Internacional

Grande parte da vitória de 7 de novembro deveu-se à vigorosa mobilização e às campanhas para a população conduzidas pelos aliados progressistas do Partido Democrata na sociedade civil

Um 7 de novembro de 2006 a população dos Estados Unidos deu um devastador voto de desconfiança ao presidente George W. Bush e a seu Partido Republicano, nas eleições nacionais para o Congresso e para os governos estaduais. O resultado eleitoral mudou o equilíbrio de poder na Câmara dos Deputados, de 435 membros, com os democratas conquistando uma maioria de 31 assentos em relação aos republicanos (233 a 202). No Senado, de 100 membros, os democratas conseguiram passar de 51. (Os independentes Joseph Lieberman, de Connecticut, e Bernard Sanders − um socialista democrático −, de Vermont, são considerados parte da estreita maioria no Senado, pois já aderiram ao grupo democrata.)

Os democratas obtiveram seis novas vitórias em governos estaduais, em Massachusetts, Nova York, Ohio, Maryland, Arkansas e Colorado. Agora são 28 governadores democratas e 22 republicanos. Pela primeira vez em doze anos os democratas, que representam a centro-esquerda na política americana, detêm a maioria tanto nos governos estaduais quanto no Congresso.

Embora as novas maiorias legislativas não sejam à prova de veto, de todo modo os democratas têm uma poderosa vantagem para controlar a liderança e a agenda das comissões parlamentares estratégicas, incluindo as de orçamentos, inteligência e política externa.

Grande parte da vitória de 7 de novembro deveu-se à vigorosa mobilização e às campanhas para a população conduzidas pelos aliados progressistas do Partido Democrata na sociedade civil, incluindo os sindicatos, o movimento de mulheres, o movimento pelos direitos civis, afro-americanos, ambientalistas e muitas organizações de educação cívica de esquerda, como Move On e People for the American Way. A AFL-CIO, maior central sindical trabalhista dos EUA, com 9 milhões de afiliados, dedicou uma parte extraordinária de seus recursos financeiros e humanos para educar e mobilizar famílias em todo o país, especialmente nos estados com disputas eleitorais mais apertadas.

Além de os trabalhistas e outros tradicionais aliados do Partido Democrata aumentarem sua participação nas eleições, muitos republicanos leais ou ficaram em casa, ou votaram na oposição, em protesto pelo que consideram uma traição dos valores básicos de seu partido por Bush e pela maioria parlamentar anterior. Escândalos de corrupção, como os contratos sem licitação no Iraque em benefício de interesses republicanos (incluindo os do vice-presidente Dick Cheney),assim como acusações de propinas e venda de influência envolvendo líderes do partido na Câmara. A exploração sexual de estagiários adolescentes no Congresso pelo deputado Mark Foley, revelações de que outros republicanos teriam participado de práticas sórdidas e o subseqüente encobrimento atribuído ao então presidente da Câmara, Dennis Hastert, repelirame insultaram a direita religiosa do partido. E um número razoável de republicanos acreditou que Bush ea maioria no Congresso violaram oprincípio mais sagrado de seu partido: o conservadorismo fiscal. Quando Bush tomou posse, em 2001, herdou um superávit orçamentário projetado para dez anos (2002-2011) de US$ 5,6 trilhões, o qual transformou em um déficit de US$ 3,3 trilhões, a maior dívida da história dos EUA, graças, em boa parte, ao fiasco no Iraque.

Questões internas como a corrupção política, o déficit público, o desemprego,os salários reais, a economia e falta de seguro-saúde e de segurança na aposentadoria para milhões de americanos afetaram os resultados de novembro, mas a maior parte das pesquisas e análises revela que o desastre criado por Bush no Iraque foi vital para a derrota republicana1. Poucas vezes na história americana questões de política externa realmente fizeram diferença em eleições nacionais. A decisão de Lyndon Johnson de não disputar a reeleição depois da Ofensiva do Tet e a afirmação de Richard Nixon de que tinha um “plano secreto” para trazer de volta as tropas americanas do Vietnã em 1968 são bons exemplos. Outro que vem à mente é a crise dos reféns no Irã, na época de Jimmy Carter, que contribuiu para a vitória de Ronald Reagan, em 1980.

A falta de influência da política externa nas eleições populares nos EUA não é de surpreender. Como observou o cientista político americano Alan Wolfe, trinta anos atrás, a política externa dos EUA raramente é contestada pelo escrutínio, análise, indignação ou referendo popular, pois representa a elite, o lado restrito e encoberto do fenômeno do “Estado dual” nos regimes democráticos liberais2. Apesar de a excepcionalidade, o isolacionismo, a xenofobia e a simples ignorância dos assuntos internacionais terem um lugar lamentável na psique nacional, muitos americanos se sentem impotentes e excluídos quando se trata de corrigir as transgressões e contradições das empreitadas imperialistas dos EUA no exterior. Mesmo o Congresso, com seus poderes de declarar guerra e autorizar ou negar verbas para projetos e operações internacionais, respeita o mandato constitucional do presidente como principal executor da política externa do país e como comandante-em-chefe militar.

No entanto, o movimento popular para acabar com a Guerra do Vietnã representa o mais importante desafio na história americana ao controle da conduta imperialista dos EUA pelas elites militares, acadêmicas, corporativas e políticas. A experiência do Vietnã mostra que quando uma massa crítica de cidadãos comuns se convence de que vidas americanas estão sendo sacrificadas por um objetivo enganoso e inútil, ela pratica a desobediência civil e protestos para contestar o monopólio do Executivo na política externa.

Embora os últimos quatro anos de invasão e ocupação de Bagdá não tenham produzido o mesmo número de manifestações quanto a década de protestos contra a Guerra do Vietnã, há evidências de que a maioria avassaladora dos americanos chegou a um ponto crítico em relação ao Iraque. Em 2004, uma pequena maioria de eleitores (51%) disse apoiar a decisão do presidente de ir à guerra. Mas pouco antes das eleições de 2006 menos de 41% do público eleitor disse aprovar a decisão, e menos de um terço indicou que a guerra e a ocupação haviam melhorado a segurança do país em longo prazo3.

Em reação ao anúncio feito por Bush em 10 de janeiro de que está “mudando de estratégia”, enviando mais de 20 mil soldados adicionais para ajudar o governo do primeiro-ministro iraquiano Nuri al-Maliki a proteger Bagdá (a chamada alternativa surge, ou aumento repentino), mais de dois terços do público americano manifestaram sua oposição inequívoca4. Mais de 63% acreditam que Bush não tem um plano e mais de 51% expressam confiança nos democratas para desenvolver uma estratégia de saída eficaz, com o número de baixas americanas hoje superando os 3 mil (além do sacrifício de mais de 655 mil vidas iraquianas desde a invasão)5.

A grande ironia é que George Bush começou sua Presidência com uma agenda isolacionista unilateral que descartava compromissos internacionais anteriores. Nos primeiros meses de seu governo ele rejeitou a “construção de nações”, atacou o Protocolo de Kyoto, retirou-se do Tratado de Mísseis Antibalísticos e evitou outros acordos internacionais com base em uma definição estreita de interesse nacional6.

O 11 de Setembro transformou Bush em um intervencionista unilateral. Além de adotar uma agenda militarista, invocou a linguagem do internacionalismo liberal idealista. Sua Estratégia de Segurança Nacional de 2002 não apenas prometeu combater o terrorismo e “prevenir” ameaças, mas “trabalhar ativamente para levar a esperança de democracia, desenvolvimento, mercados livres e livre comércio a todos os cantos do mundo”. Segundo Bush, o Iraque pós-Saddam seria o arquétipo da democracia liberal no Oriente Médio7.

A apropriação pelo presidente do idealismo de Woodrow Wilson, historicamente associado aos governos democratas, não foi um acaso nem mero oportunismo. A elite dos neoconservadores (isto é, Paul Wolfowitz e Richard Perle) exerceu tremenda influência na formulação da política externa da Casa Branca (incluindo a própria decisão de invadir o Iraque sem prova verossímil de uma ameaça iminente aos EUA) e sua visão de mundo inclui as máximas de Wilson de promover a democracia no exterior, sob a crença de que o poderio americano pode ser usado com fins morais. Mas, num claro afastamento da tradição wilsoniana, os neoconservadores denigrem a lei e as instituições internacionais.

O intelectual neoconservador Francis Fukuyama observou recentemente (e com uma saudável dose de autocrítica) que os arquitetos ideológicos da Guerra do Iraque foram claramente influenciados pela maneira como o comunismo desmoronou no bloco do Leste no final da década de 80 e início da de 90. Eles abrigavam a expectativa de que “todos os regimes totalitários eram ocos no centro e cairiam com um pequeno empurrão de fora”8. Fukuyama conclui que o “excesso de otimismo (dos neoconservadores) sobre as transições para a democracia no pós-guerra ajuda a explicar o fracasso incompreensível do governo Bush em precaver-se adequadamente da insurgência que emergiu em seguida no Iraque”9.

Segundo os resultados da eleição de 2006 e as pesquisas das últimas semanas, o público americano inequivocamente rejeita a Doutrina Bush de prevenção desorientada e escalada insensata. Apesar de não ter sido consultada quando especialistas em segurança nacional e intelectuais neoconservadores se reuniram secretamente no final de novembro de 2001 para convencer Bush da necessidade de invadir o Iraque e “transformar a região”10.

A liderança democrata e a nova maioria no Congresso enfrentam hoje o desafio dessa enorme expectativa popular. No entanto, Bush colocou sua oposição em um duro dilema: em 10 de janeiro anunciou um aumento unilateral da presença militar americana no Iraque, utilizando seu poder constitucional de comandante-em-chefe, e pode facilmente acusar os democratas de “abandonar as tropas” caso se recusem a conceder as verbas necessárias para o fait accompli.

Alguns membros da maioria democrata, como o senador Russell Feingold, se recusam a ceder a essa chantagem e afirmam que o “poder da bolsa” do Congresso é a única maneira de conter um presidente descontrolado. O senador Edward Kennedy quer financiar tudo o que for necessário para a defesa das tropas americanas e fazer a transição das forças de segurança iraquianas para a responsabilidade plena, mas propôs uma legislação que proíbe o financiamento de novas escaladas. O senador Christopher Dodd elaborou um projeto pelo qual o Congresso desautoriza um maior envolvimento militar, mas se reserva o julgamento sobre corte de verbas. O senador Carl Levin, de Michigan, presidente da Comissão dos Serviços Armados do Senado, desaprova o uso do poder de concessão de verbas no momento atual, mas pede uma resolução declaratória do Congresso condenando a opção de Bush de ampliar as tropas.

O governo Bush tentou caracterizar essa diversidade tática no bloco democrata como evidência de que a oposição está dividida e carece de um plano estratégico. Mas, apesar das diferenças, toda a liderança parlamentar democrata pelo menos concorda com o seguinte: imediatamente transferir para os iraquianos a responsabilidade por sua segurança, fazendo a transição da missão básica das atuais forças americanas de combate para treinamento, logística e medidas precisas de contraterrorismo; iniciar a retirada das tropas americanas nos próximos quatro a seis meses; e implementar uma vigorosa abordagem diplomática na região e além dela, apelando à comunidade internacional e a instituições multinacionais para ajudar a estabilizar o Iraque e assistir a população iraquiana, para que alcance um acordo político sustentável contra a atual violência civil11. E virtualmente toda a oposição democrata concorda que diplomacia significa discussões sérias com a Síria e o Irã.

Alguns cínicos na comunidade mundial podem acusar a liderança democrata de querer fechar uma caixa de Pandora que nunca deveria ter sido aberta − e que a maioria dos parlamentares democratas ajudou a abrir ao aprovar a autorização para a guerra em 2002. Alguns daqueles democratas iludidos supuseram que Bush esperaria pelo processo de inspeção da ONU à procura das armas de destruição em massa antes de lançar uma invasão.

Mas os cínicos deveriam se perguntar seriamente se a alternativa imediata de Bush para o Iraque e a segurança internacional é preferível ao atual esforço de boa-fé dos democratas. E, mesmo que a busca dos ideais de Wilson tenha levado governos democratas a pesadelos intervencionistas no passado, a tragédia atual no Iraque e as expectativas desesperadas da maioria dos americanos dão aos democratas uma oportunidade inédita de tomar o melhor de sua tradição moral na política externa e combiná-la com um novo realismo que reconheça as limitações do poderio americano na arena global. Isso significa resgatar uma máxima fundamental do legado de Wilson − respeitar e promover a lei e as instituições internacionais e buscar um genuíno consenso multilateral −, princípios que o governo Bush e seus ideólogos neoconservadores desrespeitaram.

Este momento dinâmico na política dos EUA não deve ser ignorado pelos progressistas e pela esquerda democrática em todo o mundo, incluindo o Brasil. O governo Lula, com o Itamaraty, deve reconhecer que a oportunidade de a liderança parlamentar democrata (junto com um número razoável de republicanos sensíveis) começar a reverter a Doutrina Bush e ajudar a restaurar o respeito americano pelas normas legais e internacionais e pelo multilateralismo corresponde aos princípios das relações internacionais brasileiras contemporâneas desde o fim da ditadura militar. A liderança democrata dos EUA e a centro-esquerda brasileira, incluindo o PT, devem se envolver em um diálogo sério e em intercâmbios para reforçar essa harmonia potencial nos valores de política externa.

Nem o Itamaraty, nem a mídia brasileira, nem a sociedade civil brasileira devem assumir a conclusão enganosa de que os aliados do movimento social progressista democrata, incluindo nós, trabalhistas, representam uma ameaça mais protecionista para os interesses econômicos do Brasil, devido a nossos esforços para promover prioridades de justiça social na economia global. (E somos sempre os primeiros a afirmar que os EUA estão entre os piores violadores mundiais das normas fundamentais do trabalho, especialmente quando se trata de direitos de organização sindical e negociação coletiva dos trabalhadores americanos.) Nossas preocupações globais se cruzam em grande parte com os objetivos internacionais do presidente Lula de combater a pobreza, e nossa ênfase para um comércio e uma globalização mais justos tem muito em comum com os interesses do Sul global.

Fukuyama comentou recentemente que “os americanos não são, no fundo, um povo imperialista”12. Essa declaração parece ingênua se considerarmos a política externa americana nos últimos 110 anos. Mas sua afirmação não é tão inverossímil se lembrarmos as poucas épocas na História em que a população americana desafiou com sucesso os excessos imperialistas de seu governo. Talvez esta seja uma dessas épocas.

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves

Stanley A. Gacek é advogado trabalhista e diretor-adjunto de Relações Internacionais da AFL-CIO e membro do Conselho Consultivo sobre Assuntos Hemisféricos do Partido Democrata