Internacional

Eleito presidente com 38,07% dos votos, Ortega tem como primeiro desafio o combate à pobreza que afeta boa parte dos mais de 5 milhões de nicaragüenses

A vitória de Daniel Ortega é um grande teste para a democracia representativa na Nicarágua. Eleito com 38,07% dos votos, o novo presidente tem dois desafios pela frente. O primeiro é interno. Ele terá de buscar formas criativas de superar a pobreza, agravada em 16 anos de governos neoliberais, e também contornar a divisão política que marca a história do país desde a vitória da Revolução Sandinista, em 19 de julho de 1979.

Para isso, precisará negociar a aprovação de suas propostas com a direita, que, pela primeira vez, se apresentou dividida. O banqueiro Eduardo Montealegre, da Aliança Liberal Nicaragüense (ALN), foi o candidato abertamente apoiado por Washington. Obteve 29% dos votos e ficou em segundo lugar. José Rizzo, do Partido Liberal Constitucionalista (PLC), alcançou 26,21%. Somados, conquistaram mais de 55% do eleitorado.

Pela esquerda, o Movimento de Renovação Sandinista (MRS), em seu primeiro teste eleitoral, abocanhou 6,44% dos votos. Dissidência da Frente Sandinista que aglutinou na campanha outros pequenos grupos políticos como o Partido Verde e o Movimento de Resgate do Sandinismo, pautou seu discurso por uma espécie de “volta às origens da revolução” e pela defesa da ética. Éden Pastora, que ficou mundialmente conhecido em 1978 ao liderar a ocupação do Palácio Nacional somozista, assumindo o codinome de “Comandante Zero”, teve uma votação insignificante: 0,27%.

Pela legislação eleitoral nicaragüense, ganha o candidato que obtiver mais de 40% dos votos ou 35% destes, com uma vantagem de 5% sobre o segundo colocado. Na prática, uma lei sob medida para Ortega e negociada com o ex-presidente liberal Arnoldo Alemán já no último ano de seu mandato (1995-2000). Enrique Bolaños, do mesmo PLC e sucessor de Alemán, foi contra a fórmula, mas nada fez para mudá-la. Dividiu com a Frente Sandinista a ação legislativa no período 2001-2006 e manteve um bipartidarismo de conveniência. Alemán, com forte controle sobre o partido, impôs seu candidato, José Rizzo, e ainda promoveu a expulsão do então ministro das Finanças, Eduardo Montealegre, que se tornou candidato preferencial de Washington por um novo partido de direita, a ALN.

E será ali, na Assembléia Nacional, que Daniel Ortega viverá o primeiro grande desafio para pôr em prática suas propostas de campanha, especialmente as medidas necessárias para combater a pobreza que afeta boa parte dos mais de 5 milhões de nicaragüenses. A Frente Sandinista elegeu 38 deputados; a ALN, 25; o PLC, 22; e o MRS, 5. Curiosamente, a lei eleitoral também confere uma vaga de deputado ao segundo colocado da disputa presidencial (no caso, Eduardo Montealegre) e ao presidente que deixa o cargo, somando 92 cadeiras. A pergunta é: com quem Ortega vai se aliar para governar?

Seu discurso já não lembra os dos primeiros tempos da Revolução Sandinista, quando o mundo vivia o ocaso da Guerra Fria. Ortega se apresenta como um líder que quer governar para todos, respeitando as regras da economia de mercado e o jogo político institucional. Seu vice, inclusive, é Jaime Morales, que foi um dos líderes da chamada “contra-revolução”. A composição com alguém que combateu os sandinistas de armas nas mãos se transformou na principal novidade da disputa e deu o mote da campanha de Ortega: “Guerra, nunca mais”.

Muita gente, no país e no exterior, torce para que Daniel Ortega reedite o espírito da Revolução Sandinista, marcado pela solidariedade, pela justiça social e pelo compromisso com os mais pobres. Não é difícil. O nó da questão é transformar isso em ações práticas, com resultados concretos para uma população que vive uma desilusão com a política e, ainda por cima, viu seu nível de vida piorar em nome de um  desenvolvimento que beneficiou as elites de sempre. A economia nicaragüense, uma das mais pobres do continente, continua dependente da exportação de matérias-primas e tem um parque industrial reduzido. No contexto do mercado centro-americano, altamente controlado pelos Estados Unidos, entra com algodão e café, mão-de-obra barata e uma capacidade mínima de investimento em infra-estrutura e saneamento básico.

Por outro lado, a crise com os Estados Unidos na década de 80, que fortaleceu os vínculos dos sandinistas com Cuba e a então União Soviética, ainda é um fantasma a rondar a Casa Branca, que destacou seu embaixador em Manágua, Paul Trivelli, para atuar em favor de Eduardo Montealegre. Até mesmo o coronel reformado Oliver North, um dos operadores da conexão  “Irã-Contras”, esteve por lá durante a campanha eleitoral, o que reavivou o famoso escândalo da compra de armas na era Reagan e atiçou o temor de um passado de conflito.

O que não há dúvida é de que este segundo mandato de Ortega na Nicarágua será significativamente diferente do primeiro, conquistado nas urnas em 1984. O período entre 1984 e 1990 foi marcado pelo acirramento das tensões com o governo norte-americano, o que colocou os sandinistas num beco sem saída com o desmoronamento do campo socialista. Para Jaime Wheelock Román, ex-comandante da Frente Sandinista e atualmente um economista independente, “(a vitória de Ortega) não é a oportunidade de completar uma obra revolucionária inconclusa, mas sim a continuidade de uma administração civil que traz, junto com a faixa presidencial, um marco institucional e legal e uma dinâmica econômica com limites e compromissos fixados”. Em outras palavras, a nova administração sandinista deve aliar coerência programática e administração profissional, sem os voluntarismos do passado, no qual a centralização e o burocratismo foram os principais critérios da ação gerencial do Estado.

Sergio Ramírez Mercado, que foi vice-presidente no primeiro mandato de Ortega e outro de seus ex-aliados, não vê perigo algum na volta dos sandinistas ao governo porque a Nicarágua já não possui a mesma  importância geopolítica da década de 80. Ele alerta, porém, que “escolher entre o Tratado de Livre Comércio com os Estados Unidos, que já está em andamento, e a Alternativa Bolivariana das Américas, de Hugo Chávez, que é apenas um desejo em torno do petróleo, pode ser uma grande fonte de conf lito”. Ramírez descreve Ortega como um “personagem polarizante” que deve cuidar para dissipar os temores em relação ao seu futuro governo.

A comunidade nicaragüense nos Estados Unidos, estimada em 1 milhão de pessoas, que o diga. Votou contra Ortega e manifesta publicamente sua preocupação com o futuro, em aliança ideológica com deputados do Partido Republicano. Fala na volta das expropriações, invasões de terras, perseguição e guerra, numa retórica típica de quem acompanha a vida nacional de longe e com a mesma motivação que levou milhares de somozistas a deixar o país depois da revolução de 1979. Essa comunidade é responsável hoje pela principal fonte de divisas da Nicarágua. O articulista Josué Rodríguez Jaenss, do diário conservador La Prensa, descreve o sentimento desses nicaragüenses de forma objetiva: a vitória de Ortega foi um balde de água fria.

Fazendo coro à comunidade nicaragüense no exterior, o secretário de Estado para Assuntos Hemisféricos dos Estados Unidos, Thomas Shannon, deu uma declaração econômica e ambígua ao reconhecer a vitória de Daniel Ortega: “Nosso país mantém um compromisso com a democracia e respeitará a decisão e a vontade do povo nicaragüense. Vamos fazer o possível para ter uma relação positiva com o novo governo”. Reside aí o segundo grande desafio de Ortega: recolocar a Nicarágua no contexto internacional na perspectiva de uma integração latino-americana. Na época da revolução, a divisão do mundo em dois blocos permitia alinhamentos automáticos. Embora nunca tenha sido predominantena direção sandinista a tese de adesão ao bloco socialista, a política de agressão promovida pelo ex-presidente Reagan empurrou a Nicarágua para esse caminho, ainda que extra-oficialmente.

A realidade da globalização não dá tanto destaque a feitos heróicos como a revolução protagonizada por um punhado de guerrilheiros no ano de 1979. Exige, porém, para aqueles que possuem um compromisso com a história de superação das desigualdades, o estabelecimento de alianças que promovam a soberania e a integração continental. E este é, particularmente, um bom momento para a América Latina fortalecer seus laços de cooperação. Ortega lançou a versão nicaragüense do programa Fome Zero. Em sua posse, a grande estrela foi Hugo Chávez. Isso sugere uma política externa que deve combinar moderação e discursos mais contundentes pela soberania dos povos.

Dezesseis anos na oposição, mudanças no xadrez político mundial e problemas de divisão interna são motivos suficientes para ter um novo olhar sobre a realidade nicaragüense. Objetivamente, será a primeira vez  que a Frente Sandinista governará o país com base nos princípios da democracia representativa que, afinal, com erros e acertos, ajudou a construir com a revolução de 1979.

Marco Piva é jornalista e apresentador do programa Mobilização Brasil (TVE Brasil). Escreveu, em co-autoria com Márcia Cruz, os livros Nicarágua – Um Povo e Sua História e Fazendo Amor na Nicarágua