar uma administração competente, a fim de enfrentar a sovada acusação da ineficiência da máquina pública. Foi então que Fernando Gasparian e José Ermírio de Morais foram nomeados para os dois cargos principais da companhia.

Em 1964 Fernando adquiriu a América Fabril, então a maior fábrica têxtil da América Latina. Para dirigir a empresa, mudou-se de São Paulo para o Rio e novamente sua casa se tornou um centro de articulação política em apoio às reformas de base patrocinadas pelo presidente João Goulart. Nessa época passou a integrar o Conselho Nacional de Economia.

Perseguido pela ditadura

Quando Jango foi derrubado, começou uma segunda etapa na vida de Fernando – marcada pela coragem, generosidade e perseverança. Empenhado em ajudar os companheiros perseguidos pela ditadura, Fernando e Dalva os esconderam em sua própria casa, os ajudaram financeiramente a sair do país, foram visitá-los no exílio. Após trinta anos de normalidade institucional, não é fácil avaliar a coragem que era preciso ter para fazer o que eles fizeram – sem alardes de valentia e sem temor do perigo – com uma enorme delicadeza.

Em 1965, houve a primeira reação popular contra o golpe. Negrão de Lima, no Rio de Janeiro, e Israel Pinheiro, em Minas Gerais, derrotaram os candidatos da ditadura ao governo desses estados, provocando assim a primeira grande fissura no interior do dispositivo militar. Logo em seguida vieram as passeatas, entre as quais a famosa Passeata dos Cem Mil, a fim de protestar contra a morte de um estudante pela polícia ditatorial. Fernando e Dalva estavam no meio do movimento, e isso foi a conta. Em 1965, seu mandato como diretor do sindicato foi cassado – o único empresário de porte que perdeu seus direitos políticos. Mas o governo queria mais. Queria levá-lo à falência, e uma operação fazendária foi montada para isso. Foi convocado a comparecer ao Ministério da Fazenda, e o então ministro da pasta mostrou-lhe o cheque de sua contribuição para a realização da passeata e retratos de Dalva, junto com Flavio Rangel e Fernando Pedreira, misturados às lideranças estudantis que haviam convocado a manifestação. Isso era um desafio inconcebível pelos militares: empresário podia ganhar o dinheiro que quisesse, mas não podia fazer política de oposição.

Jornalista, editor e livreiro

Sem a empresa e sem direitos políticos, Fernando auto-exilou-se por um breve período na Inglaterra e nos Estados Unidos, onde lecionou em universidades. Logo voltou e iniciou uma nova carreira de empresário. Desta vez como jornalista, editor e livreiro. Fundou então o jornal Opinião, os Cadernos de Opinião, comprou as editoras Paz e Terra e Graal, de Ênio Silveira e do deputado Max da Costa Santos, ambos proscritos pelo regime; criou a revista Argumento, que deu nome à Livraria Argumento, gerenciada até hoje por Dalva.

Só quem não participou do movimento pela volta da democracia pode desconhecer o que essas ferramentas representaram para manter o ânimo dos combatentes e articular a estratégia da democratização. Um militante até hoje bastante ativo declarou no velório de Fernando que, ainda mocinho, militante estudantil, aguardava a chegada do Opinião na sua cidade, lá na Paraíba, a fim de saber o que acontecia no país e o que deveria fazer para contribuir na luta.

A aventura jornalística foi marcada por episódios jocosos, como a “proteção” que veio lhe oferecer o bicheiro da região, preocupado, mas também envaidecido, com a instalação de uma empresa séria na sua área de “negócios”, e episódios rocambolescos, como a fuga para São Paulo com as matrizes do último número do jornal, a fim de imprimi-lo na gráfica de um jornal japonês, que ficava numa rua de alta movimentação noturna. A escolha devia-se ao fato de que os gráficos, não sabendo ler português, ignoravam que se tratava de matéria vetada pela censura no Rio de Janeiro.

Isso naquele tempo dava cadeia braba. Mas Fernando não usava prepostos e foi, com outro companheiro, esperar a impressão dos jornais na calçada em frente à tipografia, para espanto das prostitutas, que não entendiam o que dois sessentões estavam fazendo ali.

Redemocratizado o país, ele foi ajudar Ulysses Guimarães a montar o PMDB. Trabalhou duro e elegeu-se deputado constituinte, estando sempre entre os mais sérios, assíduos e operosos.

É da sua lavra a famosa emenda que fixava um teto máximo para os juros: 12%. Apesar da reação furiosa da direita e da pusilanimidade de esquerdistas que já começavam a se amoldar ao neoliberalismo, a emenda foi aprovada e o artigo passou a fazer parte da Constituição. Mas Itamar encarregou-se de não aplicá-lo e FHC cumpriu a inglória tarefa de revogá-lo. Não fosse isso, a economia seria obrigada a operar sem a abertura econômica irresponsável dos anos 90 e a conseqüente escalada do desemprego – chaga que hoje flagela a classe trabalhadora brasileira.

Fernando Gasparian sofreu calado a destruição de seu trabalho constituinte. Entrincheirado na Editora Paz e Terra, travou uma guerra solitária contra a onda entreguista. Derrotado, porém jamais vencido. Não era homem para se amoldar a padrões impostos. Viveu a vida como quis vivê-la. Foi amigo de quem quis ser amigo e inimigo de quem quis ser inimigo. Como os burgueses brasileiros não quiseram transformar-se em uma burguesia nacional, ele assumiu a tarefa deles sozinho. Sua grandeza está em ter pago os preços, sem se entregar. Assim viveu e morreu este grande brasileiro – um brasileiro que acreditou no seu país e não titubeou em jogar fora empresas, riquezas, cidadania política, liberdade, por suas idéias e valores.

Pranteado por sua mulher, seus filhos, sua família, seus amigos mais chegados, ele foi cremado no dia 8 de outubro passado. Nada expressa melhor seu devotamento ao povo brasileiro do que o destino de suas cinzas: elas deverão ser jogadas ao pé da árvore plantada por ele no Bosque da Constituinte – um parque no qual cada um dos autores do texto constitucional deixou, para enraizamento, uma espécie de mata brasileira, a fim de comemorar a promulgação da Constituição de 1988.

Plínio de Arruda Sampaio é diretor do jornal Correio da Cidadania.