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As polêmicas sobre as reformas políticas no Brasil só ganham sentido quando relacionadas à disputa entre o paradigma liberal-conservador e o paradigma democrático-republicano

Agrupando didaticamente e com um grau de arbítrio controlado as opiniões de estudiosos e forças políticas sobre a reforma política, podemos visualizar dois campos analítico-normativos ou de diagnósticos e proposições. Esse “arbítrio controlado” se deve ao fato de que há heterogeneidade nos dois campos citados e nem sempre opiniões tópicas sobre temas específicos da reforma política guardam estreita coerência paradigmática. Apesar disso, este exercício de qualificar as opiniões de acordo com grandes paradigmas é vital se não se quiser transformar a disputa pela reforma política em um jogo democraticamente neutro ou de simples cálculo estratégico entre os atores.

O primeiro paradigma poderia ser caracterizado como liberal-conservador e ser identificado por meio de cinco teses complementares:

- Defesa do voto facultativo ao invés de obrigatório. O voto é definido como um direito, como ocorre por exemplo na democracia norte-americana, e não também como um dever. A comunidade política, através de suas instituições, pode prescindir até da mínima participação política de seus componentes: metade dos eleitores norte-americanos em geral não vota para presidente e cerca de 70% não votam regularmente para eleger governadores. Trata-se de uma conseqüência direta do conceito chamado pelos liberais de “liberdade negativa”: quanto maior a interdição da ação do Estado e dos deveres do indivíduo perante ele, maior o campo da liberdade. Esse conceito “negativo” da liberdade associa-se à desconfiança elitista em relação à democracia de massas e, no caso do Brasil, à dificuldade histórica de liberais e conservadores de vencer em um universo amplo de eleitores, composto em sua grande maioria por pobres e remediados.

- Opção pela estabilidade e controle institucional da competição democrática em detrimento de suas dimensões expressiva e dinâmica. Os liberais e conservadores, em geral, optam pelo voto distrital (misto ou puro) em detrimento da representação proporcional, que concede lugar às minorias no sistema de representação parlamentar. Historicamente, a manipulação na fixação dos distritos e a super-representação das maiorias impediram a ascensão e a conquista de força eleitoral de forças políticas emergentes e populares em várias situações. Vai no mesmo sentido a defesa de uma cláusula forte de barreira, que pretende estabilizar o sistema partidário, reduzindo seu pluralismo, frente ao surgimento de novas forças políticas em ascensão.

- Defesa da legitimidade do financiamento privado de campanha frente ao financiamento público. Aqui, trata-se de maximizar as componentes de diferenciação econômica, da concepção da política eleitoral como mercado de votos, a ser gerenciado pelo marketing eleitoral. Em um ambiente social e cultural no qual os mecanismos de controle político tradicionais como o mandonismo, o coronelismo e o clientelismo perderam muito de sua capacidade de arregimentação de votos, é absolutamente necessário para os liberais e conservadores neutralizar os votos da maioria pelo poder de quem possui capital. Isso é mais verdade ainda para uma sociedade como a brasileira, de imensa desigualdade social e regional.

- Defesa da lista aberta de candidatos. Neste item, o que está em jogo é um enfoque que privilegia os partidos como instituições do direito privado, que funcionam como canais de delegação política em detrimento de suas funções representativa ou expressiva. A individualização da definição de voto atua como dissolvente das culturas partidárias, ao mesmo tempo que torna praticamente impossível o controle dos representantes pelos representados.

- Contraposição entre democracia eleitoral, entendida como função sistêmica, autônoma e especializada, em relação ao corpo de cidadãos, e as culturas da democracia participativa. Todas as quatro teses anteriores confluem para uma visão da auto-suficiência do sistema eleitoral partidário em relação ao cotidiano dos cidadãos. Qualquer ameaça a essa especialização e autonomia do sistema político é logo caracterizada como populista, corporativa, assembleísta, como ameaça à sua racionalidade e sua eficácia sistêmicas p róprias.
O paradigma democrático-republicano

O segundo paradigma poderia ser chamado de democrático-republicano, no sentido em que essa denominação se configura na filosofia contemporânea, isto é, aquele paradigma que recupera a noção de comunidade política, de virtude cívica, vincula liberdade à igualdade, concebe a preservação da liberdade política, entendida como autonomia, à participação política nas instituições.

Esse paradigma democrático-republicano assim se definiria frente a temas-chave da reforma política:

- Defesa do voto obrigatório como, ao mesmo tempo, direito e dever do cidadão. Talvez o cientista político que tem defendido mais enfaticamente esse ponto de vista seja Wanderley Guilherme dos Santos. Ele mostra que, comparando os dados de 1950 e 2000, é possível demonstrar que “houve uma extraordinária mobilização eleitoral promovida pelo sistema político brasileiro, incorporando gigantescas parcelas da população ao processo de concorrência pelo poder”. Entre 1950 e 1991, teria havido um crescimento de 179,8% da população e de 631,7% do eleitorado. Entre 1991 e 2000, os aumentos seriam respectivamente de 15,65% e 37,44%. “Esta dinâmica”, diz o cientista político, “subverteu o solo do controle oligárquico, que se exercia, entre outros mecanismos, mediante a redução na oferta de candidatos e, portanto, de oportunidades de escolha do eleitor.” Pesquisas feitas indicam que em torno de 50% dos eleitores não votariam caso o voto não fosse regulado pela democracia como um dever do cidadão. Wanderley Guilherme chama, por causa disso, a obrigatoriedade do exercício de voto de um “imposto democrático”.

- Opção pelo sistema proporcional como modo de priorizar as dimensões expressivas e dinâmicas da competição democrática. O sistema proporcional favorece a representação das minorias no sistema político e incentiva a mudança, ao não bloquear o acesso de forças emergentes na representação. O sistema partidário, em sua diferenciação clássica direita-centro- esquerda, forma seu pluralismo historicamente, de modo processual, através de sedimentações específicas a cada cultura política. Sua estabilidade não pode ser transformada em um valor absoluto para a democracia, como quer o pensamento liberal-conservador. Coerente com essa visão, em defesa do pluralismo amplo e do caráter dinâmico dos sistemas políticos, o paradigma democrático-republicano relativiza bastante o diagnóstico simplificado de que haveria hoje uma fragmentação do sistema partidário brasileiro, devendo ser introduzida uma forte cláusula de barreira, como a que passou a vigorar nestas eleições. De fato, é possível demonstrar que cerca de 70% a 80% da representação no Congresso Nacional, por exemplo, tem se concentrado em eleitos de sete partidos, o que é índice de riqueza de pluralismo, e não propriamente de fragmentação caótica. Por isso, a defesa de uma cláusula de barreira fraca (em torno de 2%), suavizada ainda pelo mecanismo da possibilidade de formação de federação partidária.

- Opção pelo financiamento público exclusivo de campanha. Já existe atualmente no Brasil o financiamento público parcial de campanha através da propaganda eleitoral gratuita e do Fundo Partidário (cerca de R$ 55 milhões em 2005). Propõe-se a adoção do financiamento público exclusivo por quatro grandes razões: o efeito desequilibrador e antidemocrático do poder econômico, mais danoso ainda em uma sociedade marcada por violenta concentração da renda e da riqueza; o custo altíssimo das campanhas, que funciona como um afunilamento perverso para candidatos e partidos sem recursos; a americanização das campanhas, isto é, sua transformação em campanhas de puro marketing publicitário; o incentivo ao caixa dois, através do qual se renovam, a cada eleição, os circuitos da corrupção sistêmica no Estado brasileiro. Tem-se adotado a proposta de uma quantia equivalente a R$ 7 por eleitor, cujo montante seria distribuído entre os partidos, a partir de cálculos que combinam a representação atual dos partidos e a necessidade de uma distribuição eqüitativa (calcula-se que, por tal critério, o custo total das eleições seria reduzido a cerca de 20% do que tem sido gasto nas declarações oficiais). Para o financiamento público exclusivo de campanha ser eficaz e possível, sua introdução deveria vir acompanhada de um reforço qualitativo da capacidade de fiscalização da Justiça Eleitoral e de maior rigor penal. Isso só é exeqüível com a introdução do voto em listas partidárias.

- Opção pelas listas partidárias fechadas. O Brasil, como a Finlândia, adota historicamente o sistema de listas abertas (o eleitor vota no parlamentar de sua escolha), ao contrário da quase totalidade dos países democráticos. Os argumentos em favor da manutenção de tal excepcionalidade baseiam-se, em sua maior parte, em ilusões: quem faz a lista atualmente não é o eleitor, mas o partido, segundo critérios que não são públicos; em geral, menos de 10% dos candidatos a cargos parlamentares são eleitos com base apenas em votos nominalmente conferidos a eles (isto é, 90% ou mais dependem dos votos dados a outros candidatos do mesmo partido ou à legenda do partido); na composição da Câmara Federal passada, por exemplo, os eleitos foram votados por apenas 35% do eleitorado (isto é, 65% dos votos dados pelos eleitores nominalmente a candidatos não tiveram efeito eleitoral direto). O efeito do voto individual em um quadro eleitoral de tipo não distrital maximiza ao limite a dificuldade de controle do representante pelo representado. A adoção do voto por lista partidária teria a imensa vantagem de fortalecer o sistema de partidos e ser coerente com um novo estatuto da fidelidade partidária. Ele poderia ser introduzido com uma garantia de cota de mulheres, o que traria uma verdadeira revolução na qualidade representativa da democracia brasileira em relação ao gênero, pois o Brasil continua tendo, apesar de progressos, um dos sistemas políticos que mais punem as mulheres com uma sub-representação. O voto por listas partidárias fechadas provocaria uma forte redução dos custos eleitorais, ao permitir a racionalidade das campanhas partidárias ao invés da concorrência acirrada entre candidatos do mesmo partido. Para evitar o controle de burocracias partidárias oligárquicas na formação das listas, sua adoção deveria vir associada à obrigatoriedade da realização de primárias entre os filiados dos partidos.

- Defesa da combinação entre democracia representativa e democracia participativa. Este aspecto é fundamental por trazer para o centro da agenda da reforma política os mecanismos de participação direta ou semidireta (plebiscitos, referendos), bem como aqueles que permitem a inserção ativa dos cidadãos na formulação e prática das políticas públicas. Para o paradigma democrático-republicano, ao invés de ameaçar a democracia representativa, tal participação eleva a qualidade democrática do sistema político, criando uma verdadeira sinergia entre práticas de controle e exercício do poder.

A reforma prioritária e possível

Em seu estudo “Reforma política em perspectiva comparada na América do Sul” (editado no livro Reforma Política no Brasil, organizado por Leonardo Avritzer e Fátima Anastasia, Pnud e Editora UFMG), o professor de Ciência Política Carlos Ranulfo Melo identifica três situações históricas distintas: Venezuela e Bolívia, países nos quais houve algo como uma refundação do sistema político e de suas regras; Argentina e Uruguai, nos quais houve reformas constitucionais mais amplas; e Brasil e Chile, nos quais houve até agora reformas pontuais. A profundidade e a amplitude das reformas políticas dependem, em grande medida, do grau de deslegitimação do sistema e da formação de uma coalizão majoritária disposta a efetivá-las. Há uma relação entre as duas variáveis, nem sempre automática: supõe-se que um sistema político em crise incentive mudanças profundas; sistemas políticos com maior estabilidade e legitimidade podem passar por reformas de aprimoramento de aspectos mais ou menos centrais.

No caso brasileiro, existe hoje uma situação intermediária: por um lado, há grande adesão e progressivo fortalecimento da democracia eleitoral brasileira (ver, por exemplo, o número crescente de eleitores e a estabilização ou até a diminuição relativa dos votos nulos e da abstenção eleitoral); por outro, há uma consciência crescente de seus defeitos, com impactos importantes e disseminados em seu funcionamento democrático. Esse diagnóstico tem levado a maioria dos cientistas políticos do campo democrático e republicano a trabalhar em uma perspectiva incremental de mudanças, e não em um processo de refundação da democracia brasileira, como se tivéssemos de partir do zero novamente. Aliás, essa proposta de uma mudança mais generalizada – com sugestões antes elencadas como mais típicas do campo liberal-conservador – tem sido defendida por autores e representantes políticos desse campo como, por exemplo, Fernando Henrique Cardoso.

Mas o fato é que mesmo essas mudanças de sentido incremental têm enfrentado dificuldades para se efetivar. As reformas políticas, apesar de permanentemente em pauta nos governos Fernando Henrique Cardoso e Lula, não foram nestes anos ao centro da agenda. Em geral, neste período 85% das leis aprovadas no Congresso são de iniciativa do Executivo, mas não tem havido coesão suficiente nas respectivas bases parlamentares desses governos para votar uma reforma política. Pesa, com força, o caráter inercial do próprio sistema político, interessado em se perpetuar e manter posições conquistadas: parlamentares só excepcionalmente votarão propostas que tragam prejuízos a seus cálculos de reeleição.

Daí uma certeza: reformas políticas só virão se conjugarem a construção de uma grande coalizão parlamentar com mobilização social e da opinião pública. A convocação de uma Constituinte Exclusiva para votar a reforma política pode, em certa circunstância, ser um meio de driblar o caráter inercial da resistência. Mas mesmo ela exigiria larga maioria para ser aprovada. E mais: por um período precioso, ela deslocaria o centro de gravidade do processo democrático, podendo levar a uma paralisia de governo. Seus resultados seriam, também, em larga medida imprevisíveis.

O caminho mais viável parece ser, então, aquele que forma uma coalizão parlamentar ampla em torno de pontos considerados prioritários, cria um campo de negociação para diminuir resistências no Congresso Nacional e se vale largamente de uma campanha popular. Para tornar o processo mais democrático, as reformas votadas no Congresso poderiam vir a ser aprovadas finalmente em um referendo.

As dimensões prioritárias da reforma poderiam ser hoje identificadas como a do financiamento público de campanha, ligada a voto em lista, e a do instituto da fidelidade partidária, que leva à perda de mandato do parlamentar que trocar de partido. A forte diminuição da cláusula de barreira pode trazer para o apoio à reforma um conjunto de forças prejudicadas pela atual lei, além de significar efetivamente uma maior democratização das regras do jogo.

Essas reformas que apontam para uma progressiva democratização do sistema partidário eleitoral no Brasil são fundamentais para pensar o aprofundamento das reformas estruturais de que o país precisa. Várias destas – como a tributária de cunho progressivo, a agrária, a urbana – dependem, para ganhar maior amplitude histórica, de maiorias parlamentares que, pelas regras atuais, não se constituem em consonância com a formação de vontades democráticas na sociedade. O sistema político hoje, como funciona, subtrai capacidade de expressão e representação da sociedade.

Mais além desse sentido democrático e estratégico, o que está em jogo com as reformas políticas é a própria identidade histórica do PT, isto é, a grande disjuntiva entre se adaptar de forma competitiva às instituições do Estado vigente, com todas as consequências negativas que daí decorrem, ou mobilizar seu peso eleitoral e social para transformá-las de acordo com os valores nos quais se funda.

Juarez Guimarães é cientista político, professor na UFMG, editor do Periscópio, boletim eletrônico da Fundação Perseu Abramo.