Política

Apesar da derrota, se considerarmos a crescente ofensiva conservadora no estado a partir de 1994, o resultado para o PT foi acima dos cálculos da obviedade política

No Rio Grande do Sul as eleições têm sua singularidade. Qualquer balanço sobre o mais recente processo eleitoral precisa levar em conta, entre outros fatores, as tradições históricas e políticas, e as características da construção do PT no estado, seu crescimento ao longo da década de 1990 e os resultados desse período, que expressam, entre outras coisas, o reconhecimento da população mais pobre e dos setores médios sobre aquilo que fizemos. A partir de 1989, com a eleição de Olívio Dutra para a Prefeitura de Porto Alegre, o PT iniciou uma ascensão sistemática, que acabou se confirmando, no plano eleitoral, pelas quatro sucessivas vitórias na capital, pelos oito anos na Prefeitura de Caxias do Sul, pelos quatro anos em Pelotas, pelas importantes vitórias em várias cidades do anel metropolitano e, sobretudo, pela vitória e experiência de governar um estado moderno no período 1999-2002.

Nossas virtudes, nesse período, se expressaram concretamente na melhoria da qualidade de vida, em especial da população mais pobre, por meio de serviços públicos e obras estruturais, muitas delas decididas e ordenadas pelo Orçamento Participativo (OP). Fomos responsáveis por uma experiência única e inédita no mundo, que foi implementar um OP em escala estadual, atingindo quase 10 milhões de pessoas e 497 municípios. É importante lembrar que, no período do governo Olívio, tínhamos no máximo trinta prefeituras. E interviemos em 497 cidades, discutindo os interesses da população, com o apoio da Igreja, de sindicatos e de movimentos sociais. É preciso lembrar também os Fóruns Sociais Mundiais, que fizeram dessas experiências referências internacionais.

Com tudo isso tivemos um papel decisivo na resistência à “avalanche neoliberal”. Então, não é nem pretensioso, nem bairrista, dizer que o patamar de compreensão política da população gaúcha, que já tinha uma tradição importante (o trabalhismo getulista e brizolista), instituiu uma relação positiva com nossas políticas, aprovando-as em sucessivas eleições. É nesse contexto que, a partir de 1994, estabelece-se uma polarização indiscutível no estado. O que o PT fez ou não fez se torna uma referência incontornável no debate estadual, passando a constituir um dos pólos. É nesse universo de acumulação positiva de mais de uma década que nossos adversários políticos do campo mais conservador, com a imprescindível assistência do monopólio midiático representado pela Rede Brasil Sul de Comunicações (RBS), reposicionam suas forças e seu modo de agir para tentar interromper a continuidade desse acúmulo crescente.

A RBS como agente político

Cabe, aqui, uma observação mais detalhada sobre o papel da RBS. Mais do que mera afiliada da Rede Globo, ela é uma organização independente de grande potência e irradiação. A capacidade de intervenção desse grupo na sociedade é composta pelos seguintes instrumentos: dezoito emissoras de televisão aberta, duas emissoras locais de televisão, oito jornais diários, 26 emissoras de rádio, dois portais na internet, operação orientada para o agronegócio, editora, gravadora, empresa de logística, empresa de marketing para jovens e fundação de responsabilidade social. Essa rede de veículos articula sistemática e organicamente a agenda dos setores mais conservadores no Estado. Soma-se a esse poderio quantitativo uma enorme eficácia qualitativa de intervenção, baseada em um exame escrupuloso dos vários segmentos da sociedade gaúcha. O lançamento do jornal Diário Gaúcho, no início do governo Olívio, é um exemplo disso.

Voltado à população mais pobre de Porto Alegre e da região metropolitana, além de sortear panelas e outros brindes entre seus leitores, passou a articular diariamente pautas em terrenos sensíveis, como saúde e segurança pública. Assim, para cada segmento da sociedade, a RBS passou a ter um veículo jornalístico específico, com uma linguagem específica, que nos atacou dia e noite. Durante o governo Olívio Dutra, o grupo começou a definir a pauta da oposição já no primeiro dia, com a exploração do aparecimento de uma bandeira de Cuba na sacada do Palácio Piratini, na festa da posse. Todos os movimentos da esquerda transformaram-se em temas de máxima repercussão: a queima do relógio da Globo (500 anos), os transgênicos, o MST, a Ford, o combate à corrupção na polícia são alguns. A vida interna do PT e de seus governos foi e continua sendo permanentemente devassada.

O papel da RBS acaba sendo articular setores políticos, institucionais e econômicos, homogeneizá-los na ofensiva e unificar as palavras de ordem.

Derrota eleitoral

É levando em conta esse cenário que quero sustentar que o resultado do processo eleitoral deste ano no Rio Grande do Sul representou uma derrota eleitoral e uma vitória política. Para entender por que é legítimo afirmar que obtivemos uma vitória política é preciso considerar o tamanho da dificuldade em que estávamos metidos. Não é preciso nenhuma sofisticação analítica maior para compreender que, na mesma proporção em que conquistamos crescentes espaços e consolidamos nossa posição como um dos pólos da disputa política no estado, lutando até o último voto com o bloco conservador em todas as últimas quatro eleições, nossos adversários empreenderam uma reação, com intensidade talvez ainda maior, em sentido contrário. O cerco implacável a que foi submetido o governo Olívio foi um exemplo disso.

O balanço do governo Olívio, com todas as políticas positivas que avaliamos ter feito, ficou impregnado desse bombardeio sistemático e os erros foram potencializados. E nós entramos nas eleições de 2006 com essa impregnação. Assim, nossas virtudes – pois algumas de nossas políticas só foram exitosas porque ousaram enfrentar setores e pautas conservadoras – também eram nossos limites. Além disso, entramos com uma outra conta, relativa a episódios do governo Lula. O impacto da Reforma da Previdência, por exemplo, entre setores importantes de nossa base social foi devastador. Não custa lembrar o peso da classe média no Rio Grande do Sul, especialmente nas grandes cidades, e também o alto peso relativo e irradiador de opinião do funcionalismo público. Uma parte dele está no miolo da classe média. Nas nossas vitórias, a capacidade de atrair esses setores foi decisiva.

Isso, somado aos trágicos eventos da crise política de 2005, provocou um grande rombo em nossas posições. Mais alto havíamos chegado em termos de reconhecimento perante a sociedade gaúcha, conseguindo ir muito além de nossas fronteiras partidárias e de nossos aliados mais tradicionais (como o PCdoB e o PSB), maior foi o tombo que sofremos. É importante lembrar àqueles que nos criticavam por uma suposta incapacidade de ampliar nosso leque de alianças que foi com esses setores sociais e com essas fronteiras partidárias que conquistamos o governo no RS (isso não quer dizer que a discussão de ampliação não seja legítima). E, este ano, quando muitos achavam que tínhamos acabado, fizemos mais de 46% dos votos, tendo o PCdoB como aliado no primeiro turno, o PSB no segundo e o apoio de mais de duas centenas de prefeitos e vice-prefeitos de outros partidos, entre eles o PDT, o PMDB e, em menor escala, o PP e o PTB. Não se pode esquecer o impacto do efeito dossiê e da não ida ao debate do presidente Lula. Nesta sociedade gaúcha “tão à flor da pele”, cortou nosso ritmo de ascensão na boca do primeiro turno.

A ampliação política

Essa ampliação do segundo turno perante a base de outros partidos poderá ter repercussões importantes. Há uma crise no PMDB, dividido entre o grupo do deputado federal Eliseu Padilha, apoiador de primeira hora de Yeda Crusius, e o grupo do governador Germano Rigotto, que optou por uma posição de neutralidade no segundo turno. Há ainda o tema da possibilidade de uma reconstrução das relações com o PDT, afinal de contas 55 prefeitos trabalhistas apoiaram Olívio Dutra no segundo turno. E, em terceiro lugar, mas não menos relevante, vimos a retomada de laços valiosos com os movimentos sociais do campo e da cidade. É importante destacar é que o fruto do segundo turno foi uma bem-sucedida busca de ampliação. O encontro no Hotel Embaixador, no qual Olívio recebeu mais de 260 apoios, entre prefeitos e vice-prefeitos de outros partidos, é o principal símbolo disso.

E foi com esse leque de alianças e apoios que enfrentamos o segundo turno. Perdemos, mas fizemos 46% dos votos. Os números das votações de Olívio e de Lula mostram, de modo objetivo, que o impacto dos problemas relativos ao PT nacional e ao governo federal acabou sendo maior que aquele relacionado com a pauta do governo Olívio. O ex-governador obteve 2.884.092 votos no RS (46,06% dos válidos), enquanto Lula atingiu 2.811.658 (44,65% dos válidos). Nesse quadro, cabe lembrar que vínhamos de duas derrotas importantes: a eleição estadual de 2002 e a eleição municipal de 2004, quando perdemos a Prefeitura de Porto Alegre. Em 2004 fizemos 378.099 votos na capital. Em 2006 chegamos a 416.193, com uma vantagem um pouco acima dos 5 mil votos. Além da retomada da maioria em Porto Alegre, tivemos a volta das bandeiras vermelhas às ruas, presença que havia sido atropelada pela crise política de 2005.

A maioria de nós acha que a sincronia Lula/Olívio × Alckmin/Yeda alimentou reciprocamente a clareza e o significado tanto de Lula quanto de Olívio. Ficou mais nítido e impediu que a direita nos infligisse uma grande derrota.

Considerando tudo o que foi dito anteriormente, esse resultado está longe de ser desprezível. Muita gente dizia que estávamos mortos politicamente. Não estamos. Somem-se a isso o significado da vitória consagradora de Lula no país e a possibilidade que se abre para o aprofundamento das políticas sociais que ajudaram a constituir nossa identidade até aqui, e temos uma posição razoável de onde podemos tentar reconstruir o que perdemos. A ampliação que obtivemos no segundo turno (que tem o governo Olívio como uma das causas fundamentais, pelo tipo de relação que estabeleceu com os municípios, sem discriminar prefeitos de outros partidos) e a divisão no campo daqueles que sempre estiveram unidos contra nós talvez tenham aberto um flanco justamente quando menos esperávamos, em um de nossos mais difíceis momentos. Por fim, é preciso fazer uma observação sobre a grandeza e a qualidade política de Olívio Dutra. Não se trata de “confete”, mas sim de um reconhecimento político sobre valores que sempre foram muito caros a nós.

O valor que cultivamos em torno da importância da construção política coletiva não deve impedir que reconheçamos a dimensão de alguns dos nossos quando enfrentam dificuldades gigantescas e conseguem resultados acima dos cálculos da obviedade política. Esse é o caso dos companheiros que compuseram nossa chapa majoritária – Olívio Dutra, Jussara Cony e Miguel Rossetto –, com uma observação especial em relação ao primeiro. Depois de uma dura saída do Ministério das Cidades, assumiu a presidência do partido no estado, em um momento crítico de nossa história, e aceitou uma candidatura ao governo em condições adversas. Olívio acabou sendo uma espécie de catalisador que uniu de forma incomparável a história do Rio Grande e a história das lutas sociais desse estado. Sua candidatura acabou unindo, também, a militância dos partidos que integram a Frente Popular em torno da certeza de que é possível avançar, recuperar o terreno perdido e retomar a construção do projeto que tornou o estado fonte de esperança e inspiração para a esquerda mundial.

Flavio Koutzii é deputado estadual (PT-RS).