Nacional

Uma análise do financiamento das campanhas eleitorais a partir da experiência do PT em 2006

A reforma política abrange um leque amplo de temas, boa parte deles relacionada à representação política, como o voto distrital e a implantação das listas. Mas, nesse debate, o financiamento das eleições e dos partidos é fundamental, para limitar a influência do poder econômico e possibilitar maior presença dos cidadãos no processo democrático

A experiência de coordenar o Comitê Financeiro do PT na eleição presidencial de 2006 me deu a honra de receber do presidente Luiz Inácio Lula da Silva uma procuração para representá-lo nas ações da campanha. Além disso, proporcionou-me um aprendizado intenso e singular sobre nosso sistema eleitoral e o processo de construção da democracia em nosso país.

A partir de um breve balanço da atuação de nosso comitê é possível analisar o modelo de financiamento eleitoral praticado no Brasil e esboçar algumas propostas visando aperfeiçoá-lo. Assim, procuramos contribuir para um tema muito importante na reforma política anunciada pelo presidente Lula como uma iniciativa prioritária de seu segundo mandato.

Nosso trabalho seguiu diretrizes aprovadas pela coordenação da campanha, que visavam obter os recursos necessários para a disputa eleitoral, oferecendo meios para a contribuição financeira do maior leque possível de apoiadores. Para assegurar a transparência de nossas atividades e o cumprimento dos parâmetros legais, documentamos criteriosamente todas as operações financeiras, o que implicou mais de 50 mil registros contábeis de doações e despesas.

Doadores

Buscamos criar condições para ampliar as possibilidades de doações de pequeno valor para pessoas físicas. Mas a atual regulamentação da legislação eleitoral apresenta diversos obstáculos para essas contribuições, impedindo sua efetivação de modo abrangente. Mesmo assim, passamos de cerca de 1.600 doadores pessoas físicas em 2002 para mais de 2.600 doadores na eleição do ano passado.

Em relação às empresas, adotamos medidas inovadoras, criando um sistema de marketing de relacionamento por telefone e e-mail, com banco de dados próprio. Contatamos cerca de 6 mil empresas, para as quais enviamos carta solicitando doação. Realizamos perto de 60 mil telefonemas e trocamos mais de 80 mil e-mails. Do total das empresas, obtivemos 3.479 recusas formais por e-mail ou telefone, sendo o principal alegado a existência de normas internas impeditivas de doações de caráter político-partidário. O segundo fator de recusa mais freqüentemente mencionado, sobretudo por pequenas e médias empresas, foi a falta de disponibilidade de recursos.

Resultados

Trabalhamos com um orçamento inicial de R$ 89 milhões para o primeiro turno. Com a ocorrência do segundo turno, esse teto foi ampliado para R$ 115 milhões, dos quais foram gastos R$ 105,3 milhões. Cerca de R$ 4,8 milhões destinaram-se ao reembolso à União pelo uso do avião presidencial.

Os números finais revelam excessiva concentração das doações num pequeno número de empresas. Do total de R$ 105,3 milhões de despesas, R$ 89 milhões corresponderam a doações financeiras. Do restante, R$ 6 milhões foram doados em serviços ou bens estimáveis em dinheiro e R$ 10,3 milhões renegociados com os credores, com a transferência da dívida para o PT. Do total de contribuições financeiras, 96% foram provenientes de 250 empresas, das quais as cinqüenta maiores doadoras contribuíram com R$ 70 milhões e as duzentas demais com R$ 19 milhões. As dez maiores doadoras contribuíram, em média, com R$ 3,4 milhões cada uma.

As maiores corporações doam para candidatos de diferentes partidos e são as principais financiadoras do processo eleitoral. Ainda que para essas empresas a democracia seja um bom negócio, a dependência em relação a elas é problemática, uma vez que pode aumentar sua influência política de forma desequilibrada. O modelo atual evidencia ainda o risco de um impasse institucional, se as grandes corporações resolverem não doar.

Propostas

Diante do cenário que vivenciamos no pleito de 2006, parece-nos urgente alterar o padrão de financiamento de campanhas eleitorais. O projeto da Comissão Especial da Reforma Política em tramitação no Congresso Nacional propõe a adoção do financiamento público exclusivo, a partir do cálculo de R$ 7,00 por eleitor, com distribuição pelos partidos proporcional a sua representação.

Certamente essa proposta representa um grande avanço, mas sua adoção imediata não é simples e implica uma profunda transformação de nossa cultura política. Por isso, considero que o caminho mais viável é a implantação de um sistema misto. Para tanto, seria adequada a criação de um fundo de financiamento das eleições, composto pelas doações das empresas e complementados por recursos do Orçamento da União. Parte das contribuições privadas poderia ser destinada ao fundo comum e outra parte a partidos políticos específicos de sua escolha. De todo modo, considero imperioso estabelecer um teto para as contribuições das empresas, que em minha avaliação não deveria ultrapassar R$ 500 mil, reduzindo o peso do poder econômico no financiamento eleitoral. (Em 2006, tivemos empresas que chegaram a doar valores próximos a R$ 30 milhões, se somadas todas as suas contribuições para os candidatos nos diferentes níveis em disputa).

Uma possibilidade é adotar medidas para estimular a contribuição das empresas, como o abatimento de 10% do valor doado no Imposto de Renda ou a criação de um selo de cidadania empresarial que servisse como critério de desempate em processos licitatórios do poder público.

Arrecadação antecipada

Outra mudança que considero absolutamente necessária é a antecipação do processo de captação de recursos das empresas pelos partidos. Avalio que a arrecadação deveria ser feita três meses antes do início das campanhas eleitorais, possibilitando aos partidos um planejamento realista. Essa medida teria como pressuposto o fim das doações para candidatos individuais, fortalecendo as legendas, que seriam responsáveis por gerir a distribuição dos recursos internamente.

Com a antecipação da captação de doações, a Justiça Eleitoral poderia assumir a gestão do fundo eleitoral. Estipulado o valor global a ser gasto nas eleições, dele seria deduzido o montante doado pelas empresas e a diferença seria completada com recursos do orçamento federal. Antes das campanhas cada partido já saberia a dotação a que teria direito naquela eleição. Assim, teria como elaborar orçamentos prévios das campanhas, superando o método atual de definição de receitas e despesas, que se baseia muitas vezes na “vontade” de obter receitas, tornando-se quase um exercício de futurologia.

Esses orçamentos deveriam ter um padrão básico, a partir do qual cada partido especificaria as diferentes modalidades de despesas, cujas previsões deveriam ser respeitadas por eles na execução dos gastos eleitorais.

Pessoas físicas

Durante a campanha, considero que somente deveriam ser admitidas as doações de pessoas físicas. Essas contribuições têm um valor simbólico importante e fazem parte do processo  de mobilização política em períodos eleitorais. Entretanto, elas também deveriam ser submetidas a um teto, que a meu juízo deveria ser de no máximo R$ 10 mil.

Para que essas contribuições possam cumprir esses objetivos, porém, é extremamente necessária a implantação de um sistema de doação de pequenos valores utilizando a estrutura tecnológica disponível em nosso país, ou seja, a rede de telefonia, a internet, os bancos e as lotéricas.

Esse sistema, no entanto, só será efetivo se houver alterações nos padrões vigentes de registro de valores pelos comitês financeiros dos partidos. Dessa maneira, os doadores seriam identificados, por exemplo, pelo CPF no momento da operação e os partidos poderiam emitir recibos globais para cada fonte arrecadadora (operadoras de telefonia, bancos etc.).

À legislação caberia definir modalidades específicas de despesas nas quais poderiam ser utilizadas as doações de pessoas físicas. Considerando que a informação e o debate político são aspectos centrais da campanha eleitoral, penso que essas doações deveriam destinar-se exclusivamente a materiais de campanha, potencializando a publicização das propostas dos partidos.

Prestação de contas

A legislação em vigor nas eleições de 2006 trouxe avanços em termos de transparência e controle dos gastos. Mas tem incongruências e apresenta dificuldades para o exercício das leis e dos direitos. Entre outros problemas, o atual sistema permite a utilização de contas bancárias dos candidatos e dos comitês financeiros, ambas se comunicando com as contas dos partidos, gerando confusão e prejudicando a transparência.

A prestação de contas parcial durante a campanha de 2006 foi meramente formal. Seria desejável que ela servisse para auditorias prévias pela Justiça Eleitoral, para apontar eventuais problemas e suas soluções. também não é razoável o atual padrão, que caracteriza problemas específicos de pequena dimensão como vícios insanáveis. Isso ocorre atualmente com a utilização de recursos provenientes das chamadas fontes vedadas. A questão é que nem o próprio TSE consegue definir com clareza e antecipação quais são essas fontes vedadas. O sistema de registro contábil do TSE também tem diversas falhas e precisa ser aprimorado.

Considero factível a implantação da prestação de contas on-line durante a campanha, com prazo máximo de três dias para o lançamento das operações. Mas eventuais equívocos devem poder ser corrigidos durante a própria campanha, por exemplo, com a devolução de doações realizadas por fontes vedadas pela legislação.

As sugestões aqui apresentadas não dão conta, por si só, do aprofundamento do processo de construção democrática do Brasil. A reforma política abrange um leque amplo de temas, boa parte deles relacionada à questão da representação política, como o voto distrital e a implantação das listas partidárias, e da criação de instrumentos de participação popular e de controle social sobre as instituições da República. Mas nesse debate, que precisa ser feito, o financiamento das eleições e dos partidos é questão fundamental, para limitar a influência do poder econômico e possibilitar maior presença dos cidadãos na sustentação do processo democrático.

José de Filippi é prefeito de Diadema (SP) e foi o coordenador financeiro da Campanha Lula 2006