Cultura

Vovós Ativistas contra a Ocupação e Bonecas de Papel são alternativas aos filmes tradicionais sobre Israel

Vivemos em um momento no qual, felizmente, os documentários são cada vez mais discutidos. Se isso é influência do sucesso mundial de Michael Moore, pouco importa. O que acontece é que, além de documentaristas brasileiros sensíveis como Eduardo Coutinho e João Moreira Salles, cada vez mais jovens pegam suas câmeras digitais e partem para o documentário. Não existe a menor dúvida, hoje, de que a câmera afeta a realidade. Como vários autores já disseram, o documentarista filma encontros, e não o outro, isolado. E isso é ótimo. O encontro com a câmera pode ser revelador – e revelador, muitas vezes, de uma nova face, não genérica, não redutora.

Comunidades virtuais, música eletrônica, sexo pela internet... passaram a fazer parte do repertório de encontros dos documentários (ao lado de assuntos tradicionais que continuam fortes). Assim como uma nova preocupação: além de definir o tema do filme, interessa também como fazer o filme. Dou a câmera para meus entrevistados? Trabalho sozinho? Chego ao lugar filmando ou demoro a ligar a câmera? Remunero ou não meu entrevistado? Se existe um quase-consenso de que o mundo contemporâneo é cada vez mais complexo, o documentário oferece um olhar minucioso para o entendimento dessa complexidade. É uma possibilidade de aprofundamento significativamente distinta da urgência do jornalismo audiovisual. Permite novos olhares, a busca de fontes diferentes, exames da literatura sobre o assunto, a construção quase íntima de relação com seus sujeitos etc. (Cinema pode mudar a vida, sim!!!).

Tirando a cartola

A Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – 30 anos este ano – trouxe alguns bons documentários, que aos poucos vão saindo da gaveta secundária de preferências.

Entre eles, gostaria de destacar o brasileiro Cartola, de Hilton Lacerda e Lírio Ferreira. De difícil classificação, Cartola apresenta aspectos de “filme montagem”, com um grande número de imagens de arquivo articuladas de uma forma inteligentíssima. Imagino que seja difícil fazer um filme sobre o sambista. E eles encararam o desafio de uma maneira brilhante, com fotogramas (do diretor de fotografia Aloysio Raulino) recheados da melhor poesia, e a pretensão (plenamente atingida!) de compor a dimensão política e histórica do país a partir do olhar sobre um personagem.

Comecei o artigo falando dos filmes como uma possibilidade de mudar a vida de quem os vê. Alguns documentários nos reapresentam temas e situações que de algum modo fomos deixando de lado, seja por conta do excesso de imagens e representações desses temas, seja pelo distanciamento consciente daqueles que não desejam entrar em contato com outras realidades. Os filmes que tratam do conflito Israel e Palestina são exemplos dessas duas possibilidades. A abundância de representações da questão palestina em jornais, cinema e televisão muitas vezes retira boa parte da força dessas imagens; o conflito, estarrecedor por sua duração e falta de perspectiva de fim, acaba sendo apresentado de forma banal.

Mesmo se analisarmos as narrativas cinematográficas nesse caso, perceberemos que já se fez quase tudo. Há as crianças palestinas e judias em Promises e em uma série de outros documentários, os soldados gays de Delicada Relação, os homens-bomba de Paradise Now. Sem mencionar o cineasta israelense Amos Gitai, que já tratou o conflito de inúmeras formas: perspectivas históricas, ficções com um quê documental, experiências de “arqueologia humana”. Parece impossível abordar esse tema de um ponto de vista original ou jamais imaginado. Muitas vezes a busca de originalidade por si só colabora com a impressão de que se chegou a um limite de representação.

Israel e Palestina

Os documentários Vovós Ativistas contra a Ocupação (The Raging Grannies Anti Occupation Club), de Iwajla Klinke, e Bonecas de Papel (Paper Dolls), de Tomer Heymann, ambos exibidos na 30ª Mostra, abordam com propriedade esse conflito sem a pretensão de traçar um panorama. Os dois filmes deslocam seu foco para personagens que não estão no centro das representações da questão palestina (soldados, terroristas, políticos, moradores de regiões ocupadas e crianças − símbolo preferencial dos documentaristas que desejam pensar uma possível resolução futura do conflito). Em Vovós Ativistas, um grupo de “velhinhas” judias que militam contra a ocupação israelense nos territórios palestinos questiona o conservadorismo militarista da Israel sharonista. O inusitado grupo protesta de diversas e curiosas formas. Posicionadas em uma esquina, as quatro velhinhas vestidas de preto entoam cantos e palavras de ordem contra a ocupação. Solitárias, representariam uma militância invisível.

O filme não se sente obrigado a tecer considerações emocionais sobre o tema nem em passar mensagens ao público, como em boa parte dos documentários e reportagens sobre a questão. A construção dos personagens e do próprio enfoque político do filme é feita sem pressa, com direito a imagens digressivas, doses de humor e um despretensioso modo de filmar. A intimidade com os personagens é estabelecida no tempo deles. Afinal, a percepção do tempo é central em um filme que mostra como o conflito molda a vida de pessoas, por um contexto horizontal e perene de violência.

Em Bonecas de Papel o argumento de que a realidade nem sempre se encontra nos sujeitos centrais do conflito é ainda mais forte. Há relações “periféricas” que trazem elementos e representações novas e muito válidas sobre o tema. No filme, travestis filipinos que vão trabalhar em Israel cuidando de idosos, após a última Intifada, buscam fazer sucesso com um show de transformismo.

Durante todo o filme, o diretor israelense busca compreender o universo de símbolos desses personagens curiosos: o “dom” natural dos filipinos para cuidar dos idosos, o trânsito deles em bairros de judeus ortodoxos e principalmente a inadequação desses “travestis” (um tipo semelhante ao das locas latinas) em uma cultura gay globalizada que cada vez mais procura se distanciar dos símbolos femininos. Fugindo de uma discussão da questão palestina em si, o filme consegue nos dizer que existem muito mais relações em Israel do que os recortes habituais querem nos mostrar.

São duas alternativas aos tradicionais filmes sobre Israel, mais preocupadas em retratar um contexto em que o tema em questão cruza com diversos outros universos; assim como mostrar que personagens envolvidos em um conflito possuem outros conflitos, ou mesmo situações de respiro, humor e reflexão. Ambos nos dão um fôlego para pensar que são inesgotáveis as possibilidades de visionar um mesmo assunto ou grupo de pessoas.

Kiko Goifman é antropólogo pela UFMG e mestre em Multimeios, diretor de Atos dos Homens.

Apocalipse Now

Atos dos Homens, um dos melhores filmes brasileiros feitos recentemente, era para ser um documentário sobre os sobreviventes dos (muitos) massacres no país. Um mês antes das filmagens, porém, ocorreu o terrível massacre na Baixada Fluminense, em que 29 pessoas foram executadas por policiais à paisana. Kiko Goifman resolveu mudar de planos e virou o volante em direção às cidades de Nova Iguaçu e Queimados, cenários da tragédia. Com seu jeito tranqüilo e gentil de mineiro, e sua câmera discreta, conversou com pessoas ligadas aos executores e parentes das vítimas. Como solução original para proteger a identidade de seus entrevistados, o documentarista optou por deixar a tela em branco enquanto ouvimos os depoimentos. O truque, radicalmente simples, é eficiente na medida em que o que se ouve tem o impacto de milhões de imagens, nenhuma delas agradável. O sofrimento de uns, por um lado, e a certeza arrogante da impunidade de outros convivem num quadro de extremos que infelizmente define parte considerável da idenidade brasileira. Saímos do filme com a certeza exasperante de que o buraco é realmente mais embaixo – tão embaixo que atinge o próprio centro do Inferno.

Daniel Benevides, jornalista

(Com colaboração de Marcelo Caetano)