Economia

A política econômica do primeiro governo Lula foi vitoriosa no combate à inflação. Agora o anseio geral é pela aplicação de receitas desenvolvimentistas

Luiz Inácio Lula da Silva foi reeleito para um novo mandato, em segundo turno, com maioria semelhante à alcançada em 2002. Essa consagração pelas urnas pode ser interpretada como aprovação pela maioria a seu governo. Mas também pode ser entendida como repúdio a Geraldo Alckmin e tudo o que ele representa, de parte do eleitorado que não está inteiramente feliz com o realizado por Lula no primeiro mandato.

A política econômica do primeiro governo Lula foi um amálgama de receitas monetaristas, redistributivas e desenvolvimentistas. Elas produziram um combate vitorioso à inflação, uma sensível redução da pobreza e um crescimento econômico medíocre, abaixo das expectativas da Nação.

Para entender o que se passou, convém analisar as receitas aplicadas e os resultados alcançados. Comecemos pela inflação. Esta foi combatida pela compressão da demanda efetiva, ou seja, pelos gastos de consumo e investimento das empresas, das famílias e do próprio governo. Empresas e famílias gastaram menos porque os juros, apesar de alguma flutuação, foram mantidos em nível elevado. O crédito caro induziu as famílias a gastar menos em compras a prazo, geralmente de valor mais elevado. O lento crescimento dos mercados de residências, automóveis, eletrodomésticos etc. induziu as empresas a também gastar menos na formação de estoques e na expansão da capacidade produtiva. O governo, por sua vez, adotou uma meta de superávit primário, 4,25% do PIB, mais alta do que a praticada pelo governo anterior, e isso, acrescido de uma política de contenção de despesas na boca do cofre (por assim dizer), restringiu severamente a expansão do gasto público. A tal ponto que o superávit real a cada ano ultrapassava a meta.

A política de arrocho deu certo: diante de uma demanda doméstica fraca, as empresas não tiveram ânimo para elevar os preços. Nem para aumentar a produção, o que manteve o desemprego alto, evitando fortes pressões sindicais por aumentos de salários. A inflação (medida pelo IPCA), depois de alcançar seu pico de 14,72% em 2003, caiu abaixo de 7% nos dois anos seguintes, para ficar ao redor dos 3% neste ano. Esse feito foi particularmente apreciado pelos mais pobres, com rendimentos irregulares, que gastam grande parte do pouco que ganham comprando os itens da chamada cesta básica.

A fraqueza do mercado interno foi em parte compensada pela expansão das vendas externas. Estas cresceram 21,1% em 2003, 32% em 2004, mas apenas 22,6% em 2005 e 12,9% neste ano (de janeiro a agosto). A forte expansão das exportações nos primeiros dois anos e os juros mais altos do mundo atraíram ao país farta safra de capitais especulativos. O governo nada fez para barrar esse fluxo, o que levou (junto com a crescente receita de exportação) à valorização do real face ao dólar. O valor deste foi de R$ 3,0751 no fim de 2003 para R$ 2,6930 no fim de 2004 e R$ 2,2855 em fins de 2005; em agosto de 2006 estava em R$ 2,1559. A queda de cerca de um terço do valor da moeda estadunidense face à nossa encareceu nossas exportações e, ao mesmo tempo, barateou nossas importações. É o que explica o crescimento cada vez menor em 2005 e 2006 das exportações e cada vez maior das importações.

O crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) é influenciado pelo saldo comercial. Este aumentou 81,5% em 2003, 41,2% em 2004, 33% em 2005 e apenas 4,7% neste ano (de janeiro a agosto). O saldo comercial atenuou a quase-recessão de 2003, alavancou o crescimento de 4,9% do PIB em 2004 e deu contribuições cada vez menores ao crescimento sofrível do PIB em 2005 (2,3%) e neste ano. A opção do governo de permitir a valorização do real foi o principal fator para a perda de fôlego da expansão do saldo comercial, mas em compensação ajudou na queda da inflação, graças ao barateamento dos produtos importados.

As receitas redistributivas, aplicadas pelo governo Lula, foram diversas: o Bolsa-Família; a recuperação do valor real do salário mínimo; a grande expansão do Pronaf (financiamento a juros subsidiados à agricultura familiar); as compras diretas, em parte antecipadas, da produção das famílias cadastradas no Pronaf; o programa de Crédito Solidário a juro zero para construção de habitações em mutirão pela população de baixa renda; o Luz para Todos; entre muitos outros. Todos proporcionando aumento do poder aquisitivo de amplas camadas desprivilegiadas do povo. A isso convém acrescentar os programas de crédito popular, sendo os maiores o do Crédito Consignado, para assalariados e aposentados do setor formal, e o Programa de Contas Simplificadas, para pessoas pobres que nunca tinham tido acesso aos serviços financeiros oficiais. O Programa Nacional de Microcrédito Produtivo Orientado agora está em plena expansão, embora longe ainda de atender parte significativa da demanda.

Há que considerar também os programas de desenvolvimento local implementados por diversos ministérios. Trata-se de incentivar o autodesenvolvimento de comunidades pobres e apoiar seus esforços por meio de financiamento, assistência técnica, mercadológica, educacional etc. O efeito conjunto das políticas redistributivas e de combate à fome e à miséria está estatisticamente comprovado. Tanto a pobreza quanto a desigualdade econômica registraram diminuição sensível durante o primeiro mandato do presidente Lula. Embora o crescimento do conjunto da economia brasileira tenha sido, durante esse período, relativamente pequeno, ao redor de 3% ao ano em média, o crescimento da economia no Nordeste e Norte foi retratado recentemente pela imprensa como “chinês”, alcançando algo como 8% ao ano. Os mapas eleitorais do pleito pela Presidência mostram que o candidato Lula foi sufragado por ampla maioria naqueles estados e municípios em que essas políticas foram vigorosas e com resultados concretos.

As políticas redistributivas neutralizaram em certa medida as políticas de arrocho, que visam conter os gastos da população para prevenir possíveis pressões altistas sobre os preços. Aparentemente, as duas políticas alcançaram seus objetivos. A inflação foi contida e, em 2006, reduzida bem abaixo da meta oficial, de 4,5% ao ano; ao mesmo tempo, no Brasil pobre e carente, a economia se expandiu nitidamente. Mas a semi-estagnação econômica no Brasil mais próspero cobra seu preço 1.

O desemprego, apesar da farta geração de postos de trabalho, continua elevado nas áreas metropolitanas, onde há dados mais confiáveis. Nas metrópoles pesquisadas sistematicamente pelo IBGE desde 1981, o desemprego era de 11,7% em 2002; só começou a cair em 2005, passando a flutuar ao redor de 10%. Em agosto deste ano estava ainda em 10,6%, uns 10% abaixo do seu nível no fim do mandato de FHC. Essa persistência do desemprego em massa sem dúvida reflete o baixo crescimento da economia neste período.

Por isso mesmo, o candidato Lula enfatizou inúmeras vezes que seu segundo mandato se caracterizaria pelo crescimento. A questão é como cumprir essa promessa. A direita, embora tivesse apoiado Alckmin, não se peja em pregar a redução do gasto público e da carga tributária como condição essencial para que o país possa crescer mais. Abundam propostas de eliminação do déficit nominal das contas públicas em determinados prazos, sustentadas pelo argumento de que os juros só cairão se a dívida pública for fortemente reduzida como porcentagem do PIB. O que esse setor do espectro ideológico (presumivelmente com o apoio do capital financeiro) almeja de fato é uma nova reforma da Previdência e um enxugamento (nunca confessado) dos gastos sociais.

Tais proposições são decorrentes do pressuposto liberal de que o Estado é um aparato improdutivo e, quando presta serviços públicos, o faz com grande margem de ineficiência, desperdício e corrupção. Em vez de pedir a redução da carga tributária, a direita poderia demandar a privatização dos serviços públicos que o Estado presta. Os governos tucanos/pefelistas, em São Paulo, entregam hospitais e postos de saúde a organizações sem fins de lucro, na suposição de que serão logrados serviços mais efetivos a custos decrescentes. Essa privatização não está sendo anunciada, talvez porque tenha reduzido apoio na opinião pública. Se a taxa Selic de juros, que grava parte da dívida pública, continuar sendo diminuída, o serviço dessa dívida cairá, liberando recursos para cobrir o custo do crescimento vegetativo do gasto público. Ao contrário da argumentação dos que pretendem o “ajuste”, o natural é que o gasto público cresça quando crescem o PIB, a base tributária e a demanda pelos serviços públicos, já que boa parte dos brasileiros continua privada deles. Tome-se por exemplo o pretenso “rombo” da Previdência. Ele ocorre porque no sistema de seguridade há um elemento redistributivo, que consiste no direito de aposentadoria por idade de agricultores pobres, que nunca contribuíram para o sistema, e na paridade constitucional do piso dos benefícios com o salário mínimo. O custo desse elemento tem de ficar a cargo do Tesouro, pois não há, nem poderia haver, fonte alternativa de recursos para cobri-lo.

Quando economistas apontam que há um crescente “rombo” na Previdência, o que sustentam é que o gasto com os benefícios “deveria” ser coberto pelas contribuições dos segurados. Ora, esse raciocínio é adequado para instituições privadas, como fundos de pensão, mas não para o Instituto Nacional de Seguridade Social. Cada vez que o salário mínimo é reajustado acima da inflação, surge a demanda de que o piso previdenciário seja desligado do salário mínimo. Mas este constitui um mínimo vital ao qual todos os que residem e trabalham no país devem ter direito. A palavra “rombo” tem conotação pejorativa, implicando ineficiência, desperdício, favoritismo ou corrupção. Isso existe na administração pública e tem de ser combatido, mas não à custa dos direitos vitais dos desvalidos. O mesmo pode ser demonstrado em relação à tese de que a economia cresce pouco porque o Estado absorve quase a metade do que os trabalhadores produzem. Isso não passa dum sofisma. A tese ignora que tudo o que o Estado arrecada em tributos ele devolve aos contribuintes sob a forma de serviços. E ignora que grande parte desses serviços é indispensável à produção do valor da riqueza nacional. Estão neste caso serviços de transporte, de tráfego, de comunicação, de defesa do ambiente e dos recursos naturais não reproduzíveis; assim como os serviços das Forças Armadas, do corpo diplomático, das fundações de amparo à ciência, da polícia, dos assistentes sociais.

O argumento de que a carga tributária como porcentagem do PIB, em países com renda per capita semelhante à nossa, costuma ser menor do que no Brasil carece de base na realidade. Há grande variedade dessa porcentagem entre países com renda per capita semelhante. Ela depende dos resultados históricos da luta que liberais × socialistas, keynesianos e desenvolvimentistas estão travando há mais de um século. Desde que o sufrágio universal vem sendo conquistado pelas mulheres e operários, num país após o outro, a carga tributária vem aumentando, na medida mesmo em que novos direitos sociais vêm sendo reconhecidos como deveres do Estado. A carga tributária é mais alta nos países em que há mais justiça social. Mas em lugar algum ela é obstáculo ao crescimento.

As perspectivas da economia brasileira dependem de como será implementada a amálgama de receitas a que nos referimos no início. Não seria realista esperar que algumas dessas receitas venham a ser abandonadas. Como vimos, sua aplicação durante o primeiro mandato minimizou o risco inflacionário à custa dum crescimento econômico abaixo do desejável. Esse resultado tem sido atribuído a erros de dosagem, principalmente no recurso à elevação dos juros Selic contra presumida perda do controle do processo inflacionário. Foi o que aconteceu em 2004, quando o crescimento bastante promissor da economia acabou sufocado por um aumento persistente da taxa Selic de juros, pelo Banco Central.

Não dá para ignorar que um crescimento econômico tão intenso que leve o país a uma situação de pleno emprego tem certa probabilidade de gerar pressões inflacionárias. Pleno emprego não quer dizer que todos tenham o emprego e a remuneração que desejam, mas que qualquer pessoa, que precisa e quer trabalhar, tem alta probabilidade de encontrar, em poucas semanas, algum emprego que valha a pena aceitar. Mesmo porque nada impede que pessoas que estão trabalhando continuem procurando um outro emprego, mais bem ajustado a suas preferências.

Uma situação de pleno emprego, como essa, implica que as empresas precisam de mais mão-de-obra do que conseguem contratar e se dispõem a atrair trabalhadores mediante a oferta de melhor remuneração e/ou melhores condições de trabalho. O Brasil viveu situações como essa durante o longo período em que nos industrializamos e urbanizamos com grande intensidade, de 1932 e 1980. Houve ponderáveis tensões inflacionárias, que foram mantidas sob controle durante momentos de crescimento mais intenso, mas desembocaram em crises monetárias explícitas de 1962 a 1967, quando ocorreu o golpe militar, e mais uma vez de 1981 a 1994, na longa e traumática transição do regime militar à democracia. Essas experiências sempre deixam um legado de temores − que podem ser exagerados, mas nem por isso têm menos adeptos − de que qualquer retomada das lutas salariais pelos sindicatos possa dar partida a uma nova e persistente crise inflacionária.

Acelerar o crescimento é no momento um clamor generalizado. Para atendê-lo, o governo terá de implementar receitas desenvolvimentistas, tais como intervenções nos mercados financeiros para coibir a especulação que for claramente antagônica aos objetivos do desenvolvimento – isso significa adotar desincentivos fiscais ou monetários à entrada em massa de capitais que possam provocar a valorização da moeda nacional, como aconteceu durante o primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso e também no de Lula –; e adotar as mesmas medidas, na dosagem necessária, para evitar fugas de capitais, nos momentos em que o pânico dominar o mercado. Sem essa política, o Estado brasileiro ficará refém do capital especulativo globalizado e se verá forçado a elevar a dosagem da receita monetarista, com inevitáveis conseqüências deletérias para o desenvolvimento. Outro objetivo da política deveria ser obter uma redução significativa das taxas de juros dos bancos comerciais, sobretudo no financiamento do capital de giro e das inversões. Nesse sentido, o papel dos bancos públicos – Caixa Econômica, Banco do Brasil, Banco Popular do Brasil e BNDES – poderá vir a ser crucial. Cobrando taxas menores do que os bancos privados, estes serão obrigados, sob pena de perda de grande parte de sua clientela para os bancos públicos, a baixar seus juros também, o que deverá permitir que mais consumidores invistam em habitação, transporte, equipamentos domésticos etc. e mais empresas invistam na ampliação de estoques e de sua capacidade produtiva.

Paul Singer é secretário de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego