Cultura

Duas exposições simultâneas permitem um paralelo entre Almeida Junior e Lasar Segall

A feliz coincidência da simultaneidade, em São Paulo, de duas exposições de grandes pintores, Almeida Júnior do século 19 e Lasar Segall do século 20, acentua o quanto ambos, cada um a seu modo, são exemplares da combinação nacional/estrangeiro. Almeida Júnior, de academicismo polido na Europa, nem por isso deixou de ser um dos primeiros a pintar brasileiro. Já Segall chegou por assim dizer pronto. Maduro, um profissional com formação em Dresden e Berlim, sabendo o que queria, é um “expressionista alemão”. Mas a nova temática e sobretudo, como ele mesmo enfatizou, a luz e as cores dos trópicos modificaram sutilmente sua arte. Os dois figuram entre os mais influentes pintores de suas respectivas gerações. E é interessante comparar a trajetória de ambos, que se passou ao contrário: Almeida Júnior indo à Europa, Segall vindo de lá.

Ninguém discute que Almeida Júnior seja o pivô da virada para uma pintura brasileira, quanto à temática regionalista e quanto à incorporação da luminosidade destas plagas, decorrente do uso de uma paleta de tons mais fortes ou vibrantes. Devotou-se à apreensão da dinâmica corporal brasileira, sobretudo do caipira; e, mais do que na temática, é aqui que reside sua originalidade, como sublinhou Gilda de Mello e Souza em Exercícios de Leitura. Ao invés de – como tinha aprendido em pessoa nas escolas européias – repetir o gesto nobre e a postura heróica, voltaria sua atenção para uma maneira de portar o corpo, local ou nativa, quadro após quadro. Oriundo da província paulista, e não da Corte, ao estagiar na Academia de Belas Artes, no Rio, e na de Paris, já levava no imaginário uma vivência da gente do interior, da roça.

Ser retratista dos abastados, como ele foi, não o afastou dessa outra realidade. Alguns de seus quadros vão à minúcia etnográfica, como aquele que registra uma cozinha vista de dentro ou o do homem amolando o machado no riacho. A curadoria, com notável senso didático, montou duas vitrines com detalhes dessas telas, indicando os utensílios e identificando-os pelo nome.

Estamos sem dúvida diante de um mestre, na inovação, no acabamento, no domínio dos meios, na paleta. O acervo pertence à Pinacoteca de São Paulo, e é lá que o público pode contemplar habitualmente suas principais telas. Nesta mostra (até 15/4) figura um bom número cuja propriedade cabe a colecionadores particulares, o que torna obrigatório o comparecimento, para aproveitar a oportunidade única de vê-las antes que desapareçam novamente.

Se Almeida Júnior é considerado o mais relevante dentre os pintores que se colocam no nascimento de uma pintura propriamente brasileira, com carta de naturalização, já Lasar Segall é a perfeita encarnação de um grande movimento posterior, o expressionismo.

Enquanto o grosso do acervo de Almeida Júnior reside na Pinacoteca, com muita coisa dispersa, como fica evidente nesta mostra, Lasar Segall conta com um museu só seu, onde há obras em exposição permanente. O que distingue a presente mostra (até 25/3) é que se compôs exclusivamente de 58 aquarelas, com um ou outro exemplar em suportes similares.

Como se sabe, Segall, prócer de nosso Modernismo, foi um pintor de cavalete, e seus trabalhos são em maioria telas a óleo. Todavia, desde os inícios praticou a aquarela, e com perícia, como se pode ver num exemplo ainda pré-expressionista (o belo Asilo de Velhos, de 1909). Nunca abandonaria essa vertente, exercendo-a ao longo da vida, e por isso se nota uma persistência da mesma temática. Neste caso, o espectador mais habituado aos óleos reconhece a presença de tais temas nas aquarelas: os retratos e auto-retratos, os grupos de família, os horrores do racismo, dos pogroms e do Holocausto – ou da perseguição aos judeus, pesadelos que mesmo a distância tanto marcaram o caderno Visões de Guerra –, os estudos de florestas, os bois e cavalos, os negros e mestiços, as escassas paisagens urbanas.

Curiosamente, nesta exposição a mestria parece manifestar-se tanto quanto nas telas. Sendo a aquarela instantânea, ao alastrar-se pelo papel a tinta bem dissolvida em água, desaparece a possibilidade dos retoques. É preciso portanto a segurança de um profissional, dono de seu ofício, para realizá-la. Ao contrário, o óleo pode incorporar sucessivas etapas, ou camadas, admitindo correções e arrependimentos. Na presente mostra, a similaridade da temática permite observar como os resultados variam, em função do suporte e da técnica.

E o fã da pintura a óleo deste pintor, pintura de elaborado acabamento, não encontra motivos para deixar de admirar a fatura de outros belíssimos trabalhos.

Walnice Nogueira Galvão é crítica literária, integra o Conselho de Redação de Teoria e Debate